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Ser de esquerda é não aceitar as injustiças, sejam elas quais forem, como um fato natural. É não calar diante da violação dos Direitos Humanos, em qualquer país e em qualquer momento. É questionar determinadas leis – porque a Justiça, muitas vezes, não anda de mãos dadas com o Direito; e entre um e outro, o homem de esquerda escolhe a justiça.
É ser guiado por uma permanente capacidade de se estarrecer e, com ela e por causa dela, não se acomodar, não se vender, não se deixar manipular ou seduzir pelo poder. É escolher o caminho mais justo, mesmo que seja cansativo demais, arriscado demais, distante demais. O homem de esquerda acredita que a vida pode e deve ser melhor e é isso, no fundo, que o move. Porque o homem de esquerda sabe que não é culpa do destino ou da vontade divina que um bilhão de pessoas, segundo dados da ONU, passe fome no mundo.
É caminhar junto aos marginalizados; é repartir aquilo que se tem e até mesmo aquilo que falta, sem sacrifício e sem estardalhaço. À direita, cabe a tarefa de dar o que sobra, em forma de esmola e de assistencialismo, com barulho e holofotes. Ser de esquerda é reconhecer no outro sua própria humanidade, principalmente quando o outro for completamente diferente. Os homens e mulheres de esquerda sabem que o destino de uma pessoa não deveria ser determinado por causa da raça, do gênero ou da religião.
Ser de esquerda é não se deixar seduzir pelo consumismo; é entender, como ensinou Milton Santos, que a felicidade está ancorada nos bens infinitos. É mergulhar, com alegria e inteireza, na luta por um mundo melhor e neste mergulho não se deixar contaminar pela arrogância, pelo rancor ou pela vaidade. É manter a coerência entre a palavra e a ação. É alimentar as dúvidas, para não cair no poço escuro das respostas fáceis, das certezas cômodas e caducas. Porém, o homem de esquerda não faz da dúvida o álibi para a indiferença. Ele nunca é indiferente. Ser de esquerda é saber que este “mundo melhor e possível” não se fará de punhos cerrados nem com gritos de guerra, mas será construído no dia-a-dia, nas pequenas e grandes obras e que, muitas vezes, é preciso comprar batalhas longas e desgastantes. Ser de esquerda é, na batalha, não usar os métodos do inimigo.
Fernando Evangelista

terça-feira, setembro 24, 2013

Feminicídio: quando mulheres são mortas por serem mulheres

Em sete anos, Lei Maria da Penha acumula 700 mil ações contra agressores

Exatos sete anos após entrar em vigor, em 22 de setembro de 2006, a Lei Maria da Penha acumula perto de 700 mil procedimentos judiciais contra agressores de mulheres no Brasil, entre atendimentos, medidas de proteção e prisões, segundo levantamento do Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Até março deste ano, data do último mapeamento, eram 677.987 ações. O CNJ não tem dados atualizados sobre quantas dessas viraram efetivamente processos criminais. A informação mais recente a esse respeito é de 2009, quando, de 400 mil casos, 80% (ou 330 mil) tinham seguido adiante na Justiça, com quase 80 mil sentenças definitivas e nove mil prisões provisórias ou em flagrante.
 
 
Expressivos, os números mostram o acerto da lei, mas não escondem que ainda há muito por fazer. As 80 mil sentenças definitivas correspondem a apenas 20% casos registrados até 2009. E as prisões equivalem a pouco mais de 2%. Em os entraves que impedem a aplicação mais efetiva e universal da lei, segundo quem lida diretamente com o tema, é a carência de varas e juizados especializados no atendimento a mulheres vítimas de violência. São 66 hoje em todo o país. Para o CNJ, deveriam ser pelo menos 120.
 
Já as Delegacias da Mulher, embora presentes em vários municípios, geralmente não têm estrutura adequada de atendimento, como equipes multidisciplinares (psicólogos, médicos, assistentes sociais) e funcionamento 24 horas. 
 
“Temos delegacias especializadas em todo o país, mas muitas ficam fechadas nos finais de semana e à noite, horários em que as mulheres mais precisam ter referências sobre aonde ir”, relatou a secretária de Segurança Pública do Ministério da Justiça, Regina Miki, para quem ainda há muito a fortalecer no sistema de proteção à mulher. Além disso, as instituições diretamente ligadas ao tema detectam falta de agilidade na decretação das medidas de proteção – como obrigação de que determinado homem se mantenha a certa distância da vítima.
 
