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Ser de esquerda é não aceitar as injustiças, sejam elas quais forem, como um fato natural. É não calar diante da violação dos Direitos Humanos, em qualquer país e em qualquer momento. É questionar determinadas leis – porque a Justiça, muitas vezes, não anda de mãos dadas com o Direito; e entre um e outro, o homem de esquerda escolhe a justiça.
É ser guiado por uma permanente capacidade de se estarrecer e, com ela e por causa dela, não se acomodar, não se vender, não se deixar manipular ou seduzir pelo poder. É escolher o caminho mais justo, mesmo que seja cansativo demais, arriscado demais, distante demais. O homem de esquerda acredita que a vida pode e deve ser melhor e é isso, no fundo, que o move. Porque o homem de esquerda sabe que não é culpa do destino ou da vontade divina que um bilhão de pessoas, segundo dados da ONU, passe fome no mundo.
É caminhar junto aos marginalizados; é repartir aquilo que se tem e até mesmo aquilo que falta, sem sacrifício e sem estardalhaço. À direita, cabe a tarefa de dar o que sobra, em forma de esmola e de assistencialismo, com barulho e holofotes. Ser de esquerda é reconhecer no outro sua própria humanidade, principalmente quando o outro for completamente diferente. Os homens e mulheres de esquerda sabem que o destino de uma pessoa não deveria ser determinado por causa da raça, do gênero ou da religião.
Ser de esquerda é não se deixar seduzir pelo consumismo; é entender, como ensinou Milton Santos, que a felicidade está ancorada nos bens infinitos. É mergulhar, com alegria e inteireza, na luta por um mundo melhor e neste mergulho não se deixar contaminar pela arrogância, pelo rancor ou pela vaidade. É manter a coerência entre a palavra e a ação. É alimentar as dúvidas, para não cair no poço escuro das respostas fáceis, das certezas cômodas e caducas. Porém, o homem de esquerda não faz da dúvida o álibi para a indiferença. Ele nunca é indiferente. Ser de esquerda é saber que este “mundo melhor e possível” não se fará de punhos cerrados nem com gritos de guerra, mas será construído no dia-a-dia, nas pequenas e grandes obras e que, muitas vezes, é preciso comprar batalhas longas e desgastantes. Ser de esquerda é, na batalha, não usar os métodos do inimigo.
Fernando Evangelista

domingo, maio 25, 2014



Amarillo Compania de Teatro Linea de Sombra13 Brasil abre o palco para teatro da América Latina
Um palco latino: o ator mexicano Raúl Mendoza, em Amarillo, do Teatro Línea de Sombra - Foto: Divulgação

Por MAÍRA DE CARVALHO MORAES e MIGUEL ARCANJO PRADO*

Um imigrante mexicano escala um muro intransponível em busca do sonho de imigração para os Estados Unidos. Um palhaço boliviano fala à plateia da resistência em fazer sua arte em um país com tantas dificuldades. Prostitutas, travestis e traficantes cubanos surgem detrás dos cantos escuros de Havana. Uma jovem Mapuche chilena brada contra o descaso governamental para com sua dor. Tais cenas puderam ser vistas em 2013 nos palcos brasileiros ao som da língua castelhana.


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Público paulistano vê La Muerte de un Actor, com Antonio Peredo, da Bolívia - Foto: Hélio Dusk/SP Escola de Teatro

São imagens dos tempos atuais de um lugar chamado América Latina. E o teatro é arte intrinsecamente ligada a seu tempo. Efêmero, reflete no presente a sociedade que o gera em cima do palco. E, como tais enredos cênicos explicitam, a integração latino-americana começa a chegar de fato aos tablados, ainda que haja muito a avançar.
Há algum tempo, a discussão sobre a integração entre os países que formam a América Latina alcançava apenas a reflexão sobre o intercâmbio econômico. No afã de formar um grande mercado para competir no contexto global, as similaridades históricas, sociais e culturais entre os países latino-americanos, muito maiores do que nossos acordos econômicos, pareciam passar despercebidas.
No entanto, nos últimos anos, iniciativas de intercâmbio cultural têm sido mais perceptíveis. No teatro não é diferente. E isso ocorre mesmo sendo esta arte afetada pela precariedade de visibilidade e de financiamento.
Festivais latinos

Um dos eventos mais importantes no sentido de integrar os palcos desta região do planeta foi criado em 2006, quando houve a primeira edição da Mostra Latino-americana de Teatro de Grupo, a partir de então realizada anualmente no Centro Cultural São Paulo (CCSP) com entrada gratuita e público anual de cerca de 4.000 espectadores.


