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Ser de esquerda é não aceitar as injustiças, sejam elas quais forem, como um fato natural. É não calar diante da violação dos Direitos Humanos, em qualquer país e em qualquer momento. É questionar determinadas leis – porque a Justiça, muitas vezes, não anda de mãos dadas com o Direito; e entre um e outro, o homem de esquerda escolhe a justiça.
É ser guiado por uma permanente capacidade de se estarrecer e, com ela e por causa dela, não se acomodar, não se vender, não se deixar manipular ou seduzir pelo poder. É escolher o caminho mais justo, mesmo que seja cansativo demais, arriscado demais, distante demais. O homem de esquerda acredita que a vida pode e deve ser melhor e é isso, no fundo, que o move. Porque o homem de esquerda sabe que não é culpa do destino ou da vontade divina que um bilhão de pessoas, segundo dados da ONU, passe fome no mundo.
É caminhar junto aos marginalizados; é repartir aquilo que se tem e até mesmo aquilo que falta, sem sacrifício e sem estardalhaço. À direita, cabe a tarefa de dar o que sobra, em forma de esmola e de assistencialismo, com barulho e holofotes. Ser de esquerda é reconhecer no outro sua própria humanidade, principalmente quando o outro for completamente diferente. Os homens e mulheres de esquerda sabem que o destino de uma pessoa não deveria ser determinado por causa da raça, do gênero ou da religião.
Ser de esquerda é não se deixar seduzir pelo consumismo; é entender, como ensinou Milton Santos, que a felicidade está ancorada nos bens infinitos. É mergulhar, com alegria e inteireza, na luta por um mundo melhor e neste mergulho não se deixar contaminar pela arrogância, pelo rancor ou pela vaidade. É manter a coerência entre a palavra e a ação. É alimentar as dúvidas, para não cair no poço escuro das respostas fáceis, das certezas cômodas e caducas. Porém, o homem de esquerda não faz da dúvida o álibi para a indiferença. Ele nunca é indiferente. Ser de esquerda é saber que este “mundo melhor e possível” não se fará de punhos cerrados nem com gritos de guerra, mas será construído no dia-a-dia, nas pequenas e grandes obras e que, muitas vezes, é preciso comprar batalhas longas e desgastantes. Ser de esquerda é, na batalha, não usar os métodos do inimigo.
Fernando Evangelista

quinta-feira, abril 26, 2012

Poeta, Ayres Britto inclui versos em seus votos 


STF 10 x 0 Globo/Kamel. Cotas raciais são aprovadas


"A partir dessa decisão, o Brasil tem mais um motivo para olhar no espelho da história e não se corar de vergonha". Ayres Brito


