STF 10 x 0 Globo/Kamel. Cotas raciais são aprovadas
"A partir dessa decisão, o Brasil tem mais um motivo para olhar no espelho da história e não se corar de vergonha". Ayres Brito
Por Saul Tourinho Leal
O
Supremo Tribunal Federal tem como presidente o ministro Carlos Ayres
Britto. Presidir a Corte propicia muitas atribuições, dentre elas,
montar a pauta de julgamento do Tribunal. Quase sempre esse poder é
exercido à imagem e semelhança do presidente. Dentro desse feixe de
idéias é que surge o atual presidente do STF, ministro Ayres Britto.
Poeta,
Britto insere em seus votos as marcas da sua caminhada, seja pela
poesia, seja pela sonoridade das frases construídas, seja pelas menções
filosóficas ou, até mesmo, pela sua espirituosidade. O ministro tem a
alma nordestina refletida em cada degrau da sua vida pública. Na
envolvência do ritmo das orações que constrói, escandalizou os duros de
coração e arrebatou a sensibilidade daqueles que não amordaçaram a boca
da alma.
Nem
bem iniciava suas atividades no STF, citou Luís de Camões. O então
presidente da Corte, Nelson Jobim, reagiu: “Até onde sei, Camões não era
jurista!” – disse. “Mas era sábio” – respondeu Britto, sem sair da
linha.
Seria possível estabelecer conexões entre a poesia do ministro Ayres Britto e as decisões proferidas por ele no STF?
Fazendo uma leitura atenta dos versos do poeta-jurista, conseguimos identificar sua índole, sua intimidade, o ethos que
o conduz e a sua maneira de ver o mundo. Muitas vezes ele extrai dos
versos as respostas para os mais intrigantes casos submetidos à sua
apreciação.
A
poesia de Britto é ele mesmo retratado em versos. Não é o Ministro quem
as escreve. Ela é que o convida a servir de instrumento para a
imortalidade conseguida com o registro no papel. Navegando pelo mar
poético de Britto – um mar ora calmo, ora revolto – é possível perceber
os eixos que ligam a sua arte aos seus votos.
Na obra Varal das Borboletras, ele inicia com a citação de T.S. Eliot:
Eu disse à minha alma, fica tranquila e espera...
Até que as trevas sejam luz,
e a quietude seja dança[1].
O
ministro leu esse trecho quando estava ao lado da Presidente da
República, Dilma Roussef, na solenidade de posse como Presidente do STF.
Seus escritos já indicavam a ligação existente entre o poeta-jurista e o
poeta modernista, dramaturgo e crítico literário inglês nascido nos
Estados Unidos, vencedor do Prêmio Nobel de Literatura de 1948.
O
ministro passará pouco tempo na presidência do STF. São somente sete
meses. O número é cabalístico. A Grécia tinha sete sábios e a idade
média cristã tinha sete artes livres (gramática, retórica, dialética,
aritmética, geometria, música, astronomia). O que pensar da atuação de
Britto na presidência do STF? Ele próprio responde num de seus versos:
“Ninguém veio ao mundo para ser figurante, mas fulgurante”[2].
Durante
esses sete meses, o STF será desafiado a apreciar questões que envolvem
o Direito Econômico, o patrimônio nacional e a dinâmica dos mercados.
Não raramente a pauta da Corte é contemplada com temas de forte apelo
econômico que evidencia duelos entre as forças do capital e o estatismo
Nacional. Olhando retrospectivamente, percebe-se que a poesia de Ayres
Britto anunciava qual seria sua posição no julgamento do caso apreciado
pelo STF que discutia a manutenção, ou não, do monopólio dos Correios
brasileiro.
No poema ‘Neoliberalismo’, Britto antecipou sua visão do universo econômico. Segundo ele:
A onda neoliberal
É uma outra visão:
Pra cada regra moral
Há um monte de exceção[3].