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Ney Piacentini, idealizador da Mostra Latino-Americana de Teatro de Grupo de São Paulo - Foto: Bob Sousa

A oitava edição aconteceu entre 16 e 21 de abril de 2013 e registrou participação de mais de cem artistas de 11 companhias teatrais latino-americanas. Idealizador do projeto, o ator Ney Piacentini, integrante da Cia. Do Latão e ex-presidente da Cooperativa Paulista de Teatro, afirma que o evento promove intercâmbio entre grupos de teatro de diversas linguagens e orientações.
Piacentini conta que a Mostra dá espaço, prioritariamente, para produções alternativas. “Convidamos via de regra obras pouco conhecidas para o espectador de São Paulo, para quebrar protocolos na relação entre quem está em cena e quem os vê”, diz. A Mostra também promove um intercâmbio entre atores e encenadores, que demonstram e discutem seus processos criativos, além de assistirem mutuamente a todos os espetáculos.
Piacentini afirma que tal modelo inspira novos projetos. “Desde que lançamos a mostra, depois vieram o Festival Ibero-americano de Teatro de São Paulo [Festibero], realizado anualmente no Memorial da América Latina, o Festival Latino-Americano de Teatro da Bahia [Filte], e o Festival Ibero-americano de Artes Cênicas de Santos, o Mirada”, lembra.
Mais de 100 mil no Mirada
Realizado bianualmente pelo Sesc Santos desde 2010, o Mirada já se tornou, assim como a Mostra, referência entre os festivais latino-americanos. Enquanto na edição de 2010 foram 18 espetáculos internacionais e 13 nacionais, em 2012 o número cresceu para 23 peça internacionais e 15 nacionais. O público também dobrou: em 2010, 50 mil pessoas viram o Mirada. Em 2012, o número passou para 100 mil pessoas, segundo o Sesc São Paulo – metade deste número participante de atividades ao ar livre. A edição de 2014 já está agendada para setembro.

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Público lota Sesc Santos, no litoral paulista, no Mirada: edição de 2014 será em setembro - Foto: Divulgação

Festivais como o Mirada, patrocinado por verbas do comércio destinadas ao Sesc São Paulo, em parceria com a Prefeitura de Santos, e a Mostra Latino-Americana de Teatro de Grupo, cujo maior patrocinador é a Petrobras, são exemplos de eventos em que a presença das expressões teatrais de outros países da América Latina estão acessíveis.
A Petrobras, multinacional brasileira principal apoiadora da Mostra, tem interesses econômicos explícitos na América Latina, já que mantém atividades operacionais em nove países da região: Argentina, Bolívia, Chile, Paraguai, Uruguai, Colômbia, Peru, Venezuela e México.
O incentivo, assim,  não é uma coincidência. Com essas ações culturais a empresa pretende vincular sua imagem à cultura e, consequentemente, à classe artística. Assim, gera empatia dos consumidores pela marca, firmando uma aproximação cultural, ainda que marcada pelo marketing.
Além da acolhida do público, esses eventos já conquistaram espaço e cobertura nos principais veículos de comunicação que cobrem o teatro. Mas, nem sempre a presença de espetáculos latino-americanos em território brasileiro foi algo bem visto pela imprensa, muito pelo contrário.
Passado de ataques

O ator Procópio Ferreira (1898-1979), no livro Procópio Ferreira Apresenta Procópio [Editora Rocco,2000], conta que foi achincalhado pelos jornais brasileiros em 1924, quando propôs a encenação no Brasil de peças argentinas, bem como a realização de viagens de montagens brasileiras a Buenos Aires.

