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Ser de esquerda é não aceitar as injustiças, sejam elas quais forem, como um fato natural. É não calar diante da violação dos Direitos Humanos, em qualquer país e em qualquer momento. É questionar determinadas leis – porque a Justiça, muitas vezes, não anda de mãos dadas com o Direito; e entre um e outro, o homem de esquerda escolhe a justiça.
É ser guiado por uma permanente capacidade de se estarrecer e, com ela e por causa dela, não se acomodar, não se vender, não se deixar manipular ou seduzir pelo poder. É escolher o caminho mais justo, mesmo que seja cansativo demais, arriscado demais, distante demais. O homem de esquerda acredita que a vida pode e deve ser melhor e é isso, no fundo, que o move. Porque o homem de esquerda sabe que não é culpa do destino ou da vontade divina que um bilhão de pessoas, segundo dados da ONU, passe fome no mundo.
É caminhar junto aos marginalizados; é repartir aquilo que se tem e até mesmo aquilo que falta, sem sacrifício e sem estardalhaço. À direita, cabe a tarefa de dar o que sobra, em forma de esmola e de assistencialismo, com barulho e holofotes. Ser de esquerda é reconhecer no outro sua própria humanidade, principalmente quando o outro for completamente diferente. Os homens e mulheres de esquerda sabem que o destino de uma pessoa não deveria ser determinado por causa da raça, do gênero ou da religião.
Ser de esquerda é não se deixar seduzir pelo consumismo; é entender, como ensinou Milton Santos, que a felicidade está ancorada nos bens infinitos. É mergulhar, com alegria e inteireza, na luta por um mundo melhor e neste mergulho não se deixar contaminar pela arrogância, pelo rancor ou pela vaidade. É manter a coerência entre a palavra e a ação. É alimentar as dúvidas, para não cair no poço escuro das respostas fáceis, das certezas cômodas e caducas. Porém, o homem de esquerda não faz da dúvida o álibi para a indiferença. Ele nunca é indiferente. Ser de esquerda é saber que este “mundo melhor e possível” não se fará de punhos cerrados nem com gritos de guerra, mas será construído no dia-a-dia, nas pequenas e grandes obras e que, muitas vezes, é preciso comprar batalhas longas e desgastantes. Ser de esquerda é, na batalha, não usar os métodos do inimigo.
Fernando Evangelista

