Adriano Diogo era militante estudantil na resistência à Ditadura Militar. Fez movimento secundarista e universitário. Estudava Geologia na USP quando foi preso e torturado, em 1973, no DOI-Codi de São Paulo, comandado, na época, por Carlos Alberto Brilhante Ustra, hoje coronel reformado do Exército. Foi no dia de sua prisão que testemunhou o assassinato de Alexandre Vannuchi Leme, seu companheiro de militância e amigo de turma da universidade.
Desde então, sempre se dedicou às causas ligadas à justiça social e desenvolveu uma longa luta por moradia, saúde, direitos humanos e meio ambiente. Atualmente é deputado estadual na Assembleia Legislativa de São Paulo e presidente da Comissão de Direitos Humanos e da Comissão Estadual da Verdade, que investiga as mortes e torturas durante a Ditadura.
Recentemente, Adriano combateu as prisões de militantes nas manifestações contra o aumento das tarifas na Capital paulista. É um importante lutador contra a violência policial na periferia e um grande apoiador da luta dos petroleiros em defesa da Petrobrás e do petróleo brasileiro.
A Verdade – A Comissão da Verdade de São Paulo termina seus trabalhos em dezembro deste ano. Já é possível fazer um balanço do trabalho realizado até aqui?
Adriano Diogo – Eu acho que a comissão cumpriu um papel importantíssimo, que foi, primeiro, de emular a Comissão Nacional e incentivar a criação de outras comissões estaduais, municipais, universitárias e outras.
Depois, a nossa comissão é uma comissão militante. E eu acho que nós fomos bem porque admitimos isso e depois porque nós não ficamos atrás do “sucesso”, “das luzes”, o que eu considero um verdadeiro câncer da política.
A nossa estrutura é mínima, nós não fomos aprovados nem na forma da lei, foi um projeto de resolução que não tem status nem de CPI, é quase uma comissão de estudos, e na Assembleia Legislativa de São Paulo, que é um lugar de direita, é difícil. Então eu acho que nós, e não sou eu, somos nós mesmo, fizemos uma coisa importante. Eu acho que é um balanço extremamente favorável.
Que questões você destacaria como sendo as mais importantes do trabalho da Comissão?
Nossa grande contribuição é que um capítulo que era banido – dos mortos e desaparecidos, que eram tidos como “terroristas” –, será bem tratado. E se nós não fizermos os casos de todos os mortos e desaparecidos brasileiros, a Comissão Nacional não fará. Outra coisa que temos a condição de contribuir mais é na relação dos americanos e dos franceses com a repressão, que era um outro assunto quase que proibido.
Eu me transformei nesse processo, e olha que eu sou um cara velho politicamente falando. Isso me deu dignidade e a possibilidade de conviver tanto com a geração que viveu, quanto com as novas gerações que encararam bem o trabalho.
Outra coisa é que o assunto tomou outra proporção. Eu concordo com uma coisa que o Paulo Vanucchi diz que é que, quando começou a Comissão da Verdade, não havia mais de três mil pessoas no Brasil falando sobre isso, agora somos mais de 30 milhões [pesquisa recente do Datafolha afirma que a maioria da população defende, hoje, a punição aos torturadores, diferente de 2010]. Eu acho que o que é importante é que as novas gerações se empolgaram, assimilaram e assumiram essa bandeira, talvez não da melhor forma, mas eu acho que valeu.
Eu acho que está caindo a ficha da Ditadura em tempo real, que não é só aquela do passado, é essa que dita a ideologia da direita hoje, está viva, os caras continuam mandando. O presidente da Petrobras de 1984, quando aconteceu o incêndio da Vila Socó, em Cubatão, que matou mais de 500 pessoas, e que os dados oficiais dão conta de apenas 93, continua na ativa, organizando o leilão do pré-sal. Igual quando o Paulo Malhães foi depor na Comissão Nacional, e os caras o mataram no outro dia, Ditadura em tempo real.
Eu acho que essa Comissão da Verdade do passado deve servir de espelho para uma comissão do presente, porque as estruturas da Ditadura estão aí. Agora está aparecendo a repressão política, mas a repressão social é livre e maior.
Você acha que a discussão que as comissões trouxeram ajudou o debate político da sociedade de forma geral?
Olha, eu sou um cara do ramo da política, mas eu também estava perdido, porque fica essa despolitização de PT versus PSDB, vira competição: “eu vou fazer 5 km de asfalto” e o outro “eu vou fazer 10”, e aí? Você não muda nada! Vai fazer com que conceito, qual visão? Eu não vou ficar criticando o PT como se eu não fizesse parte, mas essa cultura nós tínhamos perdido. Esse nexo do fim da Ditadura com a redemocratização se perdeu. O conceito de esquerda voltou e voltou bem. Não acho que é impossível que implementem um plano neoliberal superagressivo no próximo período, mas acho que nós estamos vivos.
