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Ser de esquerda é não aceitar as injustiças, sejam elas quais forem, como um fato natural. É não calar diante da violação dos Direitos Humanos, em qualquer país e em qualquer momento. É questionar determinadas leis – porque a Justiça, muitas vezes, não anda de mãos dadas com o Direito; e entre um e outro, o homem de esquerda escolhe a justiça.
É ser guiado por uma permanente capacidade de se estarrecer e, com ela e por causa dela, não se acomodar, não se vender, não se deixar manipular ou seduzir pelo poder. É escolher o caminho mais justo, mesmo que seja cansativo demais, arriscado demais, distante demais. O homem de esquerda acredita que a vida pode e deve ser melhor e é isso, no fundo, que o move. Porque o homem de esquerda sabe que não é culpa do destino ou da vontade divina que um bilhão de pessoas, segundo dados da ONU, passe fome no mundo.
É caminhar junto aos marginalizados; é repartir aquilo que se tem e até mesmo aquilo que falta, sem sacrifício e sem estardalhaço. À direita, cabe a tarefa de dar o que sobra, em forma de esmola e de assistencialismo, com barulho e holofotes. Ser de esquerda é reconhecer no outro sua própria humanidade, principalmente quando o outro for completamente diferente. Os homens e mulheres de esquerda sabem que o destino de uma pessoa não deveria ser determinado por causa da raça, do gênero ou da religião.
Ser de esquerda é não se deixar seduzir pelo consumismo; é entender, como ensinou Milton Santos, que a felicidade está ancorada nos bens infinitos. É mergulhar, com alegria e inteireza, na luta por um mundo melhor e neste mergulho não se deixar contaminar pela arrogância, pelo rancor ou pela vaidade. É manter a coerência entre a palavra e a ação. É alimentar as dúvidas, para não cair no poço escuro das respostas fáceis, das certezas cômodas e caducas. Porém, o homem de esquerda não faz da dúvida o álibi para a indiferença. Ele nunca é indiferente. Ser de esquerda é saber que este “mundo melhor e possível” não se fará de punhos cerrados nem com gritos de guerra, mas será construído no dia-a-dia, nas pequenas e grandes obras e que, muitas vezes, é preciso comprar batalhas longas e desgastantes. Ser de esquerda é, na batalha, não usar os métodos do inimigo.
Fernando Evangelista

sexta-feira, setembro 27, 2013

Brizola, o maragato libertário


Por Davis Sena Filho 


No dia 21 de junho de 2004, Leonel de Moura Brizola faleceu aos 82 anos. Governador do Rio Grande do Sul e duas vezes do Rio de Janeiro, Brizola foi um dos políticos mais emblemáticos e importantes do Brasil no século XX, e caso único de mandatário eleito para governar em dois estados. Conhecido mundialmente, Brizola, além de ser o responsável maior pela Cadeia da Legalidade que garantiu a posse do presidente João Goulart, em 1961, impediu um golpe militar iminente, que foi “adiado” para o dia 1º de abril de 1964, data considerada como o Dia da Mentira ou do Mentiroso.

Em junho de 2014 completar-se-ão dez anos do desaparecimento do grande político trabalhista gaúcho e brasileiro, presidente de honra da Internacional Socialista, e que, em 1989, quase conseguiu levar o pequeno PDT ao segundo turno das eleições presidenciais, disputa que ficou a cargo do PT, de Lula, contra o candidato da direita, o hoje senador Fernando Collor de Mello (PTB/AL). Brizola se aliou ao candidato petista, transferiu seus votos do Rio de Janeiro e do Rio Grande do Sul quase que integralmente, bem como seus eleitores de outros estados votaram também em massa em Luiz Inácio Lula da Silva.

Contudo, a união entre Brizola e Lula não foi o suficiente para derrotar Collor, que recebeu a adesão de diversos partidos, grandes e pequenos, além de ter o apoio da classe média coxinha e do empresariado urbano e rural, principalmente dos magnatas bilionários da imprensa de negócios privados, notadamente a Globo, que apoiou o candidato da direita durante toda a campanha, bem como editou o último debate há apenas dois dias das eleições quando mostrou, no Jornal Nacional, os melhores momentos de Collor e os piores de Lula.

