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Ser de esquerda é não aceitar as injustiças, sejam elas quais forem, como um fato natural. É não calar diante da violação dos Direitos Humanos, em qualquer país e em qualquer momento. É questionar determinadas leis – porque a Justiça, muitas vezes, não anda de mãos dadas com o Direito; e entre um e outro, o homem de esquerda escolhe a justiça.
É ser guiado por uma permanente capacidade de se estarrecer e, com ela e por causa dela, não se acomodar, não se vender, não se deixar manipular ou seduzir pelo poder. É escolher o caminho mais justo, mesmo que seja cansativo demais, arriscado demais, distante demais. O homem de esquerda acredita que a vida pode e deve ser melhor e é isso, no fundo, que o move. Porque o homem de esquerda sabe que não é culpa do destino ou da vontade divina que um bilhão de pessoas, segundo dados da ONU, passe fome no mundo.
É caminhar junto aos marginalizados; é repartir aquilo que se tem e até mesmo aquilo que falta, sem sacrifício e sem estardalhaço. À direita, cabe a tarefa de dar o que sobra, em forma de esmola e de assistencialismo, com barulho e holofotes. Ser de esquerda é reconhecer no outro sua própria humanidade, principalmente quando o outro for completamente diferente. Os homens e mulheres de esquerda sabem que o destino de uma pessoa não deveria ser determinado por causa da raça, do gênero ou da religião.
Ser de esquerda é não se deixar seduzir pelo consumismo; é entender, como ensinou Milton Santos, que a felicidade está ancorada nos bens infinitos. É mergulhar, com alegria e inteireza, na luta por um mundo melhor e neste mergulho não se deixar contaminar pela arrogância, pelo rancor ou pela vaidade. É manter a coerência entre a palavra e a ação. É alimentar as dúvidas, para não cair no poço escuro das respostas fáceis, das certezas cômodas e caducas. Porém, o homem de esquerda não faz da dúvida o álibi para a indiferença. Ele nunca é indiferente. Ser de esquerda é saber que este “mundo melhor e possível” não se fará de punhos cerrados nem com gritos de guerra, mas será construído no dia-a-dia, nas pequenas e grandes obras e que, muitas vezes, é preciso comprar batalhas longas e desgastantes. Ser de esquerda é, na batalha, não usar os métodos do inimigo.
Fernando Evangelista

terça-feira, setembro 28, 2010

Uma nação de pobres graças a Washington






Uma nação de pobres graças a Washington

As famílias estadunidenses já estão há anos imersas numa vertiginosa espiral de decadência econômica, uma involução que não começou com essa recessão e não terminará tão cedo, a menos que haja uma intervenção massiva e sustentada. Essa é a dura realidade, uma verdade tão clara como o fato de que pouquíssimas pessoas no governo estejam preparadas para encará-la.

Por Kai Wright
[27 de setembro de 2010 - 10h14]

O ponto que mais desnortea a cultura política no coração de Washington não é a repetidamente desrespeitosa linha divisória partidária, e sim o perpétuo consenso de que no futuro tudo será melhor, mesmo quando todos os sinais evidenciam o contrário. As famílias estadunidenses já estão há anos imersas numa vertiginosa espiral de decadência econômica, uma involução que não começou com essa recessão e não terminará tão cedo, a menos que haja uma intervenção massiva e sustentada. Essa é a dura realidade, uma verdade tão clara como o fato de que pouquíssimas pessoas no governo estejam preparadas para encará-la.

Na quinta passada, o Censo dos Estados Unidos publicou dados que mostram uma pobreza sem precedentes no ano 2009 (link em inglês), ano em que quase 44 milhões de estadunidenses viveram abaixo da linha da pobreza, mais do que o Censo registrou nos 51 anos em que esse indicador é publicado. É possível que o fato tenha sido o titular menos surpreendente do ano: é tão certo que esses números provém de nosso processo eleitoral como é tão certo que o dia precede a noite.

Tampouco causa surpresa ler que em 2009 foi pior. O índice total de pobreza alcançou 14,3% (uma em cada sete pessoas), mais de um quarto da população negra e de origem latino-americana no país viveu nessa situação no ano passado. Os dados sobre a pobreza na infância são os mais reveladores: quase 36% das crianças negras e 33% das crianças latino-americanas eram pobres em 2009, igual a 38,5% de todas as famílias a cargo de mães solteiras. Façamos uma pausa para tratar de digerir essa informação: mais de um terço de todas as crianças negras de origem latino-americana crescem como indigentes. Frente a esse dado, com que cara podemos discutir articuladamente sobre um futuro melhor?

Nos convém, com nação, perguntarmos seriamente por que os problemas das famílias negras e de origem latino-americana se entendem melhor como indicadores previsíveis do que como dados atípicos.

A perda massiva de empregos entre 2008 e 2009 (o desemprego cresceu em 3,5%) é, sem dúvida, o principal fator que explica o aumento imediato da pobreza. Além disso, aqueles angustiantes meses não foram nem o princípio nem o final do problema. A atual recessão tem sido impiedosa com os estadunidenses negros por diversas razões, mas uma das mais importantes diz respeito ao fato de que os bairros negros nunca superaram a recessão de 2001. Isso significa que foi um grupo mais vulnerável à depressão do mercado imobiliário que levou a economia nacional à beira do precipício.