Políticas públicas
 
“As coisas têm mudado, mas não com a rapidez que a mulher deseja. Essa mudança, infelizmente, tem acontecido mais nas grandes cidades. As pequenas ainda não contam com políticas públicas que atendam de maneira satisfatória. A maioria dos estados ainda necessita trabalhar mais essa questão, oferecer equipamentos, principalmente os Centros de Referência da Mulher e as Delegacias da Mulher. Quando existe um destes locais numa determinada cidade, com equipe multidisciplinar preparada para atender uma vítima de violência, a mulher, que chega muito fragilizada, se sente encorajada a denunciar”, atesta a farmacêutica Maria da Penha Maia Fernandes, cujo caso deu nome à lei.
 
Maria da Penha é símbolo tanto da luta contra a violência de gênero quanto da impunidade aos agressores. Em 1983, seu então marido tentou matá-la duas vezes, primeiro a tiros, depois por eletrocução. Devido à sequência de agressões, ela ficou paraplégica. Ele acabaria condenado a oito anos de cadeia, mas ficou preso só dois e está livre até hoje.
 
No final de agosto, com o encerramento da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) sobre a violência contra a mulher – solenidade que contou com a presença da presidenta Dilma Rousseff – foram anunciadas novas políticas públicas com o objetivo de ampliar o trabalho de proteção – entre elas a instalação de casas de apoio em todos os estados.
 
O relatório final da comissão sugeriu 13 projetos de lei, que já estão tramitando na Câmara ou no Senado. Vários foram aprovados em ao menos uma das duas casas. O mais emblemático é o que altera o Código Penal e a Lei dos Crimes de Tortura para incluir a tipificação de um novo crime, intitulado “feminicídio”.
 
Efetividade
 
Entre 2002 e 2012, 43,7 mil mulheres foram assassinadas em circunstâncias associadas à violência doméstica. Os estados com maior incidência são Espírito Santo, Alagoas e Paraná – mais de seis mortes para cada 100 mil habitantes.
 
“Poucas leis foram tão disseminadas quanto essa, mas precisamos evoluir também no campo do comportamento. Lamentavelmente, ainda estamos vivendo um clima de aplicação da mesma. A lei precisa ser aplicada sim, mas ela precisa ter a efetividade que deveria”, afirmou o desembargador Ney Freitas, ex-conselheiro do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e quem coordenou as últimas pesquisas do órgão sobre o tema.
 
A pesquisa concluída em março, que cruza dados do Mapa da Violência, da Secretaria de Políticas para as Mulheres da Presidência da República, mostra que a região brasileira com mais unidades judiciais específicas é o Sudeste, com 20.
 
O Centro Oeste conta com 16 unidades, mas dez delas estão concentradas no Distrito Federal. Nos demais estados da região, o atendimento é precário e superlotado, com uma única vara ou juizado. No Nordeste, são 15 unidades. No Sul, apenas três, uma em cada estado.
 
Agressões físicas
 
Dados da Secretaria de Política para Mulheres mostram que a agressão física ainda é o mais comum dos crimes, presente em 44,2% dos casos registrados na polícia ou diretamente no Judiciário. Depois vêm a agressão psicológica (20,8%) e a agressão sexual (12,2%). Com mulheres entre 20 e 50 anos, o parceiro é o principal agente agressor. Até os nove anos e depois dos 60, a violência na maior parte das vezes vem de pais e filhos, respectivamente.
 
Os estados com mais inquérito policiais registrados nestes sete anos são o Rio de Janeiro (43 mil), o Rio Grande do Sul (39 mil) e Minas Gerais (21 mil). O Rio também tem o maior número de ações penais encaminhadas (16 mil), seguido de Mato Grosso (15 mil) e Pará (11 mil).
 
Isso não significa, necessariamente, que estes sejam os lugares campeões de violência de gênero, mas aqueles em que as mulheres têm mais disposição, meios ou garantias para fazer a denúncia.
 
O medo de acusar o agressor ainda é grande, seja pela perspectiva de impunidade, seja por questões culturais, conforme ressalta a ministra Eleonora Menicucci, da Secretaria de Políticas para Mulheres. “Se as mulheres não denunciarem, não existe crime. Como podemos acabar com a impunidade sem a denúncia? Assim a lei não pode ser aplicada”, enfatizou.
 
Chantagens, ameaça e medo
 
Mas essa nunca é uma decisão fácil de tomar, como relata a administradora de empresas