O
poema acima mostra a reticência para com o modelo neoliberal. Para ele,
o modelo excepciona demasiadamente regras morais. É como se o modelo
desvirtuasse o próprio homem. A visão do presidente sobre o poder do
mercado foi antecipada mais uma vez em outro dos seus versos:
O pior do Mercado é que ele já passou de
motor a mentor da História[4].
Mais adiante, no poema ‘Wall Street’, Carlos Britto registrou sua opinião sobre esse importante centro financeiro:
Coração das finanças do mundo.
Coração de pedra.
Coronárias de chacal.
O anticoração[5].
Vejam
que os mercados e o neoliberalismo aparecem conectados com uma visão de
alerta, de necessária reconstrução do que está posto. Ter essa
percepção é de fundamental importância para entendermos a lógica que
conduz o ministro quando desafiado a pensar conflitos judicializados que
envolvem a dinâmica do capitalismo, a lógica dos mercados e a força do
dinheiro. Como ele votaria, por exemplo, acerca da possibilidade de
pessoas jurídicas realizarem doações de campanha? Essa indagação está
posta no STF por meio de uma ação direta de inconstitucionalidade
ajuizada pelo Conselho Federal da OAB.
O sentimento existente em relação aos Estados Unidos é externalizado em dois de seus poemas. Em “De Roma aos States”, ele diz:
Não é por falar mal,
Mas o mal de todo império
É que ele se torna o império do mal[6].
Há
outro poema que revela algo além da sua visão sobre os Estados Unidos.
No verso abaixo, é possível realizar um exercício visando identificar
qual a visão que Britto terá caso tenha de proferir voto no julgamento
da ação que questiona o decreto que regulamentou o dispositivo
constitucional que reconheceu a propriedade definitiva dos ocupantes das
terras tidas como antigos quilombos. O poema “Dois pesos, duas
medidas”, deve ser lido com sensibilidade. Vejamos:
Os Sem-terra se apossam de fazendas alheias
E são postos a correr pela Polícia.
Os Estados Unidos se apossam de pátrias alheias
E eles mesmos são a Polícia
Os Estados Unidos se proclamam
O xerife do mundo
E o mundo se pergunta,
Acabrunhado:
E quem pediu para ser xerifado?[7]
Em
junho de 2011 o STF apreciava a constitucionalidade da chamada Marcha
da Maconha. Ao chegar o momento da votação, o Ministro utilizou um dos
versos imortalizado na obra Varal das Borboletras: “a liberdade de
expressão é a maior expressão da liberdade”[8].
O voto foi pela constitucionalidade da Marcha dentro de uma linha de
raciocínio empregada em outras oportunidades nas quais o que surgiu em
discussão foi a liberdade de expressão. Basta recordar o voto favorável à
não-recepção da Lei de Imprensa pela Constituição Federal.
Ao
votar a respeito da possibilidade de um decreto do governador do
Distrito Federal impedir a manifestação de populares da Praça dos Três
Poderes, o ministro Britto afirmou que o direito de reunião chega a ser
sacrossanto. Em um dos seus poemas o ministro fez registro que deixa
evidente a coerência do seu pensamento poético com a decisão proferida
nesse caso:
O silêncio das bocas unidas
Costuma ser inventivo.
É um silêncio quente.
Altivo.
- Um silêncio eloqüente[9].
Na
temática tributária, os versos são proféticos. Quando o ministro
apreciou o caso que discutia se a imunidade tributária prevista pela
Constituição Federal para templos religiosos poderia se aplicar aos
cemitérios, ele registrou: “Eu tendo a reagir a ideia de que a longa manus tributária
do Poder Público alcança a última morada do indivíduo. Quer dizer, nem a
última morada do indivíduo é subtraída à longa manus fiscal”. O
ministro votou pela aplicação da imunidade aos cemitérios. A postura de
defesa dos contribuintes pessoas físicas foi anunciada em um verso do
ministro:
O governo confunde FISCO com confisco.
