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Ser de esquerda é não aceitar as injustiças, sejam elas quais forem, como um fato natural. É não calar diante da violação dos Direitos Humanos, em qualquer país e em qualquer momento. É questionar determinadas leis – porque a Justiça, muitas vezes, não anda de mãos dadas com o Direito; e entre um e outro, o homem de esquerda escolhe a justiça.
É ser guiado por uma permanente capacidade de se estarrecer e, com ela e por causa dela, não se acomodar, não se vender, não se deixar manipular ou seduzir pelo poder. É escolher o caminho mais justo, mesmo que seja cansativo demais, arriscado demais, distante demais. O homem de esquerda acredita que a vida pode e deve ser melhor e é isso, no fundo, que o move. Porque o homem de esquerda sabe que não é culpa do destino ou da vontade divina que um bilhão de pessoas, segundo dados da ONU, passe fome no mundo.
É caminhar junto aos marginalizados; é repartir aquilo que se tem e até mesmo aquilo que falta, sem sacrifício e sem estardalhaço. À direita, cabe a tarefa de dar o que sobra, em forma de esmola e de assistencialismo, com barulho e holofotes. Ser de esquerda é reconhecer no outro sua própria humanidade, principalmente quando o outro for completamente diferente. Os homens e mulheres de esquerda sabem que o destino de uma pessoa não deveria ser determinado por causa da raça, do gênero ou da religião.
Ser de esquerda é não se deixar seduzir pelo consumismo; é entender, como ensinou Milton Santos, que a felicidade está ancorada nos bens infinitos. É mergulhar, com alegria e inteireza, na luta por um mundo melhor e neste mergulho não se deixar contaminar pela arrogância, pelo rancor ou pela vaidade. É manter a coerência entre a palavra e a ação. É alimentar as dúvidas, para não cair no poço escuro das respostas fáceis, das certezas cômodas e caducas. Porém, o homem de esquerda não faz da dúvida o álibi para a indiferença. Ele nunca é indiferente. Ser de esquerda é saber que este “mundo melhor e possível” não se fará de punhos cerrados nem com gritos de guerra, mas será construído no dia-a-dia, nas pequenas e grandes obras e que, muitas vezes, é preciso comprar batalhas longas e desgastantes. Ser de esquerda é, na batalha, não usar os métodos do inimigo.
Fernando Evangelista

terça-feira, agosto 19, 2014

Duas batalhas cruciais eclodiram em Ferguson, Missouri, essa semana.

EUA: A economia do militarismo policial

 [*] Sarah StillmanThe New Yorker
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu

Militarização das Polícias Civis
Duas batalhas cruciais eclodiram em Ferguson, Missouri, essa semana. A primeira começou com a onda de tristeza e fúria popular, depois que um jovem de 18 anos, Michael Brown, foi morto por um policial em Canfield Court, no subúrbio de St. Louis, às 14h15, sábado passado (9/8/2014). Depois, começou a ação dos policiais nas primeiras rodadas de manifestações públicas. Os policiais saíram às ruas com uma frota de blindados, rifles de ataque, bombas de gás lacrimogêneo, o que reintroduziu na consciência coletiva a expressão “militarização da polícia civil” (como já se devia esperar; quem duvide, deve ler ou reler The Rise of the Warrior Cop [A ascensão do policial guerreiro], de Radley Balko.

Num momento, vê-se um jovem com uma marca de tiro de bala de borracha entre os olhos; momento seguinte, três policiais com armas enormes atiram contra outro homem negro, que tem as mãos erguidas.

Jelani Cobb
Na 5ª-feira (14/8/2014), Jelani Cobb publicou  potente relato  do que se via nas calçadas e lares, em Ferguson. Cobb perguntava sobre

(...) as questões econômicas e de aplicação da lei interconectadas naqueles protestos,  entre as quais, por exemplo, as custas processuais e multas que muita gente em Ferguson tem de pagar, e que com frequência começam por infrações menores até que se convertem “elas mesmas, em violações sempre crescentes.

Temos gente aqui que é procurada por causa de multas de trânsito, obrigada a viver praticamente como prisioneiro dentro da própria casaNão podem sair de casa, porque serão presos por causa daquelas dívidas. Em alguns casos, as pessoas até tinham empregos, mas decidiram que o risco de serem presos não compensava a tentativa de sair de casa para o trabalho, disse a Cobb, Malik Ahmed, presidente de uma organização chamada “Better Family Life” [Melhor Vida Familiar].

