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Ser de esquerda é não aceitar as injustiças, sejam elas quais forem, como um fato natural. É não calar diante da violação dos Direitos Humanos, em qualquer país e em qualquer momento. É questionar determinadas leis – porque a Justiça, muitas vezes, não anda de mãos dadas com o Direito; e entre um e outro, o homem de esquerda escolhe a justiça.
É ser guiado por uma permanente capacidade de se estarrecer e, com ela e por causa dela, não se acomodar, não se vender, não se deixar manipular ou seduzir pelo poder. É escolher o caminho mais justo, mesmo que seja cansativo demais, arriscado demais, distante demais. O homem de esquerda acredita que a vida pode e deve ser melhor e é isso, no fundo, que o move. Porque o homem de esquerda sabe que não é culpa do destino ou da vontade divina que um bilhão de pessoas, segundo dados da ONU, passe fome no mundo.
É caminhar junto aos marginalizados; é repartir aquilo que se tem e até mesmo aquilo que falta, sem sacrifício e sem estardalhaço. À direita, cabe a tarefa de dar o que sobra, em forma de esmola e de assistencialismo, com barulho e holofotes. Ser de esquerda é reconhecer no outro sua própria humanidade, principalmente quando o outro for completamente diferente. Os homens e mulheres de esquerda sabem que o destino de uma pessoa não deveria ser determinado por causa da raça, do gênero ou da religião.
Ser de esquerda é não se deixar seduzir pelo consumismo; é entender, como ensinou Milton Santos, que a felicidade está ancorada nos bens infinitos. É mergulhar, com alegria e inteireza, na luta por um mundo melhor e neste mergulho não se deixar contaminar pela arrogância, pelo rancor ou pela vaidade. É manter a coerência entre a palavra e a ação. É alimentar as dúvidas, para não cair no poço escuro das respostas fáceis, das certezas cômodas e caducas. Porém, o homem de esquerda não faz da dúvida o álibi para a indiferença. Ele nunca é indiferente. Ser de esquerda é saber que este “mundo melhor e possível” não se fará de punhos cerrados nem com gritos de guerra, mas será construído no dia-a-dia, nas pequenas e grandes obras e que, muitas vezes, é preciso comprar batalhas longas e desgastantes. Ser de esquerda é, na batalha, não usar os métodos do inimigo.
Fernando Evangelista

sábado, junho 05, 2010

Se não mudarmos o mundo o mesmo se extinguira rápidamente, ou quantos planetas temos pra tanto lixo e desumanidades?






Hegemonias

“Se antes, a Concentração das Potências se fundavam em razões políticas e militares, hoje a chave do consenso é econômica – a defesa pura e simples da estabilidade capitalista como tal”

Márcia Denser*

Nesta última Margem Esquerda, a 14¹ , dois artigos essenciais (fazendo um parêntesis: notadamente hoje quando na mídia hegemônica² já não existe mais nada publicado – em papel ou on-line – nem sofrível nem remotamente importante e muito menos original, isso quando não é mentira, sobretudo se aquele que julga for alguém semelhante a mim, que lê quase TUDO com aquele olhar previamente fatigado, aquele ceticismo apriorístico e horrivelmente blasé³) – de forma que não uso levianamente o adjetivo “essencial”.

No primeiro, Perry Anderson – editor da New Left Review – passa em revista o hegemon capitalista ao longo de cinco séculos, num desses textos simultaneamente abrangentes e concisos. Clareza & poder de síntese, os dons gêmeos dum editor sensível. O mote do ensaio é a crise econômica atual, provocada pelo colapso de setembro de 2008, mas ao contrário da Grande Depressão de 1929, a crise atual foi prevista há muito tempo. Não pela ortodoxia econômica, obviamente que estes foram pegos de calça curta, mas por dois notáveis especialistas de formação marxista – Giovanni Arrighi (falecido em junho de 2009) e Robert Brenner, o último cantando a bola com uma década de antecedência.

Eis alguns elementos presentes nesta abordagem: no fim do século XX, os governos - ao invés de temer as conseqüências dum terremoto sociopolítico mundial, como em 1929, e assim forjar soluções clássicas para evitar o pior - engendraram uma enorme expansão artificial do crédito para safar-se: primeiro, com o gasto deficitário do Estado, depois, com a frenética especulação financeira e fundiária, finalmente, com a inundação de cartões de crédito que literalmente afundou o sistema imobiliário.