Por Saul Tourinho Leal




O Supremo Tribunal Federal tem como presidente o ministro Carlos Ayres Britto. Presidir a Corte propicia muitas atribuições, dentre elas, montar a pauta de julgamento do Tribunal. Quase sempre esse poder é exercido à imagem e semelhança do presidente. Dentro desse feixe de idéias é que surge o atual presidente do STF, ministro Ayres Britto.
Poeta, Britto insere em seus votos as marcas da sua caminhada, seja pela poesia, seja pela sonoridade das frases construídas, seja pelas menções filosóficas ou, até mesmo, pela sua espirituosidade. O ministro tem a alma nordestina refletida em cada degrau da sua vida pública. Na envolvência do ritmo das orações que constrói, escandalizou os duros de coração e arrebatou a sensibilidade daqueles que não amordaçaram a boca da alma.
Nem bem iniciava suas atividades no STF, citou Luís de Camões. O então presidente da Corte, Nelson Jobim, reagiu: “Até onde sei, Camões não era jurista!” – disse. “Mas era sábio” – respondeu Britto, sem sair da linha.
Seria possível estabelecer conexões entre a poesia do ministro Ayres Britto e as decisões proferidas por ele no STF?
Fazendo uma leitura atenta dos versos do poeta-jurista, conseguimos identificar sua índole, sua intimidade, o ethos que o conduz e a sua maneira de ver o mundo. Muitas vezes ele extrai dos versos as respostas para os mais intrigantes casos submetidos à sua apreciação.
A poesia de Britto é ele mesmo retratado em versos. Não é o Ministro quem as escreve. Ela é que o convida a servir de instrumento para a imortalidade conseguida com o registro no papel. Navegando pelo mar poético de Britto – um mar ora calmo, ora revolto – é possível perceber os eixos que ligam a sua arte aos seus votos.
Na obra Varal das Borboletras, ele inicia com a citação de T.S. Eliot:
Eu disse à minha alma, fica tranquila e espera...
Até que as trevas sejam luz,
e a quietude seja dança[1].
O ministro leu esse trecho quando estava ao lado da Presidente da República, Dilma Roussef, na solenidade de posse como Presidente do STF. Seus escritos já indicavam a ligação existente entre o poeta-jurista e o poeta modernista, dramaturgo e crítico literário inglês nascido nos Estados Unidos, vencedor do Prêmio Nobel de Literatura de 1948.
O ministro passará pouco tempo na presidência do STF. São somente sete meses. O número é cabalístico. A Grécia tinha sete sábios e a idade média cristã tinha sete artes livres (gramática, retórica, dialética, aritmética, geometria, música, astronomia). O que pensar da atuação de Britto na presidência do STF? Ele próprio responde num de seus versos: “Ninguém veio ao mundo para ser figurante, mas fulgurante”[2].
Durante esses sete meses, o STF será desafiado a apreciar questões que envolvem o Direito Econômico, o patrimônio nacional e a dinâmica dos mercados. Não raramente a pauta da Corte é contemplada com temas de forte apelo econômico que evidencia duelos entre as forças do capital e o estatismo Nacional. Olhando retrospectivamente, percebe-se que a poesia de Ayres Britto anunciava qual seria sua posição no julgamento do caso apreciado pelo STF que discutia a manutenção, ou não, do monopólio dos Correios brasileiro.
No poema ‘Neoliberalismo’, Britto antecipou sua visão do universo econômico. Segundo ele:
A onda neoliberal
É uma outra visão:
Pra cada regra moral
Há um monte de exceção[3].
O poema acima mostra a reticência para com o modelo neoliberal. Para ele, o modelo excepciona demasiadamente regras morais. É como se o modelo desvirtuasse o próprio homem. A visão do presidente sobre o poder do mercado foi antecipada mais uma vez em outro dos seus versos:
O pior do Mercado é que ele já passou de
motor a mentor da História[4].
Mais adiante, no poema ‘Wall Street’, Carlos Britto registrou sua opinião sobre esse importante centro financeiro:
Coração das finanças do mundo.
Coração de pedra.
Coronárias de chacal.
O anticoração[5].
Vejam que os mercados e o neoliberalismo aparecem conectados com uma visão de alerta, de necessária reconstrução do que está posto. Ter essa percepção é de fundamental importância para entendermos a lógica que conduz o ministro quando desafiado a pensar conflitos judicializados que envolvem a dinâmica do capitalismo, a lógica dos mercados e a força do dinheiro. Como ele votaria, por exemplo, acerca da possibilidade de pessoas jurídicas realizarem doações de campanha? Essa indagação está posta no STF por meio de uma ação direta de inconstitucionalidade ajuizada pelo Conselho Federal da OAB.
O sentimento existente em relação aos Estados Unidos é externalizado em dois de seus poemas. Em “De Roma aos States”, ele diz:
Não é por falar mal,
Mas o mal de todo império
É que ele se torna o império do mal[6].