Até o pôr-do-sol por trás dos prédios incrementa o IPTU[10].
No
discurso de posse como presidente do STF, o ministro afirmou: “Todos
nós magistrados, quando vamos nos recolher à noite, para o merecido
sono, dizemos mentalmente ou inconscientemente, ‘Senhor, não nos deixeis
cair em tanta ação’”. A expressão foi retirada de um dos poemas do seu
livro Varal das Borboletras, no qual o poeta-jurista deixou consignado:
Santa Maria do desestresse,
Não nos deixeis cair em tanta ação[11].
No
STF, chamado a decidir acerca da continuidade, ou não, da ação penal
contra um caseiro que furtou cinco galinhas do seu patrão, O ministro
aplicou o chamado princípio da insignificância, extinguindo a ação
penal. Para ele, a conduta do caseiro foi devida “muito mais a extrema
carência material do paciente do que indícios de um estilo de vida em
franca aproximação da delituosidade”. A posição poderia ter sido
antevista da leitura de um dos seus poemas:
Três meninos-de-rua a furtar cenouras numa hortaliça
E as cenouras a se dar a eles com um sumarento gosto de justiça[12].
Quanto
ao emblemático caso do Mensalão, o ministro Ayres Britto tem se
manifestado na imprensa qualificando o caso como o mais importante
julgamento da história do Supremo. Inúmeros observadores tentam decifrar
qual seria o seu voto. Os poemas de Britto anunciam sua posição:
Que danosa persistência:
A influência do tráfico e o tráfico de influência[13].
Ao
proferir voto mantendo preso o então governador do Distrito Federal,
José Roberto Arruda, Britto tornou célebre uma frase: “Há quem chegue às
maiores altura, só para cometer as maiores baixezas”. A postura foi
coerente com o que ficou registrado em um dos seus versos na obra Varal
das Borboletras: “Tenho visto canetas caríssimas em mãos que não valem
nada”[14].
Quanto
às comissões parlamentares de inquérito promovidas pelo Congresso
Nacional, outro verso expõe sua opinião a respeito dos trabalhos
investigativos realizados no âmbito do Parlamento. Ele diz: “CPI que não
dá em nada é minha pizza despreferida”[15].
Outra
posição do ministro antecipada em seus poemas foi a manifestada no
julgamento, pelo STF, da ação movida pelo Conselho Federal da OAB
pleiteando a revisão da Lei de Anistia. Na oportunidade, o Ministro
entendeu que crimes hediondos e equiparados a estes, como tortura e
estupro, não foram anistiados pela lei de 1979. A posição do Ministro
guarda sintonia com a poesia-protesto trazida na obra A Pele no Ar. No
poema “Pinochet em Londres” o ministro estampou a sua opinião sobre
torturadores:
Prenderam Pinochet.
Que bela oportunidade!
O animal cometeu crimes
Contra a humanidade[16].
Enquanto
o país aguardava a decisão do STF acerca do reconhecimento jurídico das
uniões homoafetivas, a posição do ministro Carlos Ayres Britto estava
contida no seu poema Experiência:
Há 45 anos atrás
Eu tinha treze anos.
Poucas idéias na cachola,
É verdade.
Mas sonhos em profusão
E uma experiência enorme
No soltar as amarras desse navio
De nome coração[17].
Ao
proferir o voto, Britto registrou: “É a perene postura de reação
conservadora aos que, nos insondáveis domínios do afeto, soltam por
inteiro as amarras desse navio chamado coração”. Percebam que esse
último trecho - “amarras desse navio de nome coração” - é o trecho final
do poema acima.
A
desigualdade é outra problemática que afeta a trajetória poética de
Ayres Britto, deixando-o visivelmente machucado. No poema “Doença
Braba”, o poeta denuncia a chaga da ‘injustiça social” da seguinte
forma:
O mundo padece de uma doença antiga,
Dolorosa,
uma doença que debilita o mundo
e o torna feio,
E que avança tanto pelas entranhas do mundo
que eu temo que ela se torne incurável.