A crise das dívidas com a justiça criminal é um dos muitos afluentes que alimentaram o rio caudaloso da fúria profunda que tomou conta de Ferguson. Mas é afluente importante – tanto porque é problema que se vê em todos os cantos da região, como, também, porque é problema que facilmente desaparece de cena ante o espetáculo-gigante dos tanques e canhões giratórios. No início desse ano, passei seis meses acompanhando o crescimento do valor de custas e multas nos tribunais nos EUA, que acontece pela proliferação de taxas e multas aplicadas a quaisquer pequenas infrações – e que é parte de um movimento crescente na direção do que tenho chamado de “indústria da justiça custeada pelo infrator”. [1] Empresas privadas de cobrança são contratadas, em alguns estados, para cobrar multas não pagas. (Na maioria dos casos, é tática usada contra os mais pobres, que tenham multas de tráfego não quitadas). As reportagens que estão chegando de Ferguson levantam questões sobre como amilitarização da polícia e a coerção econômica pelos órgãos da justiça, alimentaram fúria que, hoje, já é difícil de controlar.

O Missouri foi dos primeiros estados a permitir a ação de empresas privadas de cobrança, no final dos anos 1980s, e desde então seguiu a tendência nacional de permitir que custas processuais e multas cresçam muito rapidamente. Agora, em grande parte dos EUA, o que começa como simples multa por excesso de velocidade pode, se você não conseguir pagar, converter-se numa dívida impagável, que não para de crescer, aumentada, se você não comparecer ao tribunal, por taxas de busca e prisão. (Não raras vezes, o não pagamento acontece não só por falta de meios mas também porque o devedor já não vive no endereço para onde a notificação é enviada, e não a recebe).

Alec Karakatsanis
O que mais se vê nos EUA é gente empobrecida, rotineiramente mandada para a cadeia por custas, impostos, taxas ou multas que não conseguempagar – disse Alec Karakatsanis, cofundador de “Equal Justice Under Law”, organização sem finalidades lucrativas de defesa de direitos civis, que começou a denunciar essa prática em cortes municipais.

São multas que crescem como bola de neve quando as multas não pagas são entregues, para cobrança, a empresas privadas, porque essas empresas acrescentam suas próprias taxas “de supervisão”. O que acontece em muitos bairros pobres dos EUA, quando alguém atrasa seus pagamentos? Muito frequentemente, a polícia bate à porta e leva o devedor para a prisão.

Daí em diante, a bola de neve só cresce.

Ser preso tem impacto muito grave na vida de pessoas que já estão à beira da pobreza. Já perderam o emprego, já perderam aguarda dos filhos, estão atrasados no pagamento da hipoteca da própria casa. – diz Sara Zampieren, do Southern Poverty Law Center.

Tudo isso somado, o efeito é “devastador”. Enquanto permanecem na prisão, as “multas de usuários” só se acumulam. De tal modo que quando você sai da cadeia, nem por isso está livre. Recente pesquisa feita pela National Public Radio mostrou que pelo menos em 43 estados dos EUA os réus podem ser cobrados pelo trabalho do Defensor Público – um serviço ao qual todos os norte-americanos têm direito garantido pela Constituição; e em pelo menos 41 estados nos EUA, os prisioneiros podem ser cobrados por “casa e comida” durante o tempo que permaneçam em detenção e prisão.

Agora, as polícias militarizadas dos EUA têm ferramentas muito visíveis à disposição delas; várias dessas ferramentas estiveram nas manchetes essa semana: metralhadoras, óculos para visão noturna, veículos blindados e, ao que parece, quantidade ilimitada de munição.

Mas essa arma econômica da militarização policial é quase sempre muito menos visível, e a “justiça custeada pelo infrator” é parte desse subarsenal. Os medos dos quais Cobb e Ahmed falam – dívidas cobradas por tribunais e polícias, e gente que, por causa dessas dívidas tem medo de sair de dentro de casa – são ingredientes da força que se viu ativada nos protestos e tumultos das ruas do Missouri.

PRISÃO - por Casey Serin
O medo dos devedores altera toda a vida diária – será que conseguem ir à padaria ou levar uma criança à escola, sem serem presos?

Esse medo impede as pessoas que tenham problemas, dechamar a polícia, e tira da polícia a capacidade para fazer o que se espera que policiais façam – ajudar as pessoas nas comunidades a responder a emergências – disse Karakatsanis.

É situação que corrói a confiança das comunidades e mata qualquer possibilidade de cooperação entre os agentes da lei e a própria comunidade.