Há outro poema que revela algo além da sua visão sobre os Estados Unidos. No verso abaixo, é possível realizar um exercício visando identificar qual a visão que Britto terá caso tenha de proferir voto no julgamento da ação que questiona o decreto que regulamentou o dispositivo constitucional que reconheceu a propriedade definitiva dos ocupantes das terras tidas como antigos quilombos. O poema “Dois pesos, duas medidas”, deve ser lido com sensibilidade. Vejamos:
Os Sem-terra se apossam de fazendas alheias
E são postos a correr pela Polícia.
Os Estados Unidos se apossam de pátrias alheias
E eles mesmos são a Polícia
Os Estados Unidos se proclamam
O xerife do mundo
E o mundo se pergunta,
Acabrunhado:
E quem pediu para ser xerifado?[7]
Em junho de 2011 o STF apreciava a constitucionalidade da chamada Marcha da Maconha. Ao chegar o momento da votação, o Ministro utilizou um dos versos imortalizado na obra Varal das Borboletras: “a liberdade de expressão é a maior expressão da liberdade”[8]. O voto foi pela constitucionalidade da Marcha dentro de uma linha de raciocínio empregada em outras oportunidades nas quais o que surgiu em discussão foi a liberdade de expressão. Basta recordar o voto favorável à não-recepção da Lei de Imprensa pela Constituição Federal.
Ao votar a respeito da possibilidade de um decreto do governador do Distrito Federal impedir a manifestação de populares da Praça dos Três Poderes, o ministro Britto afirmou que o direito de reunião chega a ser sacrossanto. Em um dos seus poemas o ministro fez registro que deixa evidente a coerência do seu pensamento poético com a decisão proferida nesse caso:
O silêncio das bocas unidas
Costuma ser inventivo.
É um silêncio quente.
Altivo.
- Um silêncio eloqüente[9].
Na temática tributária, os versos são proféticos. Quando o ministro apreciou o caso que discutia se a imunidade tributária prevista pela Constituição Federal para templos religiosos poderia se aplicar aos cemitérios, ele registrou: “Eu tendo a reagir a ideia de que a longa manus tributária do Poder Público alcança a última morada do indivíduo. Quer dizer, nem a última morada do indivíduo é subtraída à longa manus fiscal”. O ministro votou pela aplicação da imunidade aos cemitérios. A postura de defesa dos contribuintes pessoas físicas foi anunciada em um verso do ministro:
O governo confunde FISCO com confisco.
Até o pôr-do-sol por trás dos prédios incrementa o IPTU[10].
No discurso de posse como presidente do STF, o ministro afirmou: “Todos nós magistrados, quando vamos nos recolher à noite, para o merecido sono, dizemos mentalmente ou inconscientemente, ‘Senhor, não nos deixeis cair em tanta ação’”. A expressão foi retirada de um dos poemas do seu livro Varal das Borboletras, no qual o poeta-jurista deixou consignado:
Santa Maria do desestresse,
Não nos deixeis cair em tanta ação[11].
No STF, chamado a decidir acerca da continuidade, ou não, da ação penal contra um caseiro que furtou cinco galinhas do seu patrão, O ministro aplicou o chamado princípio da insignificância, extinguindo a ação penal. Para ele, a conduta do caseiro foi devida “muito mais a extrema carência material do paciente do que indícios de um estilo de vida em franca aproximação da delituosidade”. A posição poderia ter sido antevista da leitura de um dos seus poemas:
Três meninos-de-rua a furtar cenouras numa hortaliça
E as cenouras a se dar a eles com um sumarento gosto de justiça[12].
Quanto ao emblemático caso do Mensalão, o ministro Ayres Britto tem se manifestado na imprensa qualificando o caso como o mais importante julgamento da história do Supremo. Inúmeros observadores tentam decifrar qual seria o seu voto. Os poemas de Britto anunciam sua posição:
Que danosa persistência:
A influência do tráfico e o tráfico de influência[13].
Ao proferir voto mantendo preso o então governador do Distrito Federal, José Roberto Arruda, Britto tornou célebre uma frase: “Há quem chegue às maiores altura, só para cometer as maiores baixezas”. A postura foi coerente com o que ficou registrado em um dos seus versos na obra Varal das Borboletras: “Tenho visto canetas caríssimas em mãos que não valem nada”[14].
Quanto às comissões parlamentares de inquérito promovidas pelo Congresso Nacional, outro verso expõe sua opinião a respeito dos trabalhos investigativos realizados no âmbito do Parlamento. Ele diz: “CPI que não dá em nada é minha pizza despreferida”[15].
Outra posição do ministro antecipada em seus poemas foi a manifestada no julgamento, pelo STF, da ação movida pelo Conselho Federal da OAB pleiteando a revisão da Lei de Anistia. Na oportunidade, o Ministro entendeu que crimes hediondos e equiparados a estes, como tortura e estupro, não foram anistiados pela lei de 1979. A posição do Ministro guarda sintonia com a poesia-protesto trazida na obra A Pele no Ar. No poema “Pinochet em Londres” o ministro estampou a sua opinião sobre torturadores:
