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Ser de esquerda é não aceitar as injustiças, sejam elas quais forem, como um fato natural. É não calar diante da violação dos Direitos Humanos, em qualquer país e em qualquer momento. É questionar determinadas leis – porque a Justiça, muitas vezes, não anda de mãos dadas com o Direito; e entre um e outro, o homem de esquerda escolhe a justiça.
É ser guiado por uma permanente capacidade de se estarrecer e, com ela e por causa dela, não se acomodar, não se vender, não se deixar manipular ou seduzir pelo poder. É escolher o caminho mais justo, mesmo que seja cansativo demais, arriscado demais, distante demais. O homem de esquerda acredita que a vida pode e deve ser melhor e é isso, no fundo, que o move. Porque o homem de esquerda sabe que não é culpa do destino ou da vontade divina que um bilhão de pessoas, segundo dados da ONU, passe fome no mundo.
É caminhar junto aos marginalizados; é repartir aquilo que se tem e até mesmo aquilo que falta, sem sacrifício e sem estardalhaço. À direita, cabe a tarefa de dar o que sobra, em forma de esmola e de assistencialismo, com barulho e holofotes. Ser de esquerda é reconhecer no outro sua própria humanidade, principalmente quando o outro for completamente diferente. Os homens e mulheres de esquerda sabem que o destino de uma pessoa não deveria ser determinado por causa da raça, do gênero ou da religião.
Ser de esquerda é não se deixar seduzir pelo consumismo; é entender, como ensinou Milton Santos, que a felicidade está ancorada nos bens infinitos. É mergulhar, com alegria e inteireza, na luta por um mundo melhor e neste mergulho não se deixar contaminar pela arrogância, pelo rancor ou pela vaidade. É manter a coerência entre a palavra e a ação. É alimentar as dúvidas, para não cair no poço escuro das respostas fáceis, das certezas cômodas e caducas. Porém, o homem de esquerda não faz da dúvida o álibi para a indiferença. Ele nunca é indiferente. Ser de esquerda é saber que este “mundo melhor e possível” não se fará de punhos cerrados nem com gritos de guerra, mas será construído no dia-a-dia, nas pequenas e grandes obras e que, muitas vezes, é preciso comprar batalhas longas e desgastantes. Ser de esquerda é, na batalha, não usar os métodos do inimigo.
Fernando Evangelista