Diante de tal Bolha – um desastre de escala desconhecida em 75 anos – os governos do Norte dobraram Ainda Mais as apostas! O mesmo que ministrar doses de veneno num paciente terminal, segundo Anderson: afinal, segundo a lógica capitalista, o único modo realista de sair duma crise é passar por uma verdadeira depressão, destruindo todos os capitais não competitivos, permitindo unicamente a sobrevivência dos mais fortes (darwinismo social aqui tem mágoa!).

Então como ficamos hoje nessa história? Apesar de rigorosamente cíclica, a trajetória do capitalismo jamais se repete de maneira idêntica. A situação pós anos 1970 foi marcada por duas novidades: 1) Os conflitos sociais tempestuosos - lutas dos trabalhadores no Norte e movimentos de libertação nacional no Sul – não floresceram, como no passado, e não foram seguidos, mas precedidos e precipitados na passagem original da expansão material para a financeira nos anos 1970; 2) Ocorreu uma bifurcação sem precedentes entre poder militar e financeiro quando a hegemonia dos Estados Unidos entrou em convulsão, já que ainda retém a predominância global devastadora das forças armadas, mesmo que afundem no status de nação devedora, já que a caixa-registradora do mundo se move para a Ásia do Leste.

A diferença das análises Brenner e Arrighi é que a unidade básica para o primeiro é a firma, enquanto para o segundo é o Estado. A hegemonia, ausente em Brenner e central para Arrighi, entra em termos de Estado como um conceito eminentemente político, regulando tanto as relações entre nações, como entre classes. Para Arrighi, o poder hegemônico é um pré-requisito para o sistema capitalista funcionar normalmente, sem ele, historicamente, o sistema é levado ao caos.

Para a linha de pensamento européia – notadamente alemã –, desenvolvida na primeira metade do século XX, a idéia de hegemonia dentro de um sistema de interestados seria, a princípio, singular: só podia haver um hegemon por vez. Arrighi herdou tal premissa. Em sua narrativa, os primeiros foram os holandeses, depois os ingleses e, por fim, os norte-americanos. Repetindo: qual a situação de hoje? Para Arrighi, a hegemonia ianque, enfraquecida por dívidas externas e danosas aventuras militares, sem esquecer o despontar da China, entrou em crise terminal.

Aliás, atualmente a Hegemonia se define antes como Pentarquia – EUA, Europa, Rússia, China e Japão – os cinco grandes Estados Capitalistas que têm se mantido relativamente estáveis, comparativamente ao passado. Contudo, no Oriente Médio e no Mundo Islâmico – fora do âmbito da Pentarquia – não é a hegemonia que se impõe, mas o império. Exemplos: a violência norte-americana no Iraque, Afeganistão e Paquistão; violência russa na Chechênia; violência chinesa em Xinjang e no Tibet; violência européia nos Bálcãs.

Se antes, a Concertação das Potências se fundavam em razões políticas e militares, hoje a chave do consenso é econômica – a defesa pura e simples da estabilidade capitalista como tal. Citando Wang Hui: “As mais diretas expressões do aparato mercadológico-ideológico são a mídia, a publicidade, o ‘mundo da compra’. Esses mecanismos não são apenas comerciais, mas ideológicos. Seu grande poder se baseia em seu apelo ao ‘senso comum’, necessidades corriqueiras que transformam as pessoas em consumidoras, seguindo de forma voluntária a lógica do mercado em suas vidas cotidianas.” Aqui, o consumismo é identificado com a sustentação da hegemonia global do capital.

Mas o capitalismo, conclui Anderson, é bom não esquecer, mantém em sua base um sistema de produção e é no trabalho, assim como no lazer, que a hegemonia se reproduz cotidianamente, o que Marx chama de “compulsão ao trabalho alienado”, que progressivamente adapta pessoas a relações sociais existentes, matando suas energias e capacidade de imaginar qualquer outra e melhor ordem do mundo.

Pensando nos vilarejos destruídos do Iraque e do Afeganistão, o autor lembra as palavras de Tácito, descrevendo a hegemonia romana: “A destruir, massacrar e usurpar dão o nome de Império; onde criam um deserto, chamam-no de Paz”.

ET. Lá no começo, eu disse que eram dois artigos, e são. O segundo fica para a próxima coluna.

¹ Boitempo, maio/2010.
² É claro que existem exceções, mas todas fora da mídia hegemônica.
³ Por que vocês acham que não leio Miriam Leitão-Eliane Catanhede-Reinaldo Azevedo? Não é só pelas “idéias” deles – elas existem? –, é porque não quero ficar besta!Aliás, eu os cito no rodapé que é para mantê-los bem longe do meu texto!

*A escritora paulistana Márcia
do esquerdopata

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