Prenderam Pinochet.
Que bela oportunidade!
O animal cometeu crimes
Contra a humanidade[16].
Enquanto o país aguardava a decisão do STF acerca do reconhecimento jurídico das uniões homoafetivas, a posição do ministro Carlos Ayres Britto estava contida no seu poema Experiência:
Há 45 anos atrás
Eu tinha treze anos.
Poucas idéias na cachola,
É verdade.
Mas sonhos em profusão
E uma experiência enorme
No soltar as amarras desse navio
De nome coração[17].
Ao proferir o voto, Britto registrou: “É a perene postura de reação conservadora aos que, nos insondáveis domínios do afeto, soltam por inteiro as amarras desse navio chamado coração”. Percebam que esse último trecho - “amarras desse navio de nome coração” - é o trecho final do poema acima.
A desigualdade é outra problemática que afeta a trajetória poética de Ayres Britto, deixando-o visivelmente machucado. No poema “Doença Braba”, o poeta denuncia a chaga da ‘injustiça social” da seguinte forma:
O mundo padece de uma doença antiga,
Dolorosa,
uma doença que debilita o mundo
e o torna feio,
E que avança tanto pelas entranhas do mundo
que eu temo que ela se torne incurável.
Essa doença braba que rói as entranhas do mundo
como se fosse motor-serra a derrubar florestas
é a doença que atende pelo nome espectral,
o odiento nome de
INJUSTIÇA SOCIAL[18].
Quando à eficácia dos direitos sociais, a preocupação do ministro com a temática moradia é retratada no poema abaixo:
Tenho que há moradores de rua em Brasília.
- Tantos, que já vão pra lá de mil...
Tenho que esfregar essa vergonha na cara do Brasil[19].
Confirmando a sensibilidade anunciada nos versos acima, o ministro Ayres Britto votou no STF pela impenhorabilidade do imóvel que constituir bem de família. Para o ministro, o direito à moradia, constante na Constituição Federal, é irrenunciável, não podendo ser mitigado por um contrato de fiação.
O Presidente do STF não parece deslumbrado com o cargo. Sua humildade permanece. No poema “Indiozinho”, ele revela o que sente quando o chamam de “ministro”:
Hoje me chamam de ministro
E eu decido sob respeitável toga.
Meu coração, porém, não mudou nada.
Continuo um romântico indiozinho
a remar sua piroga
e a cismar por entre as árvores, à noitinha,
Vendo em cada pirilampo e em cada estrela
Os faiscantes olhos da namoradinha[20].
Ao proferir o voto sobre a recepção, ou não, da Lei de Imprensa, o ministro uniu a liberdade de expressão à democracia. Isso, ele já tinha feito no seu poema “Primeiro botão”, no qual registrou:
O que quer que seja
pode ser dito por quem quer que seja.
- Esse primeiro botão que eu trançaria
No colar de flores da Democracia[21].
Outro poema do ministro anuncia sua visão contrária às interpretações originalistas que remetem ao ideal constituinte a identificação dos enunciados constitucionais. No poema “Passado”, o ministro Ayres Britto torna público o seu pensamento acerca da possibilidade do passado governar o futuro. Ele diz:
Que o passado esteja diante de nós,
Vá lá...
Mas o passado adiante de nós,
Sai pra lá...[22]
O ideal de igualdade, eixo temático a nortear inúmeras decisões do STF, é alvo da atenção do poeta. Ele diz no poema “Isonomia”:
Deus é o rei
E a Terra a sua rainha.
Dessa união só podem nascer príncipes.
Não súditos e muito menos escravos,
Porque tudo é uma só realeza.
- Devíamos nos tratar por “alteza”[23].
Por fim, saudando o ministro Britto por ocasião da sua posse na Presidência do STF, o ministro Celso de Mello afirmou que o novo Presidente teve significativa participação na construção de uma expressiva “jurisprudência das liberdades”. A liberdade, sem sombra de dúvida, é um dos valores de maior destaque na construção poética de Britto. Tanto assim o é que um dos seus mais belos poemas é registrado a ela. Vejamos os trechos do poema “Silogismo”:
A Autoridade não tem autoridade
Pra dizer qual parte do seu corpo a imolar
Em favor da Liberdade.
A Liberdade é que tem autoridade
Sobre o tanto a cortar da sua carne
Em favor da Autoridade.
Logo,
O princípio de maior autoridade
Não é o princípio da Autoridade.
- É o da Liberdade[24].
Eis a trajetória poética do novo presidente do STF, Carlos Ayres Britto. Por meio desse passeio na arte do homem é possível antever o raciocínio do ministro no momento de decidir dilemas da vida que lhe são entregues em razão do ofício que desempenha como julgador da Suprema Corte.
Seus versos refletem o que a alma não consegue sufocar. Suas decisões não estão afastadas desse fenômeno.
*Mariadapenhaneles

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