quarta-feira, agosto 20, 2014

A bomba de Hiroshima em Gaza


Via Boitempo
Urariano Mota
14.08.18_Urariano Mota_Bomba Gaza Hiroshima

Há um tempo em que a poesia parece um luxo, uma alienação, um traste inútil, uma ocupação desonrosa, de fazer vergonha ao poeta, que se vê acovardado no meio do mundo. É um tempo em que a pornografia migrou da pedofilia, dos abusos e animalidade. Porque em Gaza hoje, na guerra e no desprezo à pessoa humana, se faz melhor, mais eloquente pornografia.
Aquela informação acadêmica que nos chegava do filósofo Adorno, de 1951, quando ele escreveu: “Escrever poesia depois de Auschwitz é bárbaro. E isso corrói até mesmo o conhecimento de por que se tornou impossível escrever poesia hoje”, essa frase do filósofo alemão, que expressava o desacordo de razão e sentimento diante do horror, foi nestes dias atualizada. Nesta última quarta-feira 6 de agosto, enquanto se dava um cessar-fogo precário, um intervalo dos palestinos pelo Estado de Israel, o mundo também lembrava os 69 anos da explosão da bomba atômica em Hiroshima. Mas que coincidência, poderíamos dizer, se na história houvesse coincidências.
Em 2003, escrevi “A Rosa da Palestina”, e naquela ocasião eu esperava que a poesia fosse uma defesa contra a barbárie. Aqui vai o texto, que relacionava a bomba atômica e o massacre em Gaza.
A ROSA DA PALESTINA
Um poema de Vinícius ordena, suplica que “Pensem nas crianças mudas telepáticas. Pensem nas meninas cegas inexatas. Pensem nas mulheres rotas alteradas. Pensem nas feridas como rosas cálidas…”. É esse poema, “A Rosa de Hiroxima”, é essa talha em versos que ordena, que resiste e insiste em nossa memória, quando vemos a foto de Somaeah Hassan, de 6 anos, abatida na faixa de Gaza. Essa flor fuzilada, entre gazes, olhinhos semicerrados, é a própria Rosa da Palestina. Contenhamos a velocidade da mão, refreemos a velocidade da escrita, represemos o fluxo da leitura. Pedimos uma pausa no caleidoscópio, nas luzes fugazes, frívolas, vulgares do incessante ir e vir do noticiário de todos os dias. Somaeah Hassan está morta. Calma, buldogues, fechem suas bocas, canos quentes de balas, suspendam a digitação, noticiaristas, segurem por um instante a divulgação do mais quente e recente escândalo. Porque o escândalo já está feito: Somaeah Hassan está morta. Na foto, seus olhinhos se negam a compreender o horror das balas que a levantaram do chão de refugiados de Rafah. Negaram-se é maneira de dizer. São incapazes, nos seus 6 anos. Mais tempo houvesse, mais vida, outra vida tivesse, Somaeah compreenderia e se negaria a compreender o horror maior do seu povo cercado como cães raivosos. E a raiva, em cães, se abate. Mas a raiva, em gente feita cão, não se abate – apenas cresce, quando a crianças como Hassan abatem.
Refreemos a mão. É difícil. Mas tentemos.
Era bom, assim pede a paz que nosso peito deseja, era bom um lugar-comum que nos ajudasse, que nos socorresse. Dizer, por exemplo, que assim é a guerra, cruel como todas as outras, que nela não existem santos e demônios, que a guerra nos transforma a todos em anjos das trevas. Dito isto, seria melhor dizer que o terror feito pelo Estado de Israel apenas é uma resposta ao terror sofrido antes por sua gente. Dito isto, podemos afinal dizer que o mal e o mau têm que ser destruídos, para que só então a paz volte. Mas, ao chegarmos a este passo, perguntamos: mas de que mal e maus vocês falam, caras-pálidas? Pois será que ninguém ainda notou que a nossa cara tem a cara e o sangue da gente palestina? Que eles, os palestinos, são a nossa própria cara? Será que ninguém ainda percebeu que o desespero dos povos palestinos é o nosso próprio desespero em outras terras e em outras circunstâncias? Aquele mesmo desespero que acomete a gente em situações-limite? Ainda que os Estados Unidos exibam ao mundo um negro para consumo externo, ele apenas nos aparece como um novo Al Jolson, com a cara pintada. Os interesses de que ela fala não são os nossos. Servem à mesma rosa atômica que se fez cair em Hiroshima e Nagasaki.
Então voltemos, mais serenos. Mas, desgraça, descobrimos: serenos, não temos mais mãos. Temos somente uma grande letargia. Então quebremos o torpor, voltemos ao princípio.
“A rosa hereditária, a rosa radioativa, estúpida e inválida. A rosa com cirrose, a anti-rosa atômica” sofreu uma tradução no campo de refugiados da faixa de Gaza. Ela se fez uma rosa fuzilada, a Rosa da Palestina, no corpinho frágil de Somaeah Hassan. Essa menina nos fere como uma filhinha morta. Ela, em árabe, em dialeto, em outra língua, nos fala e a compreendemos como compreendemos e amamos uma própria filha que o nosso sêmen esculpiu. Mais: como um serzinho esculpido por nós por um nosso irmão. Mais: irmão com um sentido de irmão mais fundo que o genético. Mais: com um sentido de irmão mais fundo que o racial. Mais: com um sentido de irmão mais fundo que o nacional. Mais, finalmente: com um sentido de irmão que é o próprio sentido de humanidade. Hassan é a nossa própria humanidade abatida. Ela se abre em outras rosas que se despedaçam em Jerusalém. Rosas que em vez de pétalas jogam carnes, fígado, coração e intestinos.
Já secamos as lágrimas. Não nos perguntem portanto por que vomitamos. Nós não queríamos ter essas Rosas da Palestina.
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Soledad no Recife, de Urariano Mota, está à venda em versão eletrônica (ebook), por apenas R$10. Para comprar, clique aqui ou aqui.
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Urariano Mota é natural de Água Fria, subúrbio da zona norte do Recife. Escritor e jornalista, publicou contos em Movimento, Opinião, Escrita, Ficção e outros periódicos de oposição à ditadura. É colunista do Vermelho. As revistasCarta Capital, Fórum e Continente também já veicularam seus textos. Autor deSoledad no Recife (Boitempo, 2009) sobre a passagem da militante paraguaia Soledad Barret pelo Recife, em 1973, de O filho renegado de Deus (Bertrand Brasil, 2013), uma narração cruel e terna de certa Maria, vítima da opressão cultural e de classes no Brasil, e do Dicionário Amoroso do Recife (Casarão do Verbo, 2014). Colabora para o Blog da Boitempo quinzenalmente, às terças.
*GilsonSampaio

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