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Ser de esquerda é não aceitar as injustiças, sejam elas quais forem, como um fato natural. É não calar diante da violação dos Direitos Humanos, em qualquer país e em qualquer momento. É questionar determinadas leis – porque a Justiça, muitas vezes, não anda de mãos dadas com o Direito; e entre um e outro, o homem de esquerda escolhe a justiça.
É ser guiado por uma permanente capacidade de se estarrecer e, com ela e por causa dela, não se acomodar, não se vender, não se deixar manipular ou seduzir pelo poder. É escolher o caminho mais justo, mesmo que seja cansativo demais, arriscado demais, distante demais. O homem de esquerda acredita que a vida pode e deve ser melhor e é isso, no fundo, que o move. Porque o homem de esquerda sabe que não é culpa do destino ou da vontade divina que um bilhão de pessoas, segundo dados da ONU, passe fome no mundo.
É caminhar junto aos marginalizados; é repartir aquilo que se tem e até mesmo aquilo que falta, sem sacrifício e sem estardalhaço. À direita, cabe a tarefa de dar o que sobra, em forma de esmola e de assistencialismo, com barulho e holofotes. Ser de esquerda é reconhecer no outro sua própria humanidade, principalmente quando o outro for completamente diferente. Os homens e mulheres de esquerda sabem que o destino de uma pessoa não deveria ser determinado por causa da raça, do gênero ou da religião.
Ser de esquerda é não se deixar seduzir pelo consumismo; é entender, como ensinou Milton Santos, que a felicidade está ancorada nos bens infinitos. É mergulhar, com alegria e inteireza, na luta por um mundo melhor e neste mergulho não se deixar contaminar pela arrogância, pelo rancor ou pela vaidade. É manter a coerência entre a palavra e a ação. É alimentar as dúvidas, para não cair no poço escuro das respostas fáceis, das certezas cômodas e caducas. Porém, o homem de esquerda não faz da dúvida o álibi para a indiferença. Ele nunca é indiferente. Ser de esquerda é saber que este “mundo melhor e possível” não se fará de punhos cerrados nem com gritos de guerra, mas será construído no dia-a-dia, nas pequenas e grandes obras e que, muitas vezes, é preciso comprar batalhas longas e desgastantes. Ser de esquerda é, na batalha, não usar os métodos do inimigo.
Fernando Evangelista

domingo, setembro 12, 2010

Noam Chomsky na China


Embora o desenvolvimento da China tenha retirado milhões da pobreza, os custos, como a degradação ambiental, são elevados, diz Noam Chomsky nesta entrevista ao Southern Metropolitan Daily.

"Para os países com grandes recursos, como o Brasil e o Peru, um dos problemas é a sua dependência das exportações de recursos primários, o que não é um bom modelo de desenvolvimento. Para alterarem o seu modo de desenvolvimento, têm de começar por resolver os seus problemas internos e transformarem-se em produtores, não apenas exportar produtos primários para outros países produtores".

Chomsky entrevistado na China

Chomsky entrevistado na China

A 13 de Agosto, Noam Chomsky fez um discurso na Universidade de Pequim. Chomsky, um dos intelectuais mais influentes do nosso tempo, é célebre pelo seu activismo político e pelas suas contribuições linguísticas e filosóficas. A palestra, intitulada Contours of World Order: Continuities and Changes (Contornos da Ordem Mundial: continuidades e mudanças), versou principalmente sobre as duas principais ameaças que a humanidade enfrenta: guerras nucleares e degradação ambiental.

Embora Chomsky tenha voltado a colocar a tónica das suas críticas nos Estados Unidos, também expressou as suas opiniões sobre a China. Na opinião de Chomsky, os países emergentes, como a China e a Índia, ainda têm um longo caminho a percorrer para desafiar a América. Especialmente preocupante é o custo ambiental do modelo de desenvolvimento da China e os muitos problemas internos e sociais que o país tem de enfrentar. Esta semana, o Southern Metropolitan Daily publica uma entrevista com Chomsky. Um trecho da entrevista está traduzido abaixo.

A maioria dos chineses aceitou a globalização. Nas últimas três décadas, especialmente depois de a China ter aderido à Organização Mundial do Comércio (OMC), muitos chineses beneficiaram extraordinariamente. Mas parece que o senhor encara a globalização com maus olhos.

O sucesso económico da China tem pouco a ver com a globalização. Está relacionado com o comércio e a exportação. A China tem vindo a tornar-se um país orientado para a exportação. Ninguém, inclusive eu, se opõe às exportações. Mas isso não é globalização. De facto, a China tornou-se uma fábrica no sistema de produção do nordeste asiático. Olhando para o conjunto da região, constata-se que é muito dinâmico. O volume de exportações da China é enorme. Mas há algo que temos negligenciado. As exportações da China dependem muito das do Japão, da Coreia e dos EUA. Estes países fornecem à China componentes e tecnologias de ponta. A China está apenas a fazer a montagem e a rotular os produtos finais como "Made in China".

