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Ser de esquerda é não aceitar as injustiças, sejam elas quais forem, como um fato natural. É não calar diante da violação dos Direitos Humanos, em qualquer país e em qualquer momento. É questionar determinadas leis – porque a Justiça, muitas vezes, não anda de mãos dadas com o Direito; e entre um e outro, o homem de esquerda escolhe a justiça.
É ser guiado por uma permanente capacidade de se estarrecer e, com ela e por causa dela, não se acomodar, não se vender, não se deixar manipular ou seduzir pelo poder. É escolher o caminho mais justo, mesmo que seja cansativo demais, arriscado demais, distante demais. O homem de esquerda acredita que a vida pode e deve ser melhor e é isso, no fundo, que o move. Porque o homem de esquerda sabe que não é culpa do destino ou da vontade divina que um bilhão de pessoas, segundo dados da ONU, passe fome no mundo.
É caminhar junto aos marginalizados; é repartir aquilo que se tem e até mesmo aquilo que falta, sem sacrifício e sem estardalhaço. À direita, cabe a tarefa de dar o que sobra, em forma de esmola e de assistencialismo, com barulho e holofotes. Ser de esquerda é reconhecer no outro sua própria humanidade, principalmente quando o outro for completamente diferente. Os homens e mulheres de esquerda sabem que o destino de uma pessoa não deveria ser determinado por causa da raça, do gênero ou da religião.
Ser de esquerda é não se deixar seduzir pelo consumismo; é entender, como ensinou Milton Santos, que a felicidade está ancorada nos bens infinitos. É mergulhar, com alegria e inteireza, na luta por um mundo melhor e neste mergulho não se deixar contaminar pela arrogância, pelo rancor ou pela vaidade. É manter a coerência entre a palavra e a ação. É alimentar as dúvidas, para não cair no poço escuro das respostas fáceis, das certezas cômodas e caducas. Porém, o homem de esquerda não faz da dúvida o álibi para a indiferença. Ele nunca é indiferente. Ser de esquerda é saber que este “mundo melhor e possível” não se fará de punhos cerrados nem com gritos de guerra, mas será construído no dia-a-dia, nas pequenas e grandes obras e que, muitas vezes, é preciso comprar batalhas longas e desgastantes. Ser de esquerda é, na batalha, não usar os métodos do inimigo.
Fernando Evangelista

quinta-feira, setembro 19, 2013

O cerco covarde ao governo da Cristina



O governo de Nestor Kirchner herdou um país desfeito da ditadura militar e dos governos de Menem e De la Rua. Nunca na sua história o país havia tido um retrocesso tão brutal em pouco tempo como o que teve desde o golpe militar até a posse de Nestor. Eric Hobsbawn catalogava a Rússia depois do fim da URSS, e a Argentina desde a instalação da ditadura militar, como as maiores regressões – de natureza civilizatória – do nosso tempo.

Os governos dos Kirchner operaram sobre essa terra arrasada e tiveram, antes de tudo, o grande mérito de levantar uma economia falida e um país quebrado, econômica e animicamente. Por isso mesmo, setores com ódios históricos ao peronismo tiveram que apoiá-los, reconhecendo o trabalho que está sendo feito.

O resgate da Argentina se faz a partir dos escombros herdados, não podendo retomar a expansão econômica nos moldes em que ela tinha se dado antes da ditadura militar. A principal diferença é consequência da desindustrialização que a abertura acelerada da economia, feita pela ditadura e pelo governo Menem, e, ao mesmo tempo, a promoção da hegemonia do capital financeiro.

Depois da hiperfinflação no governo de Ricardo Alfonsin – que o levou a renunciar antes de concluir seu mandato –, Carlos Menem, apesar de se eleger prometendo um “choque produtivo”, fez exatamente o contrário, colocando em prática uma política radicalmente liberal. Valendo-se do trauma da hiperinflação, seu ministro da economia, Domingo Cavallo, impôs a paridade entre o peso e o dólar. O que significava que o governo renunciava a ter uma política monetária, só emitindo conforme ingressassem dólares na economia.

Esse engessamento trouxe a estabilidade monetária, mas ao preço de um profundo déficit público, adiando o estouro da paridade, enquanto os argentinos gozavam de uma súbita e insustentável valorização da sua moeda. Era uma bomba de tempo, que só foi explodir quando Menem não conseguiu eleger seu sucessor, e o radical Fernando de la Rua manteve a política de paridade, até que esta implodiu.

