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Ser de esquerda é não aceitar as injustiças, sejam elas quais forem, como um fato natural. É não calar diante da violação dos Direitos Humanos, em qualquer país e em qualquer momento. É questionar determinadas leis – porque a Justiça, muitas vezes, não anda de mãos dadas com o Direito; e entre um e outro, o homem de esquerda escolhe a justiça.
É ser guiado por uma permanente capacidade de se estarrecer e, com ela e por causa dela, não se acomodar, não se vender, não se deixar manipular ou seduzir pelo poder. É escolher o caminho mais justo, mesmo que seja cansativo demais, arriscado demais, distante demais. O homem de esquerda acredita que a vida pode e deve ser melhor e é isso, no fundo, que o move. Porque o homem de esquerda sabe que não é culpa do destino ou da vontade divina que um bilhão de pessoas, segundo dados da ONU, passe fome no mundo.
É caminhar junto aos marginalizados; é repartir aquilo que se tem e até mesmo aquilo que falta, sem sacrifício e sem estardalhaço. À direita, cabe a tarefa de dar o que sobra, em forma de esmola e de assistencialismo, com barulho e holofotes. Ser de esquerda é reconhecer no outro sua própria humanidade, principalmente quando o outro for completamente diferente. Os homens e mulheres de esquerda sabem que o destino de uma pessoa não deveria ser determinado por causa da raça, do gênero ou da religião.
Ser de esquerda é não se deixar seduzir pelo consumismo; é entender, como ensinou Milton Santos, que a felicidade está ancorada nos bens infinitos. É mergulhar, com alegria e inteireza, na luta por um mundo melhor e neste mergulho não se deixar contaminar pela arrogância, pelo rancor ou pela vaidade. É manter a coerência entre a palavra e a ação. É alimentar as dúvidas, para não cair no poço escuro das respostas fáceis, das certezas cômodas e caducas. Porém, o homem de esquerda não faz da dúvida o álibi para a indiferença. Ele nunca é indiferente. Ser de esquerda é saber que este “mundo melhor e possível” não se fará de punhos cerrados nem com gritos de guerra, mas será construído no dia-a-dia, nas pequenas e grandes obras e que, muitas vezes, é preciso comprar batalhas longas e desgastantes. Ser de esquerda é, na batalha, não usar os métodos do inimigo.
Fernando Evangelista

sexta-feira, junho 11, 2010

Como é podre o Reino dos USA






Os direitos necessários

Por Mauro Santayana


Oscilamos, na História, entre iluminismos e trevas, entre o primado da razão da ética e a irrupção dos instintos primitivos. Na Bolívia, o governo de Evo Morales decidiu restituir às tribos indígenas o direito de fazer a justiça de acordo com suas próprias leis. Em algumas tribos, as comunidades parecem dispostas a seguir os próprios princípios imemoriais. Em outras, nas quais o contato com a civilização fez perder a memória antiga dos códigos ancestrais, as sentenças estarão submetidas aos humores dos juízes, sem normas claras e definidas.

Mesmo antes da sanção presidencial da lei, houve linchamentos decididos na jurisdição de algumas tribos. De acordo com a nova lei, das decisões tribais não haverá recurso para os tribunais republicanos. Enfim, depois de quase três séculos do último Iluminismo (porque outros houve na História), as garantias de um julgamento dentro dos devidos processos legais são abandonadas em uma república que leva o nome de Bolívar, um dos mais esclarecidos caudilhos das guerras da independência continental.

O episódio provoca a discussão entre o direito cultural das comunidades indígenas a manter suas próprias normas de convívio e a evolução das sociedades multiétnicas, como são as latino-americanas. Os antropólogos, de modo geral, querem manter intactas as sociedades primitivas, como os zoólogos se esforçam para defender as espécies ameaçadas de extinção, reservando-lhes espaços próprios em que existir de acordo com seus instintos. Até onde, em nome de respeito aos hábitos primitivos, devemos aceitar a violação dos direitos criados por alguns milênios de civilização? De acordo com as informações disponíveis, foram condenados ao linchamento mestiços e brancos, alguns deles, policiais.

Mas a violação dos direitos humanos, tal como eles foram codificados pela razão do Iluminismo, e transformados em princípios fundamentais das constituições modernas, a partir da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, aprovada pela Assembleia Nacional Francesa em agosto de 1789, não se registra somente nas tribos bolivianas. A organização norte-americana de Médicos pelos Direitos Humanos (Physicians for Human Rights) está denunciando formalmente a CIA pela prática de torturas, durante o governo Bush. Os serviços secretos norte-americanos, como todos sabem, têm – e ratificado pelo festejado humanista Barack Obama – o direito de caçar e matar cidadãos norte-americanos em qualquer parte do mundo. Quanto aos estrangeiros, esse direito vem sendo praticado há mais de um século.

