"O comunismo é a ideia da emancipação de toda humanidade"
Via CartaMaior
O
filósofo francês Alain Badiou é um homem que não teme riscos: nunca
renunciou a defender um conceito que muitos acreditam ter sido queimado
pela história: o comunismo. Em entrevista à Carta Maior, Badiou fala da
“ideia comunista” ou da “hipótese comunista”. Segundo ele, tudo o que
estava na ideia comunista, sua visão igualitária do ser humano e da
sociedade, merece ser resgatado em um mundo onde tudo passou a ter um
valor mercantil. Pensador crítico da modernidade, Badiou define o
processo político atual como uma “guerra das democracias contra os
pobres”.
Eduardo Febbro - Direto de Paris
Paris
- Alain Badiou não tem fronteiras. Este filósofo original é o pensador
francês mais conhecido fora de seu país e autor de uma obra extensa e
sem concessões. Filosofia, matemática, política, literatura e até o amor
circulam em seu catálogo de produções e reflexões. Sua obra, de caráter
multidisciplinar, traz uma crítica férrea ao que Alain Badiou chama de
“materialismo democrático”, ou seja, um sistema humano onde tudo tem um
valor mercantil.
Este filósofo insubmisso é
também um homem de riscos: nunca renunciou a defender um conceito que
muitos acreditam ter sido queimado pela história: o comunismo. Em sua
pena, Badiou fala mais da “ideia comunista” ou da “hipótese comunista”
do que do sistema comunista em si. Segundo o filósofo francês, tudo o
que estava na ideia comunista, sua visão igualitária do ser humano e da
sociedade, merece ser resgatado.
Defensor
incondicional de Marx e da ideia de uma internacionalização positiva da
revolta, o horizonte de sua filosofia é polifônico: seus componente não
são a exposição de um sistema fechado, mas sim um sistema metafísico
exigente que inclui as teorias matemáticas modernas – Gödel – e quatro
dimensões da existência: o amor, a arte, a política e a ciência.
Pensador crítico da modernidade numérica, Badiou definiu os processos
políticos atuais como uma “guerra das democracias contra os pobres”.
O
filósofo francês é um teórico dos processos de ruptura e não um mero
panfletário. Ele convoca com método a repensar o mundo, a redefinir o
papel do Estado, traça os limites da “perfeição democrática”,
reinterpreta a ideia de República, reatualiza as formas possíveis e não
aceitas de oposição e coloca no centro da evolução social a
relegitimação das lutas sociais.
Alain Badiou
propõe um princípio de ação sem o qual, sugere, nenhuma vida tem
sentido: a ideia. Sem ela toda existência é vazia. Com mais de 70 anos,
Badiou introduziu em sua reflexão o tema do amor em um livro brilhante e
comovedor, no qual o autor de “O ser e o acontecimento” define o amor
como uma categoria da verdade e o sentimento amoroso como o pacto mais
elevado que os indivíduos podem firmar para viver. Sua lucidez analítica
o conduz inclusive a dizer que o amor, porque grátis e total, está
ameaçado pelo mundo contemporâneo.
Revoluções
árabes, movimento dos indignados, mobilização crescente dos grupos que
estão contra a globalização, a luta ou a oposição contra as modalidades
do sistema atual se multiplicaram e sofisticaram. Analisando o que
ocorreu, o que você diria hoje a todos esses rebeldes do mundo para que
sua ação conduza a uma autêntica construção?
Eu
diria a eles que, para mim, mais importante que a consigna da
anti-globalização, a qual parece sugerir que, por meio de várias
medidas, pode-se re-humanizar a situação, incluindo a re-humanização do
capitalismo, é a globalização da vontade popular. Globalização quer
dizer vigor internacional. Mas essa globalização internacional necessita
de uma ideia positiva para uni-la e não só a ideia crítica ou a
combinação de desacordos e protestos. Trata-se de um ponto muito
importante. Passar da revolta à ideia é passar da negação á afirmação.
Somente no plano afirmativo poderemos nos unir de forma duradoura.
Um
dos princípios de sua filosofia consiste em dizer que uma vida que não
está regida pelo signo da ideia não é uma vida verdadeira. Agora, como
defender hoje essa ideia sob a ameaça do hiper-consumo, das falsidades e
injustiças da democracia parlamentar e em um mundo onde nossa relação
com o outro passa pela relação com o objeto e não com as ideias ou com
os indivíduos? No mundo contemporâneo, a ideia é o produto e não a
relação humana.