A Comissão não é, claro, a única responsável por isso, mas acho que ajudou. Eu acho que a rua é muito importante. Um exemplo é o genocídio que está acontecendo contra os palestinos, em Gaza, ninguém podia falar disso, mas a rua entrou em cena, e a presidente foi e falou do massacre, se posicionou. Eu acho que a rua sempre ensina e ensina coisa boa, coisa progressista. Eu acho que o Brasil voltou a ter uma cara de esquerda, pode estar batendo um pouco de cabeça, mas tem um discurso de esquerda no Brasil, e eu acho que a Comissão da Verdade ajudou a colocar uma pimenta nisso.
Por mais polêmico que seja a questão da Copa, apareceu uma realidade impossível de esconder, apareceu o papel do José Maria Marin, da CBF, da Fifa.
Claro que também apareceu uma nova direita, ou melhor, uma direita que ninguém sabia que existia, que estava no armário, mas é um país mais bem definido, rompendo com a hipocrisia de que convivemos todos juntos, torturados e torturadores, eu acho que isso está se dirimindo e eu acho importante isso pro Brasil.
O que eu não me conformo é que isso não vira agenda política no país, repercute na sociedade, principalmente entre as pessoas que não aceitam o atual sistema político, no campo da cultura, da arte, gente que tem uma sensibilidade grande para esse tema, mas não entra na agenda política, no dia a dia dos grandes partidos políticos.
Esse ano eleitoral mexe com nosso trabalho, porque se eu não for eleito, por exemplo, nossa tese será derrotada, vai reforçar a ideia de que, quem trata de Comissão da Verdade, Ditadura, direitos humanos, tem que ir pro gueto, pro limbo, então imagina a responsabilidade.
Existe um grande debate sobre a revisão da Lei da Anistia e a punição dos agentes do Estado responsáveis pelas torturas e assassinatos. Como você analisa essa questão?
A punição está na agenda, a possibilidade existe e, com ela, aparece também a reação, os caras também estão se armando, vindo pra cima. Antes ninguém tocava no assunto, agora a gente diz que tem que ter, eles dizem que não tem.
Eu acho que vamos chegar numa hora no Brasil em que a punição será algo natural, o problema é que o lapso temporal é tão grande que a gente corre o risco de não ter ninguém pra punir. Mas a revisão do período histórico, nisso a gente avança, esse discurso de que a Ditadura foi uma revolução acabou, torturador virou facínora. Há uma politização gradativa, mas é lenta. Como houve 400 anos de tortura dos escravos no país, existe uma permissividade muito grande, mas estamos encarando isso.
Em dezembro, a Comissão Nacional da Verdade apresentará o relatório final de suas atividades. Quais os desafios que estão colocados para a luta por memória, verdade e justiça hoje no Brasil?
Eu acho que a primeira coisa é que temos que influenciar esse relatório, porque ele está em disputa.
Depois eu penso que nós temos que produzir o nosso próprio relatório, com um conteúdo político sólido.
Agora essa luta pela memória, verdade e justiça não é uma luta isolada, essa é uma luta da humanidade, a luta contra a repressão, contra a tortura, contra o extermínio. A tortura é encarada no país como um instrumento normal.
Eu vejo o golpe militar como uma exacerbação da luta de classes, do domínio, do lucro, do uso da força. A Comissão da Verdade tem que servir pra enfrentar a face bárbara do capital, que é o fascismo, o golpe, a repressão, o assassinato, que eles consideram uma coisa normal, como conquista de território e tal.
Esse processo “civilizatório” no Brasil é recente, aconteceu nos últimos 20 anos, mais ou menos, o que, comparado com os 400 anos de escravidão, é muito pouco.
Por que o Congresso Nacional não teve um papel mais destacado na investigação dos crimes da Ditadura Militar?
Por que quem trata desse tema é visto como radical ou problemático, e os que trataram foi de forma precária. Acho que o Congresso precisa de mais gente de esquerda, porque essa é uma pauta de esquerda, e no Brasil esse conceito de esquerda no âmbito parlamentar desapareceu. Hoje, dentro do PT, por exemplo, quem pratica isso tem uma enorme dificuldade de sobrevivência.
Mas eu estou animado. Não acho que todo mundo que está indo pra rua é marxista, ou tem noção de luta de classes, mas acho que está sendo reivindicado que tem que ter pensamentos de esquerda, visão de esquerda, arte, música de esquerda, nunca se discutiu tanto o papel de direita, golpista, dos meios de comunicação, por exemplo.
Eu tenho pensado em Cuba, porque um país que exporta médicos, exporta dignidade. Eles construíram uma sociedade evoluída, socialista. Você vê um país como o nosso, que tem universidades fantásticas, e que grande parte da população não tem acesso a médico nenhum.
O problema que eu acho que tem no Brasil é que ele se mirou num processo civilizatório sem consciência política, sem consciência de classe. As pessoas dizem que é bom que no Brasil, nos últimos anos, milhões de pessoas saíram da miserabilidade, mas eu pergunto: a consciência política, a mobilização, tem o mesmo nível dessa ascensão?
Todo mundo pode ser recrutado pra um outro projeto político sem consciência.
Com consciência a pessoa não precisa concordar com tudo, mas tem noção do monstro da estrutura de classes, porque o desenvolvimento econômico sozinho não garante nada, o que garante é a consciência política.
Vivian Mendes, São Paulo
*AVerdade
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