O La Nación, tradicional jornal argentino, reconheceu o esforço de Ferreira, em matéria publicada em 15 de maio de 1924, na qual afirmou que “Procópio Ferreira tem sido inegavelmente o primeiro realizador do programa de divulgação do teatro argentino”.
Contudo, tal iniciativa não foi bem recebida na imprensa brasileira. O jornal carioca O Brasil chegou a dizer naquele então, em tom de deboche: “À guisa de aproximação sul-americana, começam a ser traduzidas para a nossa língua diversas pecinhas do teatro argentino, enquanto dizem por aí que algumas farsas do Teatro Nacional serão montadas em Buenos Aires”. A mesma publicação decretou: “De coisinhas para rir nós estamos fartos. Dispensa-se a troca”. Em resposta, Procópio Ferreira defendeu a integração em entrevista ao jornal A Noite, publicada em 8 de setembro de 1924. “Nas peças argentinas há teatro. E teatro a valer. Eu as represento com o maior encanto”.

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Crítica se aproxima: Jefferson del Rios pesquisou a obra do argentino Victor García - Foto: Divulgação

Demorou mais de 40 anos para que o teatro feito em parceria com a Argentina ganhasse reconhecimento da crítica especializada brasileira. Tal fato só veio a ocorrer em 1968, quando o diretor argentino Victor Garcia fez uma montagem em São Paulo do espetáculo Cemitério de Automóveis com atores brasileiros e abocanhou os prêmios de melhor diretor e melhor espetáculo da Associação Paulista de Críticos de Teatro, a atual APCA, como lembra Jefferson Del Rios no livro Victor Garcia – A Vida Sempre em Jogo (Edições Sesc SP, 2012).
Mineiros e portenhos

Na atualidade, o cenário é bem diferente daquele encontrado por Procópio Ferreira em sua tentativa de aproximação de nosso teatro com o feito por nossos vizinhos. O dramaturgo e diretor argentino Daniel Veronese, um dos grandes expoentes da cena portenha contemporânea, tem apresentado constantemente seus espetáculos no Brasil nos últimos anos.


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A atriz e diretora mineira Grace Passô, em cena do texto argentino O Líquido Tátil - Foto: Guto Muniz

Em 2013, teve sua peça O Líquido Tátil encenada sob sua direção pelo grupo Espanca!, de Belo Horizonte. Apresentada no Festival de Teatro de Curitiba e no Sesc Pompeia, em São Paulo, a peça destacou a integração entre os artistas de diferentes países como um de seus principais objetivos. Em 2014, foi apresentada no FIT-BH (Festival Internacional de Teatro, Palco e Rua de Belo Horizonte).
Grace Passô, atriz da montagem e diretora da trupe mineira, diz que partiu deles o convite. “O trabalho do Veronese é uma referência. Ele constrói trabalhos de estilos diferentes, com focos distintos, mas sempre com uma encenação radical”. Veronese também elogia o trabalho dos atores brasileiros. “São disciplinados e trabalhadores. Tivemos um ótimo contato porque eles são abertos a escutar”.
Experiências enriquecedoras

O grupo mineiro não é o único com vontade de intercâmbio. Lee Taylor, que integrou por dez anos o Centro de Pesquisa Teatral (CPT) do Sesc São Paulo comandado por Antunes Filho e hoje dirige o Núcleo de Artes Cênicas (NAC), também confessa ser fã do trabalho de Veronese.

Ele revela que viu todas as montagens do argentino que estiveram em cartaz no Brasil. E conta que sempre está atento ao teatro que vem de outros países da América Latina.