A verdadeira vida é uma
vida que aceita estar sob o signo da ideia. Dito de outro modo, uma vida
que aceita ser outra coisa do que uma vida animal. Alguns dirão que há
valores transcendentes, religiosos, e que é preciso submeter o animal;
outros dirão, ao contrário, que devemos nos libertar desses valores
transcendentes, que Deus está morto, que viva os apetites selvagens.
Mas, entre ambas, há uma solução intermediária, dialética, que consiste
em dizer que, na vida, através de encontros e metamorfoses, pode haver
um trajeto que nos liga à universalidade. Isso é o que eu chamo “uma
vida verdadeira”, ou seja, uma vida que encontrou ao menos algumas
verdades.
Chamo "ideia" esse intermediário entre
as verdades universais, digamos eternas para provocar um pouco os
contemporâneos, e o indivíduo. Que é então uma vida sob o signo da ideia
em um mundo como este? Faz falta uma distância com a circulação geral.
Mas essa distância não pode ser criada só com a vontade, faz falta algo
que nos ocorra, um acontecimento que nos leve a tomar posição frente ao
que se passou. Pode ser um amor, um levante político, uma decepção,
enfim, muitas coisas. Aí se põe em jogo a vontade para criar um mundo
novo que não estará baseado na ordem do mundo tal como é, com sua lei de
circulação mercantil, mas sim em um elemento novo de minha experiência.
O mundo moderno se caracteriza pela soberania
das opiniões. E a opinião é algo contrário à ideia. A opinião não
pretende ser universal, é minha opinião e vale tanto quanto a opinião de
qualquer outra pessoa. A opinião se relaciona com a distribuição de
objetos e a satisfação pessoal. Há um mercado das opiniões assim como há
um mercado das ações financeiras. Há momentos em que uma opinião vale
mais do que outra; mais tarde essa opinião quebra como um país. Estamos
no regime geral do comércio da comunicação no qual a ideia não existe.
Inclusive se suspeita da ideia e se dirá que ela é opressiva,
totalitária, que se trata de uma alienação. E por que isso ocorre?
Simplesmente porque a ideia é grátis. Ao contrário da opinião, a ideia
não entra em nenhum mercado. Se defendemos nossa convicção, o fazemos
com a ideia de que é universal. Essa ideia é, então, uma proposta
compartilhada, não se pode colocá-la à venda no mercado. Mas como tudo o
que é grátis, a ideia está sob suspeita.
Pergunta-se:
qual é o valor do que é grátis? Justamente, o valor do grátis é que não
tem valor no sentido das trocas. Seu valor é intrínseco. E como não se
pode distinguir a ideia do preço do objeto a única existência da ideia
está em um tipo de fidelidade existencial e vital para a ideia. A melhor
metáfora para isso é encontrada no amor. Se queremos profundamente a
alguém, esse amor não tem preço. É preciso aceitar os sofrimentos, as
dificuldades, o fato de que sempre há uma tensão entre o que desejamos
imediatamente e a resposta do outro. É preciso atravessar tudo isso.
Quando
estamos enamorados, trata-se de uma ideia e isso é o que garante a
continuidade desse amor. Para se opor ao mundo contemporâneo pode-se
atuar na política, mas estar cativado completamente por uma obra de arte
ou estar profundamente enamorado é como uma rebelião secreta e pessoal
contra o mundo contemporâneo. Esse é o principal problema da vida
contemporânea. Estabeleceu-se um regime de existência no qual tudo deve
ser transformado em produto, em mercadoria, inclusive os textos, as
ideias, os pensamentos. Marx havia antecipado isso muito bem: tudo pode
ser medido segundo seu valor monetário.
Você
é um dos poucos filósofos que defende o que você mesmo chama “a ideia
comunista”. Como é possível defender a ideia comunista quando seu
conteúdo histórico foi desastroso.
Penso
que o conteúdo histórico das ideias sempre pode ser declarado
desastroso. Os democratas nos falam da democracia, mas se olhamos de
perto a história das democracias, ela está cheia de desastres. Para
tomar o exemplo mais elementar, se tomamos a Primeira Guerra Mundial,
ela foi lançada por democratas, democratas alemães, ingleses e
franceses. Foi um massacre inimaginável, o qual já se demonstrou esteve
ligado a apetites financeiros nas colônias africanas, apetites que não
diziam respeito aqueles que seriam massacrados mais tarde. Houve milhões
de mortos e de sacrificados em condições espantosas e, aceite-se ou
não, isso é parte da história das democracias. Se interrogamos o
conjunto das experiências históricas veremos que todo o mundo tem sangue
até as orelhas.