Agora sabemos que os bancos outorgaram empréstimos incobráveis de maneira deliberada e que os reguladores fizeram vista grossa das sobras, assinadas em tempo real, que indicavam fraude nos empréstimos e previam o desastre. Essa situação continuou impune porque não havia nada de novo debaixo do sol. A demanda de Wall Street para gerar receitas a curto prazo alimentava decisões irresponsáveis dos bancos em empréstimos muito antes da crise dos títulos subprime. Todas as famílias que entrevistei enquanto cobria a crise haviam sido induzidas a esses perigosos empréstimos num esforço para sair de enormes dúvidas contraídas pelo uso de cartões de crédito, financiamentos para estudantes e muitas outras armadilhas espalhadas por toda a economia nacional.

À medida que o Congresso trabalha para a eliminação dessas armadilhas, os bancos e as grandes corporações não farão nada senão colocar outras. E estão buscando novas e criativas maneiras de enganar os seus clientes e convencê-los a aceitar taxas de cheque especial exorbitantes, bem como mecanismos que possam ampliar o mercado para os empréstimos em folha. As seguradoras estão aumentando as taxas antes que entrem em vigor as reformas e as empresas de cartões de crédito estão inventando uma forma de burlar os novos mecanismos de proteção ao consumidor... e isso é apenas o que vem à luz. O certo é que cada vez há mais pessoas que levam mais de seis meses seguidos sem emprego, e cada vez mais famílias serão tão vulneráveis ao efeito predador dos bancos como tradicionalmente foram as famílias negras e de origem latino-americana.

Tudo isso explica porque a tarefa mais importante em Washington poderia ser o novo organismo de controle para a proteção financeira do consumidor, criado graças ao projeto de reforma de Wall Street desse ano.

Os representantes de Wall Street que compareceram ao Congresso e se esforçaram para barrar o projeto do novo organismo de controle. Tentaram bloquear a proposta de criá-lo como agência independente, de maneira que terá sua sede dentro do Banco Central e operará com um pressuposto próprio. É importante destacar que os mesmo reguladores que aprovaram o comportamento questionável dos bancos terão poder de veto sobre os trabalhos de vigilância do novo organismo. Isso significa que a única via para que essa oficina tenha êxito consiste em ter uma pessoa forte e com bom senso tomando as rédeas, alguém muito próximo da presidência... alguém como Elizabeth Warren, que concebeu e promoveu o novo organismo, e a quem os protetores dos bancos trataram de bloquear de todas as maneiras. No início do debate em torno dessa oficina, os republicanos chegaram ao ponto de redigir uma emenda com o propósito explícito de evitar que Warren a dirigisse.

No entanto, o presidente Obama está disposto a nomear Warren como chefe interina, o que evitará um conflito na ratificação. Seria conveniente ir ainda mais além, mas o movimento é, antes de tudo, um espetáculo atrasado de suposta resistência da batalha que travamos.

A Casa Branca também reagiu a esse sombrio informe sobre a pobreza ao destacar que o panorama poderia ser ainda mais desalentador se não tivesse recorrido à política de estímulo econômico no ano passado. É verdade. Tal como destacou o Centro de Política e Prioridades do Orçamento, os subsídios relacionados ao desemprego evitaram que 3,3 milhões de pessoas se somassem às filas dos mais pobres no ano passado. Seguramente, em algum momento do restante do ano as estatísticas do Censo irão deslocar outros milhões da cifra de pobres quando se incluir na equação os créditos fiscais e os cupons para comprar alimentos.

Claro que a Casa Brance e os democratas no Congresso não pretendem convencer o eleitorado de merecer o crédito por essa façanha, já que é como resistir a um furacão armados de guarda-chuvas. Já havia cerca de 44 milhões de pessoas em situação de pobreza quando o Congresso repartiu os centavos do estímulo de 2009. Certamente essa cifra cresceu em 2010 devido ao incremento do emprego.

Cabe notar que as únicas pessoas que evitaram mergulhar na pobreza são as da terceira idade. Enquanto o índice de pobreza subiu em praticamente todos os grupos demográficos, esse grupo continuou com uma diminuição que já dura décadas e caiu ao nível mais baixo registrado. Por que? A resposta é a segurança social ou, para dizer sem rodeios, o gasto governamental destinado para que os mais vulneráveis não toquem no fundo.

Além disso, não é coincidência que a pobreza alcance altíssimas cifras entre as mães e as crianças. Por que? Porque nas últimas duas décadas destruímos cada um dos programas criados para tirar esses grupos da pobreza. Segundo o Economy Policy Institute em uma recente análise que aborda a “década perdida” de 2000 a 2010, “À medida que as políticas de combate à pobreza chegam a depender mais do trabalho remunerado como principal via para sair da miséria, a rede de segurança perdeu eficácia como fator para atenuar as privações econômicas quando a economia e o mercado de trabalho vão mal".

A pobreza de hoje é o pedágio acumulado por duas forças que avançaram em cooperação durante as últimas décadas: a apropriação da riqueza familiar pelas mãos das grandes corporações e a destruição bipartidária do abrigo para onde essas famílias empobrecidas pudessem recorrer. Travamos uma larga e difícil guerra contra a pobreza para evitar acabar exatamente onde nos encontramos agora. Mas a revolução reaganiana foi o prelúdio de uma guerra contra o governo para reverter qualquer progresso alcançado. Apesar dos protestos de Bill Clinton, os assim chamados democratas moderados faz muito tempo que se deram por vencidos na guerra de Reagan. Como consequênca, temos um governo travado no momento em que mais necessitamos dele. A verdade, simples e rasa, é que a menos que alguém em Washington possa e queira reunir a fortaleza para reconstruir o governo e haja um piso sólido e estável que contenha o povo, os EUA seguirão caindo.
*Revista Forum

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