A China desenvolveu-se rapidamente por seguir políticas perspicazes. Mas, embora milhões de pessoas tenham sido retiradas da pobreza, os custos, tais como a degradação ambiental, são elevados. Estão simplesmente a ser adiados para a próxima geração. Os economistas não se irão preocupar com eles, mas estes são custos que alguém vai ter de pagar um dia. Podem ser os seus filhos ou netos. Isto não tem nada a ver com globalização nem com a OMC.

Pensa que a ascensão da China irá mudar a ordem mundial? A China irá desempenhar o papel que os E.U. estão agora a desempenhar?

Não penso que isso vá acontecer, nem o desejo. Será realmente desejável ver a China com 800 bases militares no exterior, a invadir e a derrubar outros governos ou a cometer actos terroristas? Que é o que a América está a fazer agora. Penso que isso não irá, nem poderá, acontecer na China. Também não o desejo. A China já está a mudar o mundo. A China e a Índia, juntas, são responsáveis por quase metade da população mundial. Estão a crescer e a desenvolver-se. Mas comparativamente, a sua riqueza é apenas uma pequena parte da riqueza mundial. Estes dois países têm ainda longos caminhos a percorrer e enfrentam problemas internos muito graves, que espero que sejam gradualmente resolvidos. Não faz sentido comparar a sua influência global com as dos países ricos. Tenho a esperança de que venham a exercer alguma influência positiva no mundo, mas temos de estar atentos a isto.

A China deveria questionar-se sobre o papel que pretende assumir no mundo. Felizmente, a China não está a assumir o papel de agressor, com um grande orçamento militar, etc. Mas a China tem um papel a desempenhar. É um gigantesco consumidor de recursos, e existem prós e contras. Por exemplo, o Brasil irá beneficiar economicamente se exportar para a China. Por outro lado, a sua economia também sofrerá danos. Para os países com grandes recursos, como o Brasil e o Peru, um dos problemas é a sua dependência das exportações de recursos primários, o que não é um bom modelo de desenvolvimento. Para alterarem o seu modo de desenvolvimento, têm de começar por resolver os seus problemas internos e transformarem-se em produtores, não apenas exportar produtos primários para outros países produtores.

O sucesso da China é um desafio para as democracias ocidentais?

Façamos uma comparação histórica. A ascensão dos Estados Unidos foi uma ameaça para a Grã-Bretanha democrática? Os Estados Unidos foram fundados com base no massacre de populações indígenas e no sistema esclavagista. É desejável que a China assimile este modelo? É verdade que os EUA progrediram para um país democrático, poderoso em muitos aspectos, mas a sua democracia não evoluiu a partir deste modelo que ninguém de bom senso quereria imitar.

A China está a desenvolver-se, mas não há nenhuma evidência que prove que o seu desenvolvimento interno seja uma ameaça para o Ocidente. O que está a desafiar os EUA não é o desenvolvimento da China, mas a sua independência. Esse é o verdadeiro desafio.

Pode dizer-se, pelas manchetes diárias dos jornais, que a política externa dos EUA se centra actualmente no Irão. O ano de 2010 é chamado “O Ano do Irão”. O Irão é descrito como uma ameaça para a política externa dos EUA e para a ordem mundial. Os EUA impuseram sanções severas e unilaterais, mas a China não lhe seguiu o exemplo. A China nunca seguiu o exemplo dos EUA. Em vez disso, apoia as sanções da ONU, que são demasiado débeis para terem importância. Poucos dias antes de deixar a China, o Departamento de Estado dos EUA advertiu a China de uma maneira muito interessante. Disse que a China tem de assumir as responsabilidades internacionais, ou seja, seguir as ordens EUA. São estas as responsabilidades internacionais da China.

Isto é o imperialismo típico: os outros países têm de agir de acordo com os nossos desejos. Se não, são irresponsáveis. Acho que os funcionários do Ministério dos Negócios Estrangeiros chinês devem rir-se quando ouvem isto. Mas essa é a lógica típica do imperialismo. De facto, o Irão constitui uma ameaça, porque não segue as instruções dos EUA. A China é uma ameaça maior, porque o facto de uma grande potência se recusar a obedecer a ordens constitui um grande problema. Este é o desafio que os EUA enfrentam.

Retirado de Global Voices

Tradução de Paula Coelho para o Esquerda.net

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