No que se refere à palavra
“comunista” em si, da mesma maneira que ocorre com a palavra
“democracia”, sempre se pode argumentar que ambas tem sangue até as
orelhas. Mas, por acaso, é preciso sempre inventar outra palavra?
Tomemos, por exemplo, o cristianismo. O cristianismo é São Francisco de
Assis, a santidade verdadeira, o advento da ideia de uma verdadeira
generosidade para com os pobres, a caridade, etc.,etc. Mas, do outro
lado, também é a inquisição, o terror, a tortura e o suplício. Por acaso
vamos dizer que é um crime alguém se chamar de cristão? Ninguém diz
isso. Eu defendo uma espécie de absolvição dos vocábulos. Eles têm o
sentido dado pela sequência histórica da qual falamos.
De
fato, o comunismo conheceu duas sequências histórias. A sequência
histórica do século XIX, quando a palavra foi inventada e propagada para
designar uma esperança histórica humana fundamental, a esperança da
igualdade, da emancipação das classes oprimidas, de uma organização
social igualitária e coletiva. Depois há outra sequência muito diferente
onde se experimentou o comunismo, ou seja, se construiu uma forma de
poder particular que buscou coletivizar a indústria e essas coisas, mas
que, no final, se tornou uma forma de Estado despótico.
Eu
proponho que não se sacrifique a palavra “comunismo” por causa desta
segunda sequência, mas sim que ela seja resgatada com base na primeira
sequência, possibilitando assim a abertura de uma terceira sequência.
Nesta
terceira sequência, a palavra “comunismo” significaria o que sempre
significou: a ideia de uma organização social totalmente distinta da que
conhecemos e que já sabemos que está dominada por uma oligarquia
financeira e econômica absolutamente feroz e indiferente aos interesses
gerais da humanidade. Eu proponho então voltar ao comunismo sob a forma
da ideia comunista: a ideia comunista é a ideia da emancipação de toda a
humanidade, é a ideia do internacionalismo, de uma organização
econômica mobilizando diretamente os produtores e não as potências
exteriores; é a ideia da igualdade entre os distintos componentes da
humanidade, do fim do racismo e da segregação e também é a ideia do fim
das fronteiras.
Não esqueçamos que as fronteiras
são uma grande característica do mundo contemporâneo. O comunismo é
tudo isso. Se alguém inventar uma palavra formidável para designar tudo
isso, que não seja a palavra comunismo, eu aceito. Mas a história da
política não é a história das palavras, mas sim a história dos novos
significados que podem ter as palavras. Em geral se opõe a palavra
“democracia” à palavra “comunismo”. Eu digo que uma palavra não é mais
inocente do que a outra. Não lutemos pela inocência das palavras.
Discutamos sobre o que significam e o que significa aquilo que eu digo.
Agora
chegamos a Marx, ou melhor dizendo, aos dois Marx: o Marx marxista e o
Marx de antes do marxismo. Qual dos dois você reivindica?
Marx
e marxismo têm significados muito distintos. Marx pode significar a
tentativa de uma análise científica da história humana com base nos
conceitos fundamentais de classe e de luta de classe, e também a ideia
de que a base das diferentes formas que a organização da humanidade
adquiriu no curso da história é a organização da economia. Nesta parte
da obra de Marx há coisas muito interessantes como, por exemplo, a
crítica da economia política. Mas também há outro Marx que é um Marx
filósofo, que vem depois de Engels e que tenta mostrar que a lei das
coisas deve ser buscada nas contradições principais que podem ser
percebidas dentro das coisas. É o pensamento dialético, o materialismo
dialético. No concreto, há uma base material de todo pensamento e este
se desenvolve através de sistemas de contradição, de negação. Este é o
segundo Marx. Mas também há um terceiro Marx que é o militante político.
É um Marx que, em nome da ideia comunista, indica o que fazer: é o Marx
fundador da Primeira Internacional, é o Marx que escreve textos
admiráveis sobre a Comuna de Paris ou sobre a luta de classes na França.