O episódio foi um verdadeiro escândalo e negado pelas Organizações(?) Globo até há poucos anos, mas reconhecido, posteriormente, pelos profissionais que controlavam na época o jornalismo da televisão de Roberto Marinho, a exemplo de Armando Nogueira e Alice Maria, além do Boni, vice-presidente de operações da emissora, que já deram declarações nesse sentido sobre a edição que favoreceu o candidato dos conservadores e da Globo. O próprio Roberto Marinho anos depois afirmou que interferiu no processo de edição do debate veiculado no Jornal Nacional.

Um crime cometido pela imprensa corporativa, cúmplice efetiva da ditadura, que manipulou e distorceu a informação, a fim de influenciar o eleitorado brasileiro, em um tempo que o Brasil estava a realizar as primeiras eleições diretas para presidente depois de longos 29 anos. Desde o ano de 1960, quando Jânio Quadros foi eleito, os brasileiros ficaram sem o direito constitucional de votar para presidente da República, assim como a maioria das lideranças políticas socialistas, trabalhistas e até mesmo liberais, mas legalistas foi exilada e, consequentemente, afastada do processo político controlado pelos novos donos do poder: a direita e a extrema direita brasileira.

Anteriormente, no ano de 1982, Leonel Brizola foi vítima também de uma conspiração entre a Globo, o SNI e a Polícia Federal do governo do presidente general João Figueiredo. O líder trabalhista quase perdeu as eleições para governador do Rio de Janeiro, no famoso escândalo da Proconsult, cuja intenção era manipular os votos e, por conseguinte, fazer com que o candidato do PDS, Moreira Franco, fosse o vencedor e assumisse o Palácio da Guanabara.

Mais uma mácula na história da Rede Globo, uma empresa privada, de concessão pública, a fazer política e, mais do que isto, a cometer crimes eleitorais com a intenção de interferir no processo eleitoral brasileiro, para que seus interesses econômicos e políticos fossem concretizados. Leonel Brizola percebeu a armadilha e convocou a imprensa para denunciar o jogo sujo perpetrado por órgãos de segurança e pelos jornalistas empregados do magnata bilionário Roberto Marinho.

O escândalo da Proconsult contra a eleição de Brizola pelo povo do Rio de Janeiro e a edição mequetrefe e manipulada do Jornal Nacional que prejudicou Lula há apenas dois dias das eleições presidenciais são os maiores exemplos da ousadia e do atrevimento de empresários autoritários inconformados com a redemocratização do Brasil e que se assemelha ao inconformismo das comunidades de informação e repressão, que, evidentemente, portadores de outros instrumentos de coerção, passaram a boicotar e a sabotar com violência a abertura política, bem como as primeiras eleições diretas da década de 1980.

O trabalhista e maragato Leonel Brizola foi lançado na vida pública pelo estadista Getúlio Vargas, e teve uma carreira política longa, de mais de cinquenta anos. Brizola lutou pelas causas populares e pagou um preço muito alto, pois perseguido pelo establishment, bem como ofendido em sua honra e dignidade, além sua pessoa ser, sistematicamente, desqualificada pelos inimigos partidários e principalmente pelos sabujos da imprensa pagos pelos seus patrões, os barões da imprensa, para desconstruí-lo e, por sua vez, impedi-lo, entre outras coisas, de ser presidente da República.

Brizola foi um titã vocacionado para a luta em prol da liberdade e do desenvolvimento social do povo brasileiro. Político polêmico e nacionalista, considero que o distanciamento histórico para uma análise precisa de sua vida pessoal e política é ainda muito curto em relação ao tempo. A história tem de ser escrita e lida de forma fria e isenta, mas uma coisa se pode dizer do Velho Briza: era um homem muito corajoso, coerente e de valores perenes.

A coragem e a verve ideológica de Leonel Brizola provêm dos rincões do Rio Grande do Sul, que foram banhados de sangue ao longo de sua história, por causa de suas inúmeras revoluções e conflitos armados entre suas elites e facções políticas. Durante a Revolução Federalista, em 1923, seu pai, José de Oliveira Brizola, morreu lutando nas tropas lideradas por Joaquim Francisco de Assis Brasil, que combatiam os republicanos, cujo chefe era o presidente do Rio Grande do Sul, Antônio Augusto Borges de Medeiros.

Os republicanos, chamados de chimangos ou pica-paus, usavam lenços brancos no pescoço. Os federalistas denominados maragatos, usavam o lenço vermelho, que Brizola usou como símbolo de sua luta política por toda sua vida. O legado de seu pai, humilde lavrador, foi sua morte em defesa de suas crenças políticas e sociais. Brizola, de orlgem pobre, perdeu o pai com um ano de idade e recebeu de herança o lenço vermelho, em referência aos maragatos gaúchos ao tempo que uma homenagem ao seu pai.

