A bomba de Hiroshima em Gaza
Via Boitempo
Urariano Mota
Há
um tempo em que a poesia parece um luxo, uma alienação, um traste
inútil, uma ocupação desonrosa, de fazer vergonha ao poeta, que se vê
acovardado no meio do mundo. É um tempo em que a pornografia
migrou da pedofilia, dos abusos e animalidade. Porque em Gaza hoje, na
guerra e no desprezo à pessoa humana, se faz melhor, mais eloquente
pornografia.
Aquela informação acadêmica que nos chegava do filósofo Adorno, de 1951, quando ele escreveu: “Escrever poesia
depois de Auschwitz é bárbaro. E isso corrói até mesmo o conhecimento
de por que se tornou impossível escrever poesia hoje”, essa frase do
filósofo alemão, que expressava o desacordo de razão e sentimento diante
do horror, foi nestes dias atualizada. Nesta última quarta-feira 6 de agosto,
enquanto se dava um cessar-fogo precário, um intervalo dos palestinos
pelo Estado de Israel, o mundo também lembrava os 69 anos da explosão da
bomba atômica em Hiroshima. Mas que coincidência, poderíamos dizer, se
na história houvesse coincidências.
Em 2003, escrevi “A Rosa da Palestina”, e naquela ocasião eu esperava que a poesia fosse uma defesa contra a barbárie. Aqui vai o texto, que relacionava a bomba atômica e o massacre em Gaza.
A ROSA DA PALESTINA
Um poema de Vinícius ordena, suplica que “Pensem nas crianças mudas
telepáticas. Pensem nas meninas cegas inexatas. Pensem nas mulheres
rotas alteradas. Pensem nas feridas como rosas cálidas…”. É esse poema,
“A Rosa de Hiroxima”, é essa talha em versos que ordena, que resiste e
insiste em nossa memória, quando vemos a foto de Somaeah Hassan, de 6
anos, abatida na faixa de Gaza.
Essa flor fuzilada, entre gazes, olhinhos semicerrados, é a própria
Rosa da Palestina. Contenhamos a velocidade da mão, refreemos a
velocidade da escrita, represemos o fluxo da leitura. Pedimos uma pausa
no caleidoscópio, nas luzes fugazes, frívolas, vulgares do incessante ir
e vir do noticiário de todos os dias. Somaeah Hassan está morta. Calma,
buldogues, fechem suas bocas, canos quentes de balas, suspendam a
digitação, noticiaristas, segurem por um instante a divulgação do mais
quente e recente escândalo. Porque o escândalo já está feito: Somaeah
Hassan está morta. Na foto, seus olhinhos se negam a compreender o
horror das balas que a levantaram do chão de refugiados de Rafah.
Negaram-se é maneira de dizer. São incapazes, nos seus 6 anos. Mais
tempo houvesse, mais vida, outra vida tivesse, Somaeah compreenderia e
se negaria a compreender o horror maior do seu povo cercado como cães
raivosos. E a raiva, em cães, se abate. Mas a raiva, em gente feita cão,
não se abate – apenas cresce, quando a crianças como Hassan abatem.
Refreemos a mão. É difícil. Mas tentemos.
Era
bom, assim pede a paz que nosso peito deseja, era bom um lugar-comum
que nos ajudasse, que nos socorresse. Dizer, por exemplo, que assim é a
guerra, cruel como todas as outras, que nela não existem santos e
demônios, que a guerra nos transforma a todos em anjos das trevas. Dito
isto, seria melhor dizer que o terror feito pelo Estado de Israel apenas
é uma resposta ao terror sofrido antes por sua gente. Dito isto,
podemos afinal dizer que o mal e o mau têm que ser destruídos, para que
só então a paz volte. Mas, ao chegarmos a este passo, perguntamos: mas
de que mal e maus vocês falam, caras-pálidas? Pois será que ninguém
ainda notou que a nossa cara tem a cara e o sangue da gente palestina?
Que eles, os palestinos, são a nossa própria cara? Será que ninguém
ainda percebeu que o desespero dos povos palestinos é o nosso próprio
desespero em outras terras e em outras circunstâncias? Aquele mesmo
desespero que acomete a gente em situações-limite? Ainda que os Estados Unidos exibam ao mundo um negro para consumo externo, ele apenas nos aparece como um novo Al Jolson, com a cara pintada. Os interesses de que ela fala não são os nossos. Servem à mesma rosa atômica que se fez cair em Hiroshima e Nagasaki.
Então
voltemos, mais serenos. Mas, desgraça, descobrimos: serenos, não temos
mais mãos. Temos somente uma grande letargia. Então quebremos o torpor,
voltemos ao princípio.
“A rosa hereditária, a rosa radioativa, estúpida e inválida. A rosa com cirrose, a anti-rosa atômica” sofreu uma tradução no campo de refugiados
da faixa de Gaza. Ela se fez uma rosa fuzilada, a Rosa da Palestina, no
corpinho frágil de Somaeah Hassan. Essa menina nos fere como uma
filhinha morta. Ela, em árabe, em dialeto, em outra língua, nos fala e a
compreendemos como compreendemos e amamos uma própria filha que o nosso
sêmen esculpiu. Mais: como um serzinho esculpido por nós por um nosso
irmão. Mais: irmão com um sentido de irmão mais fundo que o genético.
Mais: com um sentido de irmão mais fundo que o racial. Mais: com um
sentido de irmão mais fundo que o nacional. Mais, finalmente: com um
sentido de irmão que é o próprio sentido de humanidade. Hassan é a nossa
própria humanidade abatida. Ela se abre em outras rosas que se
despedaçam em Jerusalém. Rosas que em vez de pétalas jogam carnes,
fígado, coração e intestinos.
Já secamos as lágrimas. Não nos perguntem portanto por que vomitamos. Nós não queríamos ter essas Rosas da Palestina.
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Urariano Mota é natural de Água Fria,
subúrbio da zona norte do Recife. Escritor e jornalista, publicou
contos em Movimento, Opinião, Escrita, Ficção e outros periódicos de
oposição à ditadura. É colunista do Vermelho. As revistasCarta Capital, Fórum e Continente também já veicularam seus textos. Autor deSoledad no Recife (Boitempo, 2009) sobre a passagem da militante paraguaia Soledad Barret pelo Recife, em 1973, de O filho renegado de Deus (Bertrand Brasil, 2013), uma narração cruel e terna de certa Maria, vítima da opressão cultural e de classes no Brasil, e do Dicionário Amoroso do Recife (Casarão do Verbo, 2014). Colabora para o Blog da Boitempo quinzenalmente, às terças.
*GilsonSampaio
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