Há pelo menos três Marx e o que mais me
interessa, reconhecendo o mérito imenso de todos eles, é o Marx que
tenta ligar a ideia comunista em sua pureza ideológica e filosófica às
circunstâncias concretas. É o Marx que se pergunta pelo caminho para
organizar as pessoas politicamente na direção da ideia comunista. Há
ideias fundamentais que foram experimentadas e que ainda permanecem e,
em cujo centro, encontramos a convicção segundo a qual nada ocorrerá
enquanto uma fração significativa dos intelectuais não aceite estar
organicamente ligada às grandes massas populares. Esse ponto está
totalmente ausente hoje em várias regiões do mundo. Em maio de 68 e nos
anos 70, este ponto foi abandonado. Hoje pagamos o preço desse abandono
que significou a vitória completa e provisória do capitalismo mais
brutal.
A vida concreta de Marx e Engels
consistiu em participar nas manifestações na Alemanha e em tentar criar
uma Internacional. E o que era a Internacional? A aliança dos
intelectuais com os operários. É sempre por aí que se começa. Eu chamo
então a que comecemos de novo: por um lado com a ideia comunista e, por
outro, com um processo de organização sob esta ideia que, evidentemente,
levará em conta o conjunto do balanço histórico, mas que, em certo
sentido, terá que começar de novo.
Caído,
derrotado no abismo ou simplesmente ferido? Na sua avaliação, em que
fase se encontra o capitalismo: em seu ocaso, como acreditam alguns, ou
somente vivendo um recesso devido a suas enormes contradições internas?
O
capitalismo é um sistema de roubo planetário exacerbado. Pode-se dizer
que o capitalismo é uma ordem democrática e pacífica, mas é um regime de
depredadores, é um regime de banditismo universal. E digo banditismo de
maneira objetiva: chamo bandido a qualquer um que considere que a única
lei de sua atividade é seu próprio proveito. Mas um sistema como este
que, por um lado, tem a capacidade de se estender e, por outro, de
deslocar seu centro de gravidade é um sistema que está longe de estar
moribundo.
Não é o caso de acreditar que, pelo
fato de estarmos em uma crise sistêmica, nos encontramos à beira do
colapso do capitalismo mundializado. Acreditar nisso seria ver as coisas
através da pequena janela da Europa. Creio que há dois fenômenos que
estão entrelaçados. O primeiro é a derrocada da segunda etapa da
experiência comunista, a falência dos Estados socialistas. Essa falência
abriu uma enorme brecha para o outro termo da contradição planetária
que é o capitalismo mundializado. Mas também abriu novos espaços de
tensões materiais. O desenvolvimento capitalista de países do porte da
China e da Índica, assim como a recapitalização da ex-União Soviética
tem o mesmo papel que o colonialismo no século XIX. Abriu espaços
gigantes de manobra, de clientela de novos mercados.
Estamos
vivendo agora esse fenômeno: a mundialização do capitalismo que se fez
potente e se multiplicou pelo enfraquecimento de seu adversário
histórico do período precedente. Esse fenômeno faz com que, pela
primeira vez na história da humanidade, se possa falar realmente de um
mercado mundial. Esse é um primeiro fenômeno. O segundo é o deslocamento
do centro de gravidade. Estou convencido de que as antigas figuras
imperiais, a velha Europa, por exemplo, a qual apesar de sua arrogância
tem uma quantidade considerável de crimes que ainda aguardam perdão, e
os Estados Unidos, apesar do fato de ainda ocupar um lugar muito
importante, são na verdade entidades capitalistas progressivamente
decadentes e até um pouco crepusculares. Na Ásia, na América Latina, com
a dinâmica brasileira, e inclusive em algumas regiões do Oriente Médio,
vemos aparecer novas potências. O sistema da expansão capitalista
chegou a uma escala mundial, mas o sistema das contradições internas do
capitalismo modifica sua geopolítica. As crises sistêmicas do
capitalismo – hoje estamos em uma grave crise sistêmica – não têm o
mesmo impacto segundo a região. Temos assim um sistema expansivo com
dificuldades internas.
Mas esses novos polos se desenvolvem segundo o mesmo modelo.
Sim,
e não creio que esses novos polos introduzam uma diferenciação
qualitativa. É um deslocamento interno ao sistema que dá a ele margem de
manobra.