Foi nesse ambiente ideológico e de guerra entre os gaúchos que Leonel Brizola se fez político. Ele foi o último personagem dos embates riograndenses, que duraram cerca de duzentos anos. O mandatário é considerado o herdeiro do trabalhismo de Getúlio Vargas e de João Goulart, única doutrina política e social do Brasil que, realmente e rigorosamente, se propôs a efetivar as reformas de base, no que tange à industrialização, ao trabalho e à soberania do Brasil, a partir da Revolução de 1930. Até hoje o povo brasileiro é beneficiado socialmente e economicamente pelo legado dos trabalhistas, e por isso reconhece o valor desses homens de alma popular e verve guerreira.

O nacionalismo de esquerda de Leonel Brizola, chamado equivocadamente e cinicamente de populismo pela direita partidária, com a cumplicidade da imprensa burguesa, a fim de desqualificar as ideias do grande político, desagradou às elites brasileiras. A partir de 1964, com a assunção dos militares ao poder, por meio de golpe de estado, o perseguiram cruelmente, calando-o, ameaçando-o de morte e exilando-o por 15 longos anos. Investigaram sua vida, incessantemente, e não acharam sequer uma mácula que manchasse seu nome. Chamaram-no de louco, radical, insano e insensato, e, mesmo com as interpéries e os obstáculos, o gaúcho de Carazinho continuou a marchar no caminho de sua vida e de seu destino.
  
Humilharam sua mulher, seus amigos, sua família, seus correligionários e proibiram que seu nome por 15 anos saísse, sequer, nas publicações impressas, nas rádios e nas televisões brasileiras. Era como se Leonel Brizola nunca tivesse um dia existido. Era como se Brizola fosse um ser invisível. A minha geração somente tomou conhecimento da existência de Brizola em 1977, quando começou a recrudescer a luta pela Anistia, que, enfim, foi concedida em 1979, por meio de muita pressão da sociedade organizada.

Vale lembrar ainda aos que têm amnésia que a distensão política no Brasil e na América Latina aconteceu também por causa do presidente dos Estados Unidos, o democrata Jimmy Carter, que pressionou pelo estabelecimento da política de direitos humanos no mundo, além de efetivar a distensão política na América Latina. Carter cobrou do presidente general Ernesto Geisel, por exemplo, o fim do regime de força, o que ocorreu no início da década de 1980.

O presidente norte-americano, ao que me parece, nunca foi estudado a altura pelos nossos historiadores e muito menos é personagem da imprensa associada à ditadura no que diz respeito ao mandatário ter sido fundamental para que houvesse abertura política no Brasil, além da forte pressão interna liderada pelo MDB de Ulysses Guimarães e de setores da sociedade organizada exemplificados na OAB, na CNBB, na ABI, nas universidades e nos principais sindicatos de trabalhadores do ABCD paulista. 

Leonel Brizola lutou bravamente pelos direitos civis do povo, da legalidade constitucional e institucional, bem como se sacrificou pela democracia. Foi combatido, inapelavelmente, e combateu sem pedir arrego, porque como todo gaúcho de caráter e coragem é bom de peleia, o que o levou a nunca desistir de acreditar em um Brasil solidário, justo e democrático. Pagou um preço alto por sua determinação de enfrentar o status quo estabelecido pelas elites. Morreu sem ver o Brasil como em seus sonhos, ou seja, um País para os brasileiros e também para os estrangeiros, que vieram para as nossas terras viver e oferecer suas mãos para trabalhar.

O líder trabalhista acreditava na educação. Somente por intermédio da educação nós sabemos que o povo se torna digno, livre e emancipado. Um povo educado e informado tem força para fiscalizar os maus governos e reivindicar seus direitos. Com a crise econômica e política que o mundo vive atualmente percebemos, então, como o gaúcho Leonel Brizola faz falta. Quando vivo foi desprezado pelas classes dominantes e agora, morto, saberemos justificar, dignificar e honrar seu legado e sua memória. Brizola é um dos líderes da resistência do povo brasileiro, e homens de seu caráter são imprescindíveis para a formação cívica e cultural de uma Nação única e por isto especial como o é a brasileira. Brizola é o maragato libertário. É isso aí.
*Ajusticeiradeesquerda

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