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Ser de esquerda é não aceitar as injustiças, sejam elas quais forem, como um fato natural. É não calar diante da violação dos Direitos Humanos, em qualquer país e em qualquer momento. É questionar determinadas leis – porque a Justiça, muitas vezes, não anda de mãos dadas com o Direito; e entre um e outro, o homem de esquerda escolhe a justiça.
É ser guiado por uma permanente capacidade de se estarrecer e, com ela e por causa dela, não se acomodar, não se vender, não se deixar manipular ou seduzir pelo poder. É escolher o caminho mais justo, mesmo que seja cansativo demais, arriscado demais, distante demais. O homem de esquerda acredita que a vida pode e deve ser melhor e é isso, no fundo, que o move. Porque o homem de esquerda sabe que não é culpa do destino ou da vontade divina que um bilhão de pessoas, segundo dados da ONU, passe fome no mundo.
É caminhar junto aos marginalizados; é repartir aquilo que se tem e até mesmo aquilo que falta, sem sacrifício e sem estardalhaço. À direita, cabe a tarefa de dar o que sobra, em forma de esmola e de assistencialismo, com barulho e holofotes. Ser de esquerda é reconhecer no outro sua própria humanidade, principalmente quando o outro for completamente diferente. Os homens e mulheres de esquerda sabem que o destino de uma pessoa não deveria ser determinado por causa da raça, do gênero ou da religião.
Ser de esquerda é não se deixar seduzir pelo consumismo; é entender, como ensinou Milton Santos, que a felicidade está ancorada nos bens infinitos. É mergulhar, com alegria e inteireza, na luta por um mundo melhor e neste mergulho não se deixar contaminar pela arrogância, pelo rancor ou pela vaidade. É manter a coerência entre a palavra e a ação. É alimentar as dúvidas, para não cair no poço escuro das respostas fáceis, das certezas cômodas e caducas. Porém, o homem de esquerda não faz da dúvida o álibi para a indiferença. Ele nunca é indiferente. Ser de esquerda é saber que este “mundo melhor e possível” não se fará de punhos cerrados nem com gritos de guerra, mas será construído no dia-a-dia, nas pequenas e grandes obras e que, muitas vezes, é preciso comprar batalhas longas e desgastantes. Ser de esquerda é, na batalha, não usar os métodos do inimigo.
Fernando Evangelista

sábado, maio 24, 2014

Pedimos que o Brasil substitua seus tanques de guerra por tratores agrícolas”, diz senador do Haiti



Haitiano Jean-Charles Moise esteve esta semana no Brasil para reforçar a exigência da retirada de todas as tropas da ONU no Haiti, lideradas por soldados brasileiros