Há duas versões de um de seus
livros mais importantes: trata-se do Manifesto para a Filosofia. O
primeiro Manifesto foi publicado há vinte anos, o segundo há dois. Se
levamos em conta as revoluções árabes e as crises do sistema financeiro
internacional, o que mudou fundamentalmente no mundo e no ser humano
entre os dois manifestos?
O que mudou
mais profundamente é a divisão subjetiva. As escolhas fundamentais às
quais estiveram confrontados os indivíduos durante o primeiro período
estavam ainda dominadas pela ideia da alternativa entre orientação
revolucionária e democracia e economia de mercado. Dito de outro modo,
estávamos na constituição do debate entre totalitarismo e democracia.
Isso exige dizer quer todo o mundo estava sob o influxo do balanço da
experiência histórica do século XX. O primeiro Manifesto foi publicado
em 1989, quase ao final do século XX. Em escala mundial, esta discussão,
que adquiriu formas distintas segundo os lugares, se focalizou em qual
poderia ser o balanço deste século XX. Por acaso, temos que condenar
definitivamente as experiências revolucionárias? É preciso abandoná-las
porque foram despóticas, violentas? Neste sentido, a pergunta era:
devemos ou não nos unir à corrente democrática e entrar na aceitação do
capitalismo como um mal menor?
A eficácia do
sistema não consistiu em dizer que o capitalismo era magnífico, mas sim
que era o mal menor. Na verdade, tirando um punhado de pessoas ninguém
pensa que o capitalismo é magnífico. Mas o que se disse nesse período
foi que a alternativa era desastrosa. Há 20 anos estávamos neste
contexto, ou seja, a reativação da filosofia inspirada pela moral de
Kant. Ou seja, não é o caso de ter grandes ideias de transformação
política voluntaristas porque isso conduz ao terror e ao crime, mas sim
velar por uma democracia pacificada dentro da qual os direitos humanos
estarão protegidos. Hoje esta discussão está terminada e está terminada
porque todo mundo vê que o preço pago por essa democracia pacificada é
muito elevado. Todo mundo toma consciência que se trata de um mundo
violento, com outras violências, que a guerra segue rondando todo o
tempo, que as catástrofes ecológicas e econômicas estão na ordem do dia e
que, além disso, ninguém sabe para onde vamos.
Podemos
imaginar que esta ferocidade da concorrência e esta constante submissão
à economia de mercado durem ainda vários séculos? Todo mundo sente que
não, que se trata de um sistema patrológico. Foi revelado que este
sistema, que nos foi apresentado como um sistema moderado, sem dúvida em
nada formidável, mas melhor que todos os demais, é um sistema
patológico e extremamente perigoso. Essa é a novidade. Não podemos mais
ter confiança no futuro desta visão das coisas. Estamos em uma fase de
transição e incerteza. Introduziu-se a hipótese de uma espécie de
humanismo renovado que poderíamos chamar de humanismo de mercado, o
mercado, mas humano. Creio que essa figura, que segue vigente graças aos
políticos e aos meios de comunicação, está morta. É como a União
Soviética: estava morta antes de morrer. Creio que, em condições
diferentes e em um universo de guerra, de catástrofes, de competição e
de crise, esta ideia do capitalismo com rosto humano e da democracia
moderada está morta. Agora será preciso não mais escolher entre duas
visões constituídas, mas sim inventar uma.
Dessa ambivalência provém talvez a sensação de que as jovens gerações estão perdidas, sem confiança em nada?
Isso
é o que sinto na juventude de hoje. Sinto que a juventude está
completamente imersa no mundo tal como é, não tem ideia de outra
alternativa, mas, ao mesmo tempo, está perdendo confiança neste mundo,
está vendo que, na verdade, este mundo não tem futuro, carece de toda
significação para o futuro. Creio que estamos em um período onde as
propostas de ideias novas estão na ordem do dia, mesmo que uma boa parte
da opinião não saiba disso. E não sabe porque ainda não chegamos ao
final deste esgotamento interno da promessa democrática. É o que eu
chamo de período intervalo: sabemos que as velhas escolhas estão
acabadas, mas não sabemos ainda muito bem quais são as novas escolhas.
Vários
filósofos apontam o fato de que os valores capitalistas destruíram a
dimensão humana. Você acredita, ao contrário, que ainda persiste uma
potência altruísta no ser humano.
