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Ser de esquerda é não aceitar as injustiças, sejam elas quais forem, como um fato natural. É não calar diante da violação dos Direitos Humanos, em qualquer país e em qualquer momento. É questionar determinadas leis – porque a Justiça, muitas vezes, não anda de mãos dadas com o Direito; e entre um e outro, o homem de esquerda escolhe a justiça.
É ser guiado por uma permanente capacidade de se estarrecer e, com ela e por causa dela, não se acomodar, não se vender, não se deixar manipular ou seduzir pelo poder. É escolher o caminho mais justo, mesmo que seja cansativo demais, arriscado demais, distante demais. O homem de esquerda acredita que a vida pode e deve ser melhor e é isso, no fundo, que o move. Porque o homem de esquerda sabe que não é culpa do destino ou da vontade divina que um bilhão de pessoas, segundo dados da ONU, passe fome no mundo.
É caminhar junto aos marginalizados; é repartir aquilo que se tem e até mesmo aquilo que falta, sem sacrifício e sem estardalhaço. À direita, cabe a tarefa de dar o que sobra, em forma de esmola e de assistencialismo, com barulho e holofotes. Ser de esquerda é reconhecer no outro sua própria humanidade, principalmente quando o outro for completamente diferente. Os homens e mulheres de esquerda sabem que o destino de uma pessoa não deveria ser determinado por causa da raça, do gênero ou da religião.
Ser de esquerda é não se deixar seduzir pelo consumismo; é entender, como ensinou Milton Santos, que a felicidade está ancorada nos bens infinitos. É mergulhar, com alegria e inteireza, na luta por um mundo melhor e neste mergulho não se deixar contaminar pela arrogância, pelo rancor ou pela vaidade. É manter a coerência entre a palavra e a ação. É alimentar as dúvidas, para não cair no poço escuro das respostas fáceis, das certezas cômodas e caducas. Porém, o homem de esquerda não faz da dúvida o álibi para a indiferença. Ele nunca é indiferente. Ser de esquerda é saber que este “mundo melhor e possível” não se fará de punhos cerrados nem com gritos de guerra, mas será construído no dia-a-dia, nas pequenas e grandes obras e que, muitas vezes, é preciso comprar batalhas longas e desgastantes. Ser de esquerda é, na batalha, não usar os métodos do inimigo.
Fernando Evangelista

quarta-feira, julho 13, 2011

Possibilidade de moratória nos EUA ameaça o mundo

Autoridades em economia política como Maria da Conceição Tavares e Luiz Gonzaga Belluzzo, entre outros, julgavam que a dívida dos Estados Unidos não devia ser considerada um problema. Isto porque foi contraída em dólares e teoricamente pode ser paga sem maior esforço que a mera emissão de papel-moeda pelo Federal Reserve (banco central estadunidense). A ideia, de aparência lógica e simplória, não sobrevive aos fatos.


Garantia dramática
Nesta segunda-feira (11), Barack Obama assegurou, durante entrevista coletiva na Casa Branca, que os Estados Unidos “nunca deixaram nem deixarão de pagar suas dívidas”. A garantia dramática foi feita após encontro do presidente com lideranças dos partidos Republicano e Democrata do Congresso. Obama tenta convencer os parlamentares a apoiar um novo teto para a dívida pública. Não é uma tarefa fácil num legislativo controlado por uma oposição que tem os olhos voltados para o pleito presidencial de 2012.
No domingo (10), a diretora-gerente do FMI, Christine Lagarde, também advertiu para a possibilidade de moratória na maior economia capitalista do mundo, que será inevitável caso não se viabilize um acordo entre o governo e o Congresso. As consequências para a economia mundial, ainda convalescente da crise propagada pelo império em 2008 e ameaçada pela turbulência financeira na Europa, podem ser trágicas. A inadimplência americana seria "um golpe tremendo às bolsas ao redor do globo, porque os Estados Unidos são um país muito importante para o restante do mundo", alertou em entrevista à rede ABC.

4/5 do PIB mundial

Atualmente, o limite de endividamento dos EUA é de US$ 14,3 trilhões (cerca de R$ 23,2 trilhões), o que significa 92,3% de todas as riquezas produzidas por lá em um ano, ou seja, do Produto Interno Bruto (PIB). É necessário esclarecer que os números abrangem apenas os débitos públicos. O endividamento total do país (governos, empresas e indivíduos) é bem maior. Equivalia em 2009, segundo dados do FMI, a cerca de US$ 49 trilhões, ou 4/5 do PIB mundial.
Esta não é a primeira vez, e certamente não será a última, que o dilema (de aumentar o teto da dívida pública) é apresentado ao Congresso dos EUA. A questão envolve interesses contraditórios e tem múltiplos aspectos. O endividamento cresceu de forma extraordinária nos últimos anos em função da resposta das autoridades econômicas à crise, que implicou numa brutal elevação das despesas públicas e emissões bilionárias de papel-moeda.