A Argentina entrou na maior crise econômica social e política da sua história, com retrocessos e instabilidade que levaram a que o país tivesse cinco presidentes em poucos dias, sob o impacto de uma convulsão social contra os bancos, quando a cotação do dólar subiu de 1 para 4 pesos. Os que tinham depósitos viram suas poupanças ficarem reduzidas a ¼ do que acreditavam ter.

Nesse momento se deu a regressão a que fez menção Hobsbawn, com amplos setores da classe média sendo proletarizados, com o desemprego saltando para níveis inéditos. Depois de uma relativa estabilização, foram convocadas eleições, concorrendo de novo Menem – que prometia desta vez dolarizar diretamente a economia argentina – e outros candidatos, entre eles um governador de província pouco conhecido, Nestor Kirchner.

Depois de triunfar no primeiro turno, Menem, diante da derrota iminente para Kirchner no segundo turno, renunciou a concorrer e Kirchner foi eleito. O novo governo colocou em prática uma política antineoliberal, com retomada do crescimento econômico e distribuição de renda, ao mesmo tempo em que o Estado retomava um papel ativo na indução da economia e na garantia dos direitos sociais. Em aliança com o governo Lula – e, logo, com o de Tabaré Vázquez, no Uruguai –, o Mercosul foi reativado.

A economia argentina passou a crescer a ritmo altíssimo durante quase uma década. A novidade foi o papel que a exportação de soja passou a ter, ocupando em parte o lugar das exportações industriais, embora estas retomassem um importante nível de desenvolvimento, especialmente a indústria automobilística.

Com um grau altíssimo de endividamento herdado dos governos Menem e De la Rua, e praticamente sem patrimônio público, privatizado por Menem – até mesmo a YPF, que havia propiciado a autossuficiência energética para a Argentina –, Kirchner impôs uma renegociação do pagamento da dívida argentina. Grande parte dos credores aceitou, ficando um resíduo de uns 8%, que até hoje busca impor sanções à Argentina.

O impulso da recuperação foi continuado pelo governo de Cristina Kirchner, que deu sequência a essas orientações, mesmo sob o impacto de forte campanha da mídia opositora.

Desde a crise internacional iniciada em 2008 e sob os efeitos das limitações de crédito externo impostas pelos organismos financeiros internacionais como resposta à renegociação da dívida, a economia passou a dar mostrar de desequilíbrios. Entre eles, uma inflação de cerca de 25% e a falta de financiamentos externos, ao que o governo respondeu com políticas de controle de câmbio, que introduziu um descompasso entre as cotações oficiais e paralelas do peso.

No plano social e político o governo – depois da reeleição de Cristina –, ela foi perdendo apoios, e as tensões se elevaram dentro mesmo do peronismo, especialmente com a principal central sindical – a CGT –, que passou a organizar mobilizações contra o governo, com demandas salariais. No plano político, a lei de democratização dos meios de comunicação foi duramente combatida pelas empresas da mídia privada, que conseguiram brecar que ela fosse posta em prática.

Foi nesse marco que se intensificou a campanha internacional contra o governo argentino, baseada na reprodução e ampliação das matérias da mídia opositora. No Brasil são os jornais Clarín e La Nación que alimentam a velha mídia na difusão do que se passa na Argentina.

A renacionalização da YPF, tirando-a das mãos da empresa espanhola Repsol, fez com que a mídia internacional – em primeiro lugar a da Espanha – passasse a atacar sistematicamente o governo da Cristina, formando um verdadeiro cerco informativo sobre o que efetivamente acontece no país.

É uma campanha de desinformação, que desconhece todos os avanços na recuperação da economia e no plano das políticas sociais, destacando os escândalos que a mídia opositora levanta semanalmente.

A Argentina se encontra agora em um dilema, que terá nas eleições parlamentares de 27 de outubro seu próximo capítulo, com a nova composição do Parlamento. Será muito difícil que o governo consiga os 2/3, necessário para a reforma da Constituição. Assim, Cristina não poderá se candidatar de novo. Se abrem dois anos de incertezas políticas na sucessão presidencial argentina.
*comtextolivre 

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