Devemos
olhar o que ocorreu nas manifestações dos países árabes. Nunca
acreditei que essas manifestações iam inventar um novo mundo de um dia
para o outro, nem pensei que essas revoltas apresentavam soluções novas
para os problemas planetários. Mas o que me assombrou foi a reaparição
da generosidade do movimento de passa, quer dizer, a possibilidade de
agir, de sair, de protestar, de pronunciar-se independentemente do
limite dos interesses imediatos e fazê-lo junto a pessoas que, sabemos,
não compartilham nossos interesses. Aí encontramos a generosidade da
ação, a generosidade do movimento de massa, temos a prova de que esse
movimento ainda é capaz de reaparecer e reconstituir-se. Com todos os
seus limites, também temos um exemplo semelhante com o movimento dos
indignados.
O que fica evidente em tudo isso é
que estão aí em nome de uma série de princípios, de ideias, de
representações. Esse processo, obviamente, será longo. O movimento da
primavera árabe me parece mais interessante que o dos indignados porque
tem objetivos precisos, ou seja, a desaparição de um regime autocrático e
o tema fundamental que é o horror diante da corrupção. A luta contra a
corrupção é um problema capital do mundo contemporâneo. Nos indignados
vimos a nostalgia do velho Estado providência. Mas volto a reiterar que o
interessante em tudo isso é a capacidade de fazer algo em nome de uma
ideia, mesmo que essa ideia tenha acentos nostálgicos. O que me
interessa saber é se ainda temos a capacidade histórica de agir no
regime da ideia e não simplesmente segundo o regime da concorrência ou
da conservação. Isso para mim é fundamental. A reaparição de uma
subjetividade dissidente, seja quais forem suas formas e suas
referências, isso me parece muito importante.
Você
publicou um livro sobre o amor, que é de uma sabedoria comovedora. Para
um filósofo comprometido com a ação política e cujo pensamento integra
as matemáticas, a aparição do tema do amor é pouco comum.
O
amor é um tema essencial, uma experiência total. O amor está ameaçado
pela sociedade contemporânea. O amor é um gesto muito forte porque
significa que é preciso aceitar que a existência de outra pessoa se
converta em nossa preocupação. No amor, o fundamental está em que nos
aproximamos do outro com a condição de aceita-lo em minha existência de
forma completa, inteira. Isso é o que diferencia o amor do interesse
sexual. Este se fixa sobre o que os psicanalistas chamaram de “objetos
parciais”, ou seja, eu extraio do outro alguns emblemas fetiches que me
interessam e que suscitam minha excitação desejante. Não nego a
sexualidade, pelo contrário. Ela é um componente do amor. Mas o amor não
é isso. O amor é quando estou em estado de amar, de estar satisfeito e
de sofrer e de esperar tudo o que vem do outro: a maneira como viaja,
sua ausência, sua chegada, sua presença, o calor de seu corpo, minhas
conversas com ele, os gostos compartilhados. Pouco a pouco, a totalidade
do que o outro é torna-se um componente de minha própria existência.
Isso é muito mais radical que a vaga ideia de preocupar-me com o outro. É
o outro com a totalidade infinita que representa e com o qual me
relaciono em um movimento subjetivo extraordinariamente profundo.
Em que sentido o amor está ameaçado pelos valores contemporâneos?
Está
ameaçado porque o amor é gratuito e, desde o ponto de vista do
materialismo democrático, injustificado. Por que deveria me expor ao
sofrimento da aceitação da totalidade do outro? O melhor seria extrair
dele o que melhor corresponde aos meus interesses imediatos e aos meus
gostos e descartar o resto. O amor está ameaçado hoje porque é
distribuído em fatias. Observemos como se organizam as relações nestes
portais de internet onde as pessoas entram em contato: o outro já vem
fatiado em fatias, um pouco como a vaca nos açougues. Seus gostos, seus
interesses, a cor dos olhos, o corte dos cabelos, se é grande ou
pequeno, loiro ou moreno. Vamos ter uns 40 critérios e, ao final, vamos
nos dizer: vou comprar este. É exatamente o contrário do amor. O amor é
justamente quando, em certo sentido, não tenho a menor ideia do que
estou comprando.
E frente a essa
modalidade competitiva das relações, você proclama que o amor deve ser
reinventado para nos defendermos, que o amor deve reafirmar seu valor de
ruptura e de loucura.