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Tadeu Ibarra (acima) e Lee Taylor: atores brasileiros buscam dialogar com a América Latina - Foto: Bob Sousa

Taylor também já esteve do outro lado da moeda, apresentando-se em países da América Latina em peças de Antunes Filho, em lugares como Argentina, Colômbia e Peru. “Fiz estas viagens entre 2008 e 2012. Foram experiências enriquecedoras do ponto de vista de troca entre artistas do teatro. Pude confirmar a força das manifestações teatrais produzidas na América Latina. O que mais me chamou atenção foi a receptividade ao teatro brasileiro e a diversidade de produções nestes festivais”. Tal experiência faz Taylor declarar que “pretende afinar cada vez mais este intercâmbio” ao longo de sua carreira.
O ator carioca radicado em São Paulo Tadeu Ibarra, atualmente cursando a Escola de Arte Dramática da USP, também guarda boas lembranças de quando viajou como o grupo Os Satyros para o 14º Festival Internacional de Teatro de Havana, em Cuba, em 2011, mas crê que a viagem poderia ter sido mais proveitosa do ponto de vista de intercâmbio artístico. Na correria em apresentar sua peça, Cosmogonia, teve pouco contato com a cena cubana. “Foi muito trabalho, não consegui assistir a nenhuma peça do festival, apenas uma apresentação de um grupo folclórico”, lembra.
Por isso, agora aproveita suas férias para desbravar palcos vizinhos. Com parte da família uruguaia, Ibarra tem por hábito frequentar a cena teatral local sempre que visita o Uruguai. Além disso, sempre que há festivais que explorem a temática latina em São Paulo, faz questão de estar na plateia.
“Adoro assistir teatro latino-americano, não sei se pelo fato de parte de minha família ser uruguaia. Mas, acho que há muito mais incentivos para a vinda de grupos europeus para o Brasil, do que para grupos latinos”, lamenta o ator. Tadeu reforça que seu interesse no teatro latino-americano se dá “porque as problemáticas sociais são muito parecidas, bem como a estética e as dificuldades em se fazer teatro em um país sem estrutura”. E diz que, por isso, o diálogo acontece espontaneamente: “A gente se simpatiza, se entende”.
Boliviano no Brasil

Tal entendimento também ocorre do outro lado. Antonio Peredo, ator boliviano, se apresentou no Festibero 2013 com o monólogo La Muerte de Un Actor, em 2013, no qual se veste de palhaço para fazer uma reflexão da vida artística em seu país.


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O ator boliviano Antonio Peredo: "Temos muito em comum" - Foto: Hélio Dusk/SP Escola de Teatro

Ele conta que ficou “impressionado ao perceber que o Brasil vive um momento de abertura para a América Latina que antes não tinha”. “Antes, o olhar estava voltado para a Europa”, afirma.
Para Peredo, tal aproximação é mais do que necessária: “Nós, bolivianos, brasileiros, latino-americanos, sofremos os mesmos acontecimentos, os mesmos episódios violentos. Temos indígenas mortos, escravidão, histórias de ditaduras. E nós, artistas latino-americanos, contamos essas histórias, seja em português ou castelhano. É isso que nos une e nos faz parte de um só mundo”.
Submundo cubano
Carlos Celdrán, diretor do grupo cubano Argos Teatro, afirma que vê muita aproximação entre o teatro feito na ilha caribenha e o do Brasil: “São muitas as semelhanças culturais, étnicas, musicais, rítmicas, alimentícias e sociais”.
Ele esteve em São Paulo a convite da Mostra Latino-americana de Teatro de Grupo em 2013, com Talco – Un Drama de Tocador, que apresenta o submundo das drogas e da prostituição em Havana.

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O diretor cubano do Argos Teatro Carlos Celdrán: "Brasileiros são amáveis" - Foto: Eduardo Enomoto

Contudo, no âmbito da produção teatral, Brasil e Cuba tem diferenças, como aponta Celdrán: “Em Cuba o teatro é pago e aprovado pelo Estado. Não existe um teatro comercial estabelecido como acontece no Brasil. Mas, artisticamente, não vejo diferenças; nos dois países coexistem todo tipo de poética teatral”.
O cubano conta que foi bem recebido e que percebeu que “as instituições culturais brasileiras que me convidaram são extremamente organizadas”. Ele também diz que será difícil se esquecer do público brasileiro: “Como espectadores de teatro são esplêndidos, amáveis e muito intensos em suas reações”, afirma.
Celdrán ressalta que todos os grupos de teatro cubano que já vieram ao Brasil tiveram suas viagens pagas pelos festivais e instituições brasileiras que fizeram o convite: “Em troca, os grupos brasileiros, que viajam a Cuba, em muitas ocasiões, pagaram suas viagens, pois Cuba não conta com recursos para arcar com tais despesas”. Ele reforça que viver de teatro em Cuba é questão de resistência e que “a classe teatral vive modestamente” na ilha.
Temática latina