No Alabama, “Equal Justice Under Law” impetrou ação conjunta contra a cidade de Montgomery, em nome de pequenos infratores que foram encarcerados por dívida; a ação está suspensa, e a cidade refutou as acusações, mas, diz Karakatsanis, pelo menos 35 pessoas foram libertadas da prisão, onde estavam por dívidas, desde o início da ação. (Um juiz já emitiu sentença preliminar a favor dos devedores). Mais frequentemente porém, os devedores que levam o problema aos tribunais não obtêm qualquer tipo de resultado favorável. Muitas vezes, essas dificuldades só fazem aumentar o ressentimento dos cidadãos e a desconfiança geral em relação a qualquer autoridade “pública”.

Há muitos anos, quando estava integrada às tropas em Kandahar, Afeganistão, passei muitas horas com uma unidade cuja tarefa era aplicar um conjunto de treinamentos chamados “Commander’s Guide to Money as a Weapons System” [Diretivas do Comando sobre Dinheiro como Sistema de Armamento]. Esse treinamento instrui os soldados a usar ferramentas econômicas para promover objetivos militares, e havia um alerta impresso nas páginas iniciais de um dos manuais que eles usavam:

Soldados combatentes e seus comandos devem cuidar para que suas ações sejam defensáveis ante Comissões de Inquérito do Congresso e não gerem problemas para o Departamento de Defesa.

EUA - mais prisões que escolas
Quanto a isso, o militarismo “real” tem pelo menos uma vantagem sobre o militarismo policial doméstico, pelo menos no plano doutrinal – entre militares “reais” o princípio é investimento genuíno nas comunidades, cuja confiança os militares esperam conquistar, para influenciar. Não surpreende que seja “teoria” sempre complicada de aplicar (que muito frequentemente falhou horrivelmente), mas, pelo menos em teoria, é de longe muito melhor que policiais ou militares abrindo caminho à bala em áreas civis. Nos EUA, dentro de casa, as equipes SWAT continuam a detonar as proverbiais linhas de força.

É sinal de esperança que o novo comandante de polícia de Ferguson, Capitão Ron Johnson, da Patrulha Rodoviária Estadual do Missouri (criado em Ferguson), pareça ter imediatamente entendido essa questão, ao assumir o cargo na 5ª-feira (14/8/2014).

Todos queremos justiça. Todos queremos respostas – disse ele à Associated Press − é pessoalmente importante para mim conseguirmos romper esse ciclo de violência.

Ao considerar a militarização da polícia, o lado econômico do fenômeno deve também ser considerado. A conexão pode não ser óbvia para quem jamais teve cortado o fornecimento de gás ou de energia elétrica da própria casa. Mas essas forças operam juntas – o gás cortado e as multas não pagas; o armamento e as intimações para “pagamento imediato” – o que agride lista imensa de direitos fundamentais que parecem, como em Ferguson e em outros locais, já terem virado fumaça.


[*] Sarah Stillman é jornalista da equipe da revista The New Yorker e professora visitante no Arthur L. Carter Journalism Institute da New York University. Escreve sobre os mais diversos temas tais como: confisco civil sobre obras irregulares, uso de drones por cartéis de drogas do México, direitos trabalhistas para trabalhadores de Bangladesh.
Recebeu o National Magazine Award for Public Interest por suas reportagens no Iraque e no Afeganistão sobre abusos de trabalho e tráfico de seres humanos em bases militares dos Estados Unidos.
Recebeu também os prêmios (awards): Michael Kelly, o Overseas Press Club’s, o Laurie Dine para Direitos Humanos, Direitos de Informação e o Hillman Prize  da Magazine Journalism. Sua repotagem sobre o alto risco do uso de jovens como informantes confidenciais na guerra contra as drogas recebeu o George Polk Award e o Molly National Journalism Prize.
Antes de ingressar na The New Yorker, Stillman escreveu sobre as guerras dos EUA no exterior e os desafios enfrentados pelos soldados na volta para casa no Washington Post, The Nation, New RepublicSlate e The Atlantic. Seus trabalhos estão incluídos no The Best American Magazine Writing 2012.


Nota dos tradutores
[1] 24/6/2014, The Leonard Lopate Show (rádio) em Profiting from Offenders When They Get Out of Jail (excerto traduzido) a seguir:

Alguns comparam o sistema de hoje à “justiça custeada pelo infrator” do tempo da prisão por dívidas do século XIX. Falei com vários advogados que disseram que se o contexto fosse um pouco diferente – se fossem empresas de cartões de crédito que estivessem perseguindo os devedores – com certeza estaríamos num quadro de prisão por dívidas e absolutamente inconstitucional. Mas o que temos é que são os próprios tribunais que obram para extrair cada vez mais dinheiro dos condenados. Assim, a prática conseguiu prosperar.

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