Os médicos documentaram a evidência de torturas praticadas por agentes da CIA, com a assistência médica. Eles, entre outras razões, apelam para a Resolução de Nuremberg, a propósito das experiências realizadas por médicos nazistas usando prisioneiros como cobaias. O protocolo de Nuremberg estabelece que nenhuma pessoa pode ser submetida a experiências sem o seu consentimento prévio, e sem o direito de interrompê-la quando quiser. O documento examina as técnicas de afogamento simulado – de que era especialista a polícia política de Stroessner – e de aplicação de choques que provocam a dor.

Em seu livro Theorie des gegenwärtigen Zeitalters (Teoria da época atual), Hans Freyer mostra como a atualidade acolhe todos os tempos humanos, no interior da “civilitas”, do processo civilizatório – conforme o conceito de Erasmo no princípio do século 16. Os linchamentos nos Andes, o bloqueio de Gaza e as torturas da CIA confirmam sua tese.

As ruínas da antiga razão


Por Mauro Santayana

Os Estados Unidos obtiveram outra vitória contra eles mesmos, com a aprovação, pelo Conselho de Segurança da ONU, das sanções contra o Irã. Se dermos crédito a quem presumia entender de Deus e entendia realmente de Estado, Richelieu, aos homens cabe a possibilidade da salvação eterna da alma, quando a misericórdia divina anistia-os do pecado; mas os Estados, que só existem no plano temporal, podem perder-se na decisão de um segundo. Alguns dos grandes Estados da História se perderam no acúmulo de repetidas decisões desastradas. O diabo, quando quer ganhar os homens, enlouquece-os antes. Assim também age com as nações, se é que ele existe.

Quem examinar a História, sem preconceitos dogmáticos, concluirá que há uma ameaça muito maior do que o aquecimento global. Essa ameaça é a da erosão do pensamento lógico. Os Estados, conforme a conclusão dos mais argutos pensadores políticos, é uma conquista da razão. Foi a razão que reuniu os homens em comunidades e estabeleceu regras que se transformaram em constituições jurídicas, legitimadas pela vontade comum. O processo histórico é imperfeito. Em certos momentos, pujantes civilizações, como a egípcia e a helênica, desaparecem como realidades políticas, embora possam permanecer – influindo na História – com a força de sua cultura. A civilização romana – que ainda é esteio do Ocidente – foi o resultado do aniquilamento de duas vigorosas civilizações, a do estuário do Nilo e a helênica. Ambas transcenderam a geografia em que se desenvolveram, para formar o mundo atual. No território em que se desenvolveram, só sobrevivem hoje em suas ruínas, com a evocação mercantil do turismo.

Os mesmos jornais que noticiavam, ontem, a punição imposta ao Irã pela diplomacia norte-americana, chefiada pela senhora Clinton, davam conta do assassinato de um menino mexicano de 15 anos pela patrulha da fronteira norte-americana. O rapazinho foi morto em águas mexicanas do Rio Bravo, na mesma perversão da lógica com que Israel atacou um navio humanitário em águas internacionais: a de presumida legítima defesa do forte contra o fraco, em qualquer circunstância. Se essa lógica prevalece, não há mais o direito internacional, tal como foi construído ao longo dos últimos séculos. As fronteiras nada representam diante da força.

Não é o primeiro mexicano a morrer, inerme, nas mãos de policiais norte-americanos. Há dias, outro mexicano, que vivia sin papeles há 20 anos na Califórnia, foi preso em operação de rotina. Desesperado diante da expulsão iminente, tentou fugir, foi espancado por mais de 20 policiais e atingido por choques elétricos, até desfalecer e morrer.

Os Estados Unidos estão superestimando seu poder no mundo. Por enquanto, os pobres mexicanos, que cruzam a fronteira, buscam o pão que as elites irresponsáveis lhes negam. Amanhã, talvez, a travessia seja para a reconquista de mais da metade de seu território, que os Estados Unidos usurparam em 1848, com a guerra de anexação. E continua a insensatez no Oriente Médio: os ianques parecem dispostos a estender a derrota que sofrem no Iraque e no Afeganistão ao Paquistão e ao Irã. E não faltam os que, pelo medo ou pela cumplicidade, os seguem nessa demência, como se a civilização ocidental como um todo padecesse de acelerada degenerescência da razão, acometida pela doença de Alzheimer.

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