Essa doença braba que rói as entranhas do mundo
como se fosse motor-serra a derrubar florestas
é a doença que atende pelo nome espectral,
o odiento nome de
INJUSTIÇA SOCIAL[18].
Quando à eficácia dos direitos sociais, a preocupação do ministro com a temática moradia é retratada no poema abaixo:
Tenho que há moradores de rua em Brasília.
- Tantos, que já vão pra lá de mil...
Tenho que esfregar essa vergonha na cara do Brasil[19].
Confirmando
a sensibilidade anunciada nos versos acima, o ministro Ayres Britto
votou no STF pela impenhorabilidade do imóvel que constituir bem de
família. Para o ministro, o direito à moradia, constante na Constituição
Federal, é irrenunciável, não podendo ser mitigado por um contrato de
fiação.
O
Presidente do STF não parece deslumbrado com o cargo. Sua humildade
permanece. No poema “Indiozinho”, ele revela o que sente quando o chamam
de “ministro”:
Hoje me chamam de ministro
E eu decido sob respeitável toga.
Meu coração, porém, não mudou nada.
Continuo um romântico indiozinho
a remar sua piroga
e a cismar por entre as árvores, à noitinha,
Vendo em cada pirilampo e em cada estrela
Os faiscantes olhos da namoradinha[20].
Ao
proferir o voto sobre a recepção, ou não, da Lei de Imprensa, o
ministro uniu a liberdade de expressão à democracia. Isso, ele já tinha
feito no seu poema “Primeiro botão”, no qual registrou:
O que quer que seja
pode ser dito por quem quer que seja.
- Esse primeiro botão que eu trançaria
No colar de flores da Democracia[21].
Outro
poema do ministro anuncia sua visão contrária às interpretações
originalistas que remetem ao ideal constituinte a identificação dos
enunciados constitucionais. No poema “Passado”, o ministro Ayres Britto
torna público o seu pensamento acerca da possibilidade do passado
governar o futuro. Ele diz:
Que o passado esteja diante de nós,
Vá lá...
Mas o passado adiante de nós,
Sai pra lá...[22]
O ideal de igualdade, eixo temático a nortear inúmeras decisões do STF, é alvo da atenção do poeta. Ele diz no poema “Isonomia”:
Deus é o rei
E a Terra a sua rainha.
Dessa união só podem nascer príncipes.
Não súditos e muito menos escravos,
Porque tudo é uma só realeza.
- Devíamos nos tratar por “alteza”[23].
Por
fim, saudando o ministro Britto por ocasião da sua posse na Presidência
do STF, o ministro Celso de Mello afirmou que o novo Presidente teve
significativa participação na construção de uma expressiva
“jurisprudência das liberdades”. A liberdade, sem sombra de dúvida, é um
dos valores de maior destaque na construção poética de Britto. Tanto
assim o é que um dos seus mais belos poemas é registrado a ela. Vejamos
os trechos do poema “Silogismo”:
A Autoridade não tem autoridade
Pra dizer qual parte do seu corpo a imolar
Em favor da Liberdade.
A Liberdade é que tem autoridade
Sobre o tanto a cortar da sua carne
Em favor da Autoridade.
Logo,
O princípio de maior autoridade
Não é o princípio da Autoridade.
- É o da Liberdade[24].
Eis
a trajetória poética do novo presidente do STF, Carlos Ayres Britto.
Por meio desse passeio na arte do homem é possível antever o raciocínio
do ministro no momento de decidir dilemas da vida que lhe são entregues
em razão do ofício que desempenha como julgador da Suprema Corte.
Seus versos refletem o que a alma não consegue sufocar. Suas decisões não estão afastadas desse fenômeno.
*Mariadapenhaneles
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