Espetáculos como La Muerte de Un Actor e Talco – Drama de un Tocador, com temas genuinamente latino-americanos, têm sido a tônica do teatro, sobretudo o de grupo e não comercial feito na América Latina. Em 2013, o público paulistano teve a oportunidade de ver no palco do Sesc Pompeia outros dois espetáculos que trouxeram temas pungentes da região para o palco.


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A atriz e diretora chilena Paula Seguel, em Galvarino: visibilidade para histórias latinas - Foto: Pierre Duarte

Em Galvarino, espetáculo da Companhia Teatro Kimen, de Santiago do Chile, apresentado também no Festival Internacional de Teatro de São José do Rio Preto, é contada a história da família da diretora, Paula González Seguel, da etnia mapuche. A peça mostra o descaso governamental com o desaparecimento de um membro da família. “O povo mapuche foi vítima de muitas injustiças. Mas, acho que, mais do que ser mapuche, a injustiça contada na peça aconteceu porque somos pobres. Acho que de alguma maneira o teatro dá visibilidade a isso”, conta a diretora. Ela lembra que o Brasil foi a primeira viagem internacional do grupo e que ficou impressionada em como a plateia paulista recebeu a história. “Acho que esta acolhida aconteceu porque é uma história universal de injustiça”, diz.
Já em Amarillo, do grupo mexicano Teatro Línea de Sombra, descortina-se a indústria de imigração ilegal entre México e Estados Unidos. Antígona González, atriz do grupo, diz que ficou “apaixonada pelos brasileiros”. E afirma: “O tratamento que tivemos no Brasil foi muito melhor do que nos países de primeiro mundo onde estivemos. O Brasil tem uma questão humana muito forte”, aponta.
Raúl Mendoza, que vive o imigrante protagonista da obra, diz que Amarillo é assimilada em toda América Latina. “Todos temos história com imigração. E o tráfico internacional de pessoas sempre foi um excelente negócio. Vamos ao particular para falar do universal. Hoje, há latino-americanos que vão para o Brasil”.
Brasil atrai artistas de países vizinhos

A atual fase econômica brasileira propiciou maiores investimentos na área cultural. E isso tem atraído um número cada vez maior de imigrantes de outros países da América Latina. No caso das profissões ligadas às artes, São Paulo, com sua pujança cultural, tem sido um polo atrativo.

São inúmeras salas de cinema, teatros, escolas de artes, museus e instituições culturais dispostos a investir cada vez mais em novidades.  Somam-se a isso as leis de Incentivo Cultural que propiciam captação de verbas ou mesmo o patrocínio através de editais, sejam dos governos federal, estadual e municipal.

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A atriz peruana Marba Goicochea, no teatro paulistano há dez anos: "sotaque é diferencial" - Foto: Eduardo Enomoto

O Brasil e, sobretudo, São Paulo tem passado por um processo de mercantilização da cultura. Processo que pode propiciar a profissionalização e maior oferta de atividades culturais. A cena teatral paulistana tem atraído atores e encenadores de nossos vizinhos justamente pela possibilidade de, na cidade, se poder viver da profissão. Além disso, a cultura brasileira e a receptividade do povo brasileiro tem sido também um dos motivos de favorecimento desse intercâmbio.
Burocracia complicada
Marba Goicochea, atriz peruana radicada no Brasil, observa que encontrou relativa facilidade em trabalhar com teatro em São Paulo. “Fiz uma viagem ao Brasil para visitar meu irmão, e acabei indo aos Satyros [grupo teatral estabelecido na praça Roosevelt, na capital paulista]. Depois de um tempo, acabei conseguindo um estágio na companhia. A partir disso, fui conhecendo pessoas do meio. Já estou há 11 anos no Brasil”, conta.
Apesar da “burocracia complicada” para se estabelecer no país definitivamente, Marba destaca o fato de ter sido “muito acolhida pelas pessoas, tanto na vida pessoal quanto profissional”. A atriz conta que percebeu mais liberdade no Brasil em relação a obras peruanas. “O Peru é mais conservador. Por exemplo, lá não se vê no palco um [Marquês de] Sade, como tem aqui”.
A peruana não vê seu sotaque como empecilho para atuar em espetáculos falados em português. “Tenho tido a sorte de que justamente essa diferença seja algo que acrescente nos trabalhos que participo no teatro”.