sexta-feira, setembro 13, 2013

Morre, aos 63, Luiz Gushiken

247 - Acaba de falecer, em São Paulo, o ex-ministro Luiz Gushiken (leia aqui perfil escrito por Mônica Bergamo). "Gushiken, você vive eternamente e permanentemente em nossos corações. Seu exemplo de vida, coragem e luta estará sempre presente, principalmente nesses momentos difíceis em que a gente vive. Quero abraçar seus familiares, seus amigos, seus companheiros e companheiras, e gritar: Gushiken vive!", postou José Genoino, em sua página no Facebook.
Leia ainda, abaixo, texto de Paulo Nogueira, diretor do Diário do Centro do Mundo, sobre uma das principais lideranças do PT, escrito poucos dias antes de sua morte:
Gushiken, a mídia e a justiça: uma parábola do país que temos
O que os anos recentes de um dos grandes líderes sindicais das décadas de 1970 e 1980 contam sobre o Brasil de hoje.
Montaigne escreveu que o tamanho do homem se mede na atitude diante da morte, e citava como exemplos Sócrates e Sêneca.
Os dois morreram serenamente consolando os que os amavam. Sócrates foi obrigado a tomar cicuta por um tribunal de Atenas e Sêneca a cortar os pulsos por ordem de Nero.
Meu pai jamais se queixou em sua agonia, e penso sempre em Montaigne quando me lembro de sua coragem diante da morte, confortando-nos a todos.
Me veio isso ontem à mente ao ler no twitter a notícia de Luís Gushiken morrera aos 63 anos. Depois desmentiram, mas ficou claro que ele vive seus dias finais num quarto do Sírio Libanês, com um câncer inexpugnável.
Soube que ele mesmo se ministra a morfina para enfrentar a dor nos momentos em que ela é insuportável, e para evitar assim a sedação.
Li também que ele recebe, serenamente, amigos com os quais fala do passado e discute o presente.
A força na doença demonstrada por Gushiken é a maior demonstração de grandeza moral segundo a lógica de Montaigne, que compartilho.
Não o conheci pessoalmente, mas é um nome forte em minha memória jornalística. Nos anos 1980, bancário do Banespa, ele foi um dos sindicalistas que fizeram história no Brasil ao lado de personagens como Lula, no ABC.
Eu trabalhava na Veja, então, e como jovem repórter acompanhei a luta épica dos trabalhadores para recuperar parte do muito que lhes havia sido subtraído na ditadura militar.
Os militares haviam simplesmente proibido e reprimido brutalmente greves, a maior arma dos trabalhadores na defesa de seus salários e de sua dignidade. Dessa proibição resultou um Brasil abjetamente iníquo, o paraíso do 1%.
Fui, da Veja, para o jornalismo de negócios, na Exame, e me afastei do mundo político em que habitava Gushiken.
Ele acabaria fundando o PT, e teria papel proeminente no primeiro governo Lula, depois de coordenar sua campanha vitoriosa.
Acabaria se afastando do governo no fragor das denúncias do Mensalão. E é exatamente esta parte da vida de Gushiken que me parece particularmente instrutiva para entender o Brasil moderno.
Gushiken foi arrolado entre os 40 incriminados do Mensalão. O número, sabe-se hoje, foi cuidadosamente montado para que se pudesse fazer alusões a Ali Babá e os 40 ladrões.
Gushiken foi submetido a todas as acusações possíveis, e os que o conhecem dizem o quanto isso contribuiu para o câncer que o está matando.
Mas logo se comprovou que não havia nada que pudesse comprometê-lo, por mais que desejassem. Ainda assim, Gushiken só foi declarado inocente formalmente pelo STF depois de muito tempo, bem mais que o justo e o necessário, segundo especialistas.
Num site da comunidade japonesa, li um artigo de um jornalista que dizia, como um samurai, que Gushiken enfim tivera sua “dignidade devolvida”.
Acho bonito, e isso evoca a alma japonesa e sua relação peculiar com a decência, mas discordo em que alguém possa roubar a dignidade de um homem digno com qualquer tipo de patifaria, como ocorreu. A indignidade estava em quem o acusou falsamente e em quem prolongou o sofrimento jurídico e pessoal de Gushiken.
O episódio conta muito sobre a justiça brasileira, e sobre, especificamente, o processo do Mensalão. A história há de permitir um julgamento mais calmo, e tenho para mim que o papel do Supremo será visto como uma página de ignomínia.
Gushiken não foi atropelado apenas pela justiça. Veio, com ela, a mídia e, com a mídia, o massacre que conhecemos.
Um caso é exemplar.
Uma nota da seção Radar, da Veja, acusou Gushiken de ter pagado com dinheiro público um jantar com um interlocutor que saiu por mais de 3 000 reais. A nota descia a detalhes nos vinhos e nos charutos “cubanos”.
Gushiken processou a revista. Ele forneceu evidências – a começar pela nota e por testemunho de um garçom – de que a conta era na verdade um décimo da alegada, que o vinho fora levado de casa, e os charutos eram brasileiros.
Mais uma vez, uma demora enorme na justiça, graças a chicanas jurídicas da Abril.
Em junho passado, Gushiken enfim venceu a causa. A justiça condenou a Veja a pagar uma indenização de 20  mil reais.
O tamanho miserável da indenização se vê pelo seguinte: é uma fração de uma página de publicidade da Veja. Multas dessa dimensão não coíbem, antes estimulam, leviandades de empresas jornalísticas que faturam na casa dos bilhões.
Não vou entrar no mérito dos leitores enganado, que construíram um perfil imaginário de Gushiken com base em informações como aquela do Radar. Também eles deveriam ser indenizados, a rigor.
Gushiken enfrentou, na vida, a ditadura, as lutas sindicais por seus pares modestos, a justiça e a mídia predadora.
Combateu — ainda combate — o bom combate.
*Brasil247

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