O amor deve
reafirmar o fato de que está em ruptura com o conjunto das leis
ordinárias do mundo contemporâneo. O amor deve ser reinventado como
valor universal, como relação em direção da alteridade, daquilo que não
sou eu e onde a generosidade é obrigatória. Se não aceito a
generosidade, tampouco aceito o amor. Há uma generosidade amorosa que é
inevitável. Sou obrigado a ir na direção do outro para que a aceitação
do outro em sua totalidade possa funcionar. Essa é uma excelente escola
para romper com o mundo tal como é. Minha ideia sobre a reinvenção do
amor quer dizer o seguinte: uma vez que o amor se refere a essa parte da
humanidade que não está entregue à competição, à selvageria; uma vez
que, em sua intimidade mais poderosa, o amor exige uma espécie de
confiança absoluta no outro; uma vez que vamos aceitar que este outro
esteja totalmente presente em nossa própria vida, que nossa vida esteja
ligada de maneira interna a esse outro, pois bem, já que tudo descrito
acima é possível isso prova que não é verdade que a competitividade, o
ódio, a violência, a rivalidade e a separação sejam a lei do mundo.
A política não está muito afastada de tudo isso. Para você, há uma dimensão do amor na ação política?
Sim,
inclusive pode resultar perigoso. Se buscamos uma analogia política do
amor eu diria que, assim como no amor onde a relação com uma pessoa tem
que constituir sua totalidade existencial como um componente de minha
própria existência, na política autêntica é preciso que haja uma
representação inteira da humanidade. Na política verdadeira, que também é
um componente da vida verdadeira, há necessariamente essa preocupação,
essa convicção segundo a qual estou ali enquanto representante e agente
de toda a humanidade. Do mesmo modo que ocorre no amor, onde minha
preocupação, minha proposta e minha atividade estão ligadas à existência
do outro em sua totalidade.
O que pode
fazer um casal jovem e enamorado neste mundo violento, competitivo, onde
o projeto do casal já está ameaçado pela própria dinâmica do consumo e
da competição?
Creio que o projeto de um
casal pode ser uma rama se não se dissolve, se não se metamorfoseia em
um projeto que acabe se transformando, no fundo, na acumulação de
interesses particulares. Na situação de crise e de desorientação atual o
mais importante é segurar as mãos no timão da experiência pela qual
estamos passando, seja no amor, na arte, na organização coletiva, no
combate político. Hoje, o mais importante é a fidelidade: em um ponto,
ainda que seja em apenas um, é preciso não ceder. E para não ceder
devemos ser fieis ao que ocorreu, ao acontecimento. No amor, é preciso
ser fiel ao encontro com o outro porque vamos criar um mundo a partir
desse encontro. Claro, o mundo exerce uma pressão contrária e nos diz:
“cuidado, defenda-se, não deixe que o outro abuse de ti”. Com isso está
dizendo: “voltem ao comércio ordinário”.
Então,
como essa pressão é muito forte, o fato de manter o timão no rumo certo,
de manter vivo um elemento de exceção, já é extraordinário. É preciso
lutar para conservar o excepcional que ocorre em nossas vidas. Depois
veremos. Dessa forma salvaremos a ideia e saberemos o que é exatamente a
felicidade. Não sou um asceta, não sou a favor do sacrifício. Estou
convencido de que se conseguimos organizar uma reunião com trabalhadores
e colocamos em marcha uma dinâmica, se conseguimos superar uma
dificuldade no amor e nos reencontramos com a pessoa que amamos, se
fazemos uma descoberta científica, então começamos a compreender o que é
a felicidade. A felicidade é uma ideia fundamental. A construção
amorosa é a aceitação conjunta de um sistema de riscos e de invenções.
Você também introduz uma ideia peculiar e maravilhosa: devemos fazer tudo para preservar o que nos ocorre de excepcional.
Aí
está o sentido completo da vida verdadeira. Uma vida verdadeira se
configura quando aceitamos os presentes perigosos que a vida nos
oferece. A existência nos traz riscos, mas, na maioria das vezes,
estamos mais espantados que felizes por esses presentes. Creio que
aceitar isso que nos ocorre e que parece raro, estranho, imprevisível,
excepcional, que seja o encontro com uma mulher ou o maio de 68, aceitar
isso e suas consequências, isso é a vida, a verdadeira vida.
Tradução: Marco Aurélio Weissheimer
*GilsonSampaio
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