Intervenção ineficaz

A intervenção do Estado, voltada basicamente para o resgate de bancos e banqueiros falidos, não revelou eficiência no combate à crise econômica ou pelo menos da chamada economia real. O índice de desemprego continua elevado (voltou a subir em junho para 9,2%), sinalizando uma economia estagnada e em desaceleração mais de três anos após o início da chamada Grande Recessão, no final de 2007.
É neste contexto que ocorrem os conflitos em torno do nível de endividamento e controle do déficit público. Preocupado com a economia, que pode determinar seu destino nas eleições presidenciais do próximo ano, Obama quer reduzir os cortes e aumentar os impostos das camadas mais ricas da população.

Silêncio sobre gastos militares

Os republicanos querem mais cortes e menos impostos para os poderosos. Parece uma polêmica entre esquerda e direita, conservadores e progressistas, mas não é este o caso. Os gastos militares do império, que ascendem a mais de US$ 1 trilhão de acordo com alguns especialistas, não são questionados por democratas ou republicanos, muito embora pesquisa recente revele que mais de 70% dos contribuintes norte-americanos são contra a intervenção militar do império em outros países, como acontece nesses dias na Líbia, Afeganistão e Iraque.
Não restam dúvidas que os Estados Unidos, bem mais que Grécia e Portugal, estão excessivamente endividados. A dívida, negligenciada por alguns economistas iludidos pelo suposto poder do dólar, é o pano de fundo da crise que se instalou em 2007 e contaminou o mundo, desdobrando-se nos dramas que estão em curso na zona euro.
Superconsumo e superprodução
O excesso de endividamento foi fomentado pela política monetária do país, marcada por juros negativos, já na gestão de Alan Greenspan no banco central e especialmente a partir da recessão de 2001, quando a taxa básica foi reduzida a 1%. O crédito, farto, barato e fácil, alimentou a bolha imobiliária e o consumismo desbragado da sociedade, resultando no que chegou a ser caracterizado como “crise do subprime” (hipotecas com alto risco de inadimplência).
Com ampla liquidez, o sistema financeiro emprestou até a quem não tinha renda, emprego ou patrimônio. Isto alavancou, a um só tempo, o superconsumo interno e a superprodução mundial de mercadorias. O processo de reprodução ampliada do capital em todo o mundo foi fortemente influenciado pela dívida e o déficit comercial norte-americano transformou-se numa via privilegiada para a realização de capitais estrangeiros de diferentes origens (Japão, Alemanha, China). A hipertrofia do sistema financeiro, chamada por alguns de "financeirização da economia", também tem a ver com os débitos do império.
Com a crise, chegou também a hora da verdade, pois esta funciona, em certa medida, como um purgante para a economia enferma, impondo o ajuste interno e um maior equilíbrio entre poupança, consumo e investimentos. Mas a mão forte do Estado imperialista foi acionada em sentido contrário, inclusive impedindo a destruição de capital fictício.
Parasitismo
A dívida reflete o crescente parasitismo da economia norte-americana, que ainda hoje vive bem além dos próprios meios que produz, à custa de trabalho alheio (no caso, de outros povos). É produto do hiato entre a poupança interna (“chocantemente baixa” segundo Joseph Stiglitz) e os investimentos, preenchido pelo capital estrangeiro. Compreende-se, portanto, que mais de dois terços da dívida pública do país sejam dívida externa.
Não foram apenas economistas renomados que compraram e difundiram a falsa ideia de que os EUA não deviam se preocupar com dívidas, pois mantêm o poder de emissão da moeda mundial. Os governantes também se iludiram e não vacilaram em estimular o parasitismo. Certamente a posição especial do dólar na economia mundial favoreceu ilusões e permitiu a acumulação de déficits externos que já teriam levado qualquer outro país do mundo à bancarrota.
As autoridades apelaram à emissão para resgatar títulos do Tesouro. Isto produziu inflação no mundo e apressou a desmoralização do dólar, mas não tirou a economia estadunidense do pântano. A crise do capitalismo norte-americano é profunda e estrutural. Sinaliza o esgotamento da ordem econômica internacional, fundada com base na realidade que emergiu após a 2ª Guerra Mundial e ancorada na hegemonia dos EUA e supremacia do dólar. O mundo mudou e o império já não é o mesmo. A necessidade de uma nova ordem mundial não é apenas um desejo dos povos. É um imperativo candente dos novos tempos.
*Carcará

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