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A atriz chilena-brasileira Paola Dourge: estudos na SP Escola de Teatro e na Escola de Arte Dramática da USP - Foto: Arquivo pessoal

Metade chilena
Paola Dourge, atriz brasileira que foi morar no Chile aos seis anos e voltou ao Brasil já adulta, diz que optou por estudar teatro e trabalhar com ele em São Paulo por conta da gama de possibilidades profissionais que a cidade lhe dá. “Um dos motivos é que existem muito mais oportunidades em termos artísticos, mais editais, mais opções, pois no Chile há poucas oportunidades se compararmos Santiago e São Paulo.”
A atriz, que se diz “metade chilena e metade brasileira”, finalizou em 2013 o curso de atuação na SP Escola de Teatro, mantida pelo Governo de São Paulo. Em 2014, começou a Escola de Arte Dramática da USP (Universidade de São Paulo). Ela, que está há pouco mais de dois anos no Brasil, afirma que tem percebido neste tempo o aumento das tentativas de intercâmbio entre o teatro brasileiro e o que é realizado em outros países da América Latina: “Sinto o movimento em relação a isso, mas poderia ser muito maior”.
Diálogo de fato para um palco latino

As iniciativas de intercâmbio cultural na cena teatral ainda não são ideais, mesmo que a oferta atual seja muito maior que antigamente. O crescimento econômico não possibilitou todavia uma maior integração entre os países latino-americanos. É necessário muito mais iniciativas para que a cena teatral latino americana seja horizontalizada, ou seja, algo diferente de um monólogo ditado pelo Brasil. É preciso que ocorra uma dialética entre os países latino-americanos.


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Cena da peça Talco - Un Drama de Tocador: mundo marginal cubano no palco de SP - Foto: Julio de la Nuez

É exatamente isso que defende o ator boliviano Antonio Peredo, que esteve em São Paulo no começo de 2013 mantido por pelo programa de intercâmbio da SP Escola de Teatro, além de participar do Festibero. “O intercâmbio que existe está circunscrito aos festivais. Contudo, este intercâmbio de espetáculos só permite um breve panorama da atualidade teatral. E não propicia maiores avanços. Os intercâmbios dedicados à formação teatral ainda são esporádicos e apenas começam a serem experimentados”, diz.
Para Peredo é preciso avançar. “Mais do que nos observarmos com admiração, devemos voltar nosso olhar para nós mesmos. Os intercâmbios precisam acontecer não só na educação e circulação, mas também na difusão na coprodução, na reflexão e na pesquisa, que são áreas propícias para o encontro”.
De acordo com o boliviano, só a partir desta perspectiva mais ampla “haverá um enriquecimento para os povos latino-americanos”. O ator mexicano Raúl Mendoza concorda com o colega: “Foram criados muitos guetos. Temos de quebrar as fronteiras e permitir que as pessoas se misturem”, afirma. E não há lugar melhor do que o palco latino para o encontro desta diversidade cultural tão exuberante.
*Maíra de Carvalho Moraes é historiadora formada pela USP (Universidade de São Paulo). Já Miguel Arcanjo Prado é jornalista formado pela UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais). Ambos são pós-graduandos em Mídia, Informação e Cultura pelo CELACC (Centro de Estudos Latino-Americanos sobre Cultura e Comunicação) da ECA (Escola de Comunicações e Artes) da USP. Esta reportagem, originalmente, foi o trabalho final de ambos na disciplina Jornalismo Cultural, ministrada pela Profª Ms. Maria Bernardete Toneto.
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