Conservadorismo de branco é a vanguarda do atraso
Parte expressiva da categoria, diplomada em instituições do Estado, não
está nem aí para a hora do Brasil. Não quer sair de sua zona de conforto
e se acha no direito de pensar apenas em carreira pessoal e montar um
rentável consultório privado em alguma metrópole
por Breno Altman*
18/07/2013
As manifestações de médicos, nessa última terça-feira, revelam um núcleo
duro e mobilizado das elites brasileiras. Sua influência nos meios de
comunicação, na sociedade e nas instituições já ameaça o programa de
saúde recentemente lançado pelo governo. A julgar pelas emendas
apresentadas na Câmara dos Deputados, a desfiguração desse projeto será
inevitável.
O Palácio do Planalto pode estar pagando um preço por ter agido de forma
atabalhoada, sem consultar e articular as correntes mais progressistas
da medicina, o que seria obrigatório para batalha dessa envergadura. Mas
a reação não é contra eventuais falhas de interlocução: sua natureza
reside em defender privilégios corporativos, contrapostos aos interesses
do país e aos direitos da cidadania.
As três principais bandeiras nas marchas dos jalecos brancos são
elucidativas. São contra a extensão da residência em dois anos, com
obrigatoriedade de servir o Sistema Único de Saúde. Não concordam com a
vinda de doutores estrangeiros para cobrir déficit de profissionais,
especialmente nos rincões do país. Reivindicam a derrubada do veto
presidencial sobre o chamado Ato Médico, que fixava supremacia da
categoria em relação a outros trabalhadores do universo sanitário.
São reivindicações de quem olha para o próprio umbigo. Insuflada pelos
extratos mais ricos e articulados com o conservadorismo, a mobilização
médica não entra na briga para a melhoria da saúde pública. Seus maiores
aliados são os que comandaram campanha para eliminar a CPMF e retiraram
cerca de 40 bilhões de reais anuais para o financiamento do setor.
Não passa de deslavada hipocrisia quando se afirma que o problema não é a
falta de médicos, mas a carência de estrutura nos hospitais e centros
de atendimento. As dificuldades são inegáveis, isso é fato. No contexto
deste embate, porém, não passam de álibi para que o andar de cima possa
fazer sua vida sem reciprocidade com os milhões de brasileiros que
suaram a camisa e pagaram impostos para garantir a existência de boas
faculdades públicas de medicina.
O Brasil tem um número pífio de médicos, na proporção de 1,8 para cada
mil habitantes. Na Inglaterra, esse índice é de 2,7. Em Cuba, de 6. Nos
últimos dez anos, surgiram 147 mil novas vagas no mercado de trabalho,
mas apenas 93 mil profissionais foram formados. Há 1,9 mil municípios
com menos de um médico por 3 mil habitantes. Em outras 700 cidades, não
há doutores com residência fixa. Nem é preciso dizer que esses 2,6 mil
municípios sem assistência adequada estão entre os mais pobres e
distantes dos grandes centros.
O governo criou o Programa de Valorização do Profissional da Atenção
Básica (Provab), para levar médicos ao interior e aos subúrbios. A
demanda era de 13 mil trabalhadores, mas apenas 3,8 mil postos foram
preenchidos, apesar do salário de 8 mil reais que é oferecido, agora
aumentado para 10 mil no Programa Mais Médicos. Até mesmo bairro
periféricos de cidades importantes, como Porto Alegre e São Paulo, não
conseguem atrair interessados.
Parte expressiva da categoria, diplomada em instituições do Estado, não
está nem aí para a hora do Brasil. Não quer sair de sua zona de conforto
e se acha no direito de pensar apenas em carreira pessoal e montar um
rentável consultório privado em alguma metrópole.
Entidades da área, especialmente o Conselho Federal de Medicina, fazem
de tudo para impedir a ampliação do número de faculdades (em nome da
qualidade de ensino, é claro) e a contratação de médicos estrangeiros ou
formados no exterior. A reserva de mercado, para essa gente, está acima
da saúde pública.
E essa gente é muito diferenciada. Enquanto 40% do total de alunos da
Universidade de São Paulo frequentaram colégios públicos, na Faculdade
de Medicina essa origem restringe-se a 2% dos matriculados. Na turma de
2013, nenhum deles era negro. Médicos ricos querem ficar mais ricos
atendendo os ricos. Como os pobres têm bem menos chances de ganhar o
canudo, esses que se lasquem.
O governo tentou resolver o problema apenas por métodos de atração. Não
encontrou auditório. Resolveu, então, adotar um modelo semelhante àquele
adotado, há décadas, por países tão distintos quanto Israel e Cuba,
instituindo uma variante de serviço civil obrigatório, ainda que bem
remunerado.
A formação de um médico, na universidade pública, custa ao redor de 800
mil reais para o tesouro da União e dos estados. Nada mais justo que
haja alguma forma de retribuição pelo aporte realizado por toda a
sociedade para cada indivíduo que virou doutor. Dois anos de reembolso,
com um razoável contracheque, é uma bagatela. Vale lembrar que o dever
do Estado é com o povo, não com os médicos.
Talvez os estudantes das faculdades privadas pudessem estar isentos
dessa medida, mas todo o cuidado é pouco para evitar que os
endinheirados aproveitem brechas para escapar de sua obrigação social,
trocando de curso. Uma ou outra correção cabe ser feita, mas o ministro
da Saúde e a presidente Dilma Rousseff estão cumprindo sua tarefa
constitucional.
O que falta, além de mobilizar os setores da saúde favoráveis às
providências adotadas, é travar uma batalha de valores mais firme sobre o
programa em discussão. Por enquanto, parece que a preocupação principal
é acalmar a ira de médicos ensandecidos pelo egoísmo de classe. O
objetivo principal deveria ser debater os deveres de solidariedade dos
que recebem privilégios e os direitos de todos a receber assistência
médica de qualidade.
Não se pode dar moleza a porta-vozes da ignorância e má fé. Quando
personagens como Cláudio Lottenberg e Miguel Srougi se voltam contra a
vinda de médicos cubanos, há pouco o que acrescentar. Mentem
descaradamente sobre a qualidade desses especialistas, cuja proficiência
é atestada pela Organização Mundial da Saúde e pelas 65 nações nas
quais trabalham para suprir deficiências locais.
Afinal, seria um horror para o reacionarismo de branco assistir médicos
da ilha de Fidel, muitos entre eles negros, pegando no batente em locais
para os quais seus colegas brasileiros viram as costas e tapam o nariz.
A nudez de seu comportamento lhes seria insuportável.
*Breno Altman é diretor editorial do site Opera Mundi e da revista Samuel.
Nenhum comentário:
Postar um comentário