Por Vinicius Gomes
Quando o Brasil foi selecionado pelo Conselho de Segurança da ONU para liderar o Minustah (Missão das Nações Unidas para Estabilização do Haiti), o clima foi de euforia. O Brasil finalmente estava sendo reconhecido como um importante ator no cenário global e definitivamente dava um passo em direção à tão ambicionada cadeira permanente do Conselho. Ou assim, nós pensávamos.
Por todos os lugares do Haiti é possível observar o descontentamento da população haitiana com a operação da ONU no país (Ansel Herz/WikiLeaks)
Por todos os lugares do Haiti é possível observar o descontentamento da população haitiana com a operação da ONU no país (Ansel Herz/WikiLeaks)
Quase 10 anos depois a relação entre o país caribenho e ONU/Brasil parece estar chegando ao fim e os haitianos estão demonstrando seu descontentamento em diversas áreas. Nesta semana, a convite do Comitê “Defender o Haiti é Defender a Nós Mesmos” (ALESP/SP), o senador haitiano opositor ao governo Jean Charles Moise apresentou, em audiência pública na Comissão de Direitos Humanos e Minorias, a exigência da retirada dos 1.200 soldados brasileiros que compõem a tropa de paz no Haiti.
O parlamentar já esteve presente em dezembro passado no país, quando entregou ao Senado brasileiro uma resolução – aprovada unanimemente por senadores do Haiti – para a retirada paulatina das tropas do Minustah até 28 de maio de 2014. Por duas vezes já, em setembro de 2011 e maio de 2013, que o senado haitiano aprova por unanimidade as resoluções exigindo o fim do Minustah. Entretanto, em sua última reunião com altos oficiais da ONU, foi expressa a vontade do Conselho de Segurança de manter as tropas até 2016. “Quando um país mantém tropas em outro, sem que este o queira, estamos diante de uma ocupação. Não existe outra maneira de chamar”, disse Moise.
O surto de cólera que atingiu o país foi comprovadamente, causado por tropas do Nepal, que compunham os capacetes-azuis da ONU: os soldados jogavam fora suas fezes em um rio próximo à base militar deles (Reprodução)
O surto de cólera que atingiu o país foi comprovadamente, causado por tropas do Nepal, que compunham os capacetes-azuis da ONU: os soldados jogavam fora suas fezes em um rio próximo à base militar deles (Reprodução)
Soma-se a isso também o descontentamento haitiano com a ONU por sua recusa em indenizar as vítimas do surto de cólera que atingiu o país e que foi, comprovadamente, causada por tropas do Nepal, que compunham os capacetes-azuis da ONU: os soldados jogavam fora suas fezes em um rio próximo à base militar deles. Mesmo assim, a Minustah não é o único alvo da insatisfação haitiana. Na mesma época da visita de Moïse em dezembro, as ruas da capital Port-au-Prince e de outras cidades foram tomadas por manifestantes cansados do presidente Michel Martelly, com protestos exigindo sua renúncia.
Algo que está absolutamente claro é que, seja quais forem os seus problemas, os haitianos sentem que são eles quem devem resolvê-los e querem usar de sua auto-determinação a fim de definir seus rumos internamente e de sua soberania ao dizer que não querem mais a Minustah no país.
Fórum – Você veio ao Brasil em dezembro passado fazer o mesmo pedido ao governo brasileiro para a retirada das tropas da ONU. Na ocasião, estava estipulado que a data limite seria 28 de maio de 2014, o que é quarta-feira da semana que vem. Essa retirada irá de fato acontecer?
Jean-Charles Moise – Você sabe que em 2004 tivemos uma crise política no Haiti. Esta crise foi criada pela própria, autodenominada, comunidade internacional e para acalmar os haitianos nos disseram que iriam vir nos ajudar. Fizeram todas as belas promessas do mundo: “vamos estabilizar politicamente o país, vamos construir escolas, estradas, ajudar os camponeses”; mas então, passaram-se seis meses e não fizeram nada, agora já são 10 anos. E, nós haitianos dizemos: 10 anos basta. Por isso estamos engajados na retirada das tropas da ONU.
Não apenas eles não construíram nada disso, mas fizeram ao contrário: o povo haitiano é vitima da presença dessas tropas. Veja o problema da cólera, da violação dos direitos humanos, abusos sexuais também. Por isso que somos muito claros, exigimos a retirada das tropas. Esta é uma batalha fácil? Claro que não. Apresentei uma proposta ao Senado do Haiti e ela foi aprovada por unanimidade por todos os senadores. Votamos essa resolução em 28 de maio de 2013, na qual exigimos a retirada da Minustah dentro de um ano. Esse é o nosso trabalho como parlamentar. E o povo haitiano está a todo o momento indo às ruas para se manifestar contra a presença das tropas, mas essa não é uma batalha fácil.
Porque as tropas estão lá para proteger os interesses do imperialismo, por isso é difícil. Todos os países têm interesses no Haiti, mas nós estamos progredindo nessa batalha. Pela primeira vez, em dezembro passado, o PT em seu último Congresso Nacional, adotou uma resolução que falava da retirada das tropas e, pela primeira vez nesta viagem de agora, a Comissão dos Direitos Humanos do Congresso também votou por essa retirada. Estabeleceu-se também que o governo brasileiro era quem deveria tomar a frente na campanha para que todos os países que têm soldados no Haiti também os retirem.
Encontrei com o presidente [José] Mujica, do Uruguai, e ele me falou que não teria problema, que em três meses iria trazer de volta seus soldados – isso no final de 2013. Mas então o governo dos EUA e o secretário-geral da ONU, Ban-Ki Moon, fizeram pressão no Mujica e ele adiou a retirada das tropas, após as eleições no Haiti. Então, veja, não é fácil, mas não iremos desistir. 
Fórum – As eleições haitianas estão marcadas para outubro desse ano, mas parece que o Senado e a Câmara dos Deputados não assinaram a proposta e não concordam com a eleição. É certo isso?
Moise – Os deputados estão de acordo. Digo, a maioria dos deputados está de acordo, mas uma parte deles não. No Senado é diferente. É claro que todos nós queremos eleições, mas não estamos de acordo com a maneira como essas eleições estão sendo conduzidas.
Temos uma posição muito clara de que o Conselho Eleitoral que irá organizar as eleições deve ser montado de acordo com a legislação do Haiti. Os senadores disseram claramente que o comitê eleitoral tem que organizar as eleições para o dois terços do Senado, assim como para as administrações locais, o pleito deve ser instituído de acordo com o artigo 289 da Constituição haitiana de 1987. Estamos dizendo isso porque o governo quer colocar um conselho eleitoral do seu jeito para poder fraudar as eleições
Fórum – Até hoje muitos haitianos contestam a eleição do atual presidente Michel Martelly. Por que?
Moise – Porque o Martelly não estava entre os primeiros lugares para a ida ao segundo turno. Não deveria nem ter disputado o segundo turno. Como ele é norte-americano, os EUA o impuseram aos haitianos e é por isso que ele apóia políticas neoliberais e entrega nossos recursos minerais a países como os EUA, Canadá e França.
Fórum – Que setores da economia haitiana estão nas mãos de empresas estrangeiras?
Moise – Companhias de minério norte-americanas, francesas e canadenses. A Digicel, uma empresa anglo-jamaicana também controla nossas telecomunicações. Eles dominam 80% do mercado de telefonia e de internet no Haiti.
Fórum – O Conselho de Segurança da ONU disse que planeja retirar as tropas da Minustah apenas em 2016 – visando ter mais tempo para treinar cerca de mil policiais haitianos. Vocês podem esperar tanto tempo assim?
Moise – Não, e essa é uma maneira [da ONU] justificar sua presença no Haiti. Todo ano tem que se renovar o mandato da Minustah na ONU. Dois meses antes da decisão desse voto, podíamos constatar o que acontece por todo o Haiti. Existe um aumento na insegurança no país. Os sequestros aumentam, as violações aos direitos humanos aumentam, os roubos aumentam – tudo o que envolve a insegurança no país coincidentemente aumenta nesse período [de votação]. Eles então redigem a resolução dizendo: ‘Tendo em vista o aumento no roubo, o aumento no sequestro, o aumento na violação dos direitos humanos e que a polícia nacional não tem como prover segurança no país, votamos pela prorrogação”.
Nós entendemos perfeitamente o jogo que eles fazem. Desde 2004, tínhamos sim uma policial nacional profissional, então eles disseram que viriam a nos ajudar por seis meses – para ajudar a polícia. Mas não fizeram isso em seis meses e agora, 10 anos depois, ainda não conseguiram. Quando é que eles irão conseguir?
São mentirosos. São “malandros”. Nós exigimos a retirada imediata e incondicional das tropas da Minustah, pois não estamos em guerra e não existe guerra civil no Haiti. Então o que justifica a presença deles no país?
Fórum – Em sua opinião, você acha que o Brasil usou o Haiti como uma escada para conseguir um assento permanente no Conselho de Segurança da ONU?
Moise – No começo achamos que era o caso. Mas não tenho como demonstrar isso, como provar isso. O que posso dizer aos brasileiros é que suas tropas não podem nos ajudar lá. Queremos a ajuda dos brasileiros, por isso pedimos que o Brasil substitua seus tanques de guerra por tratores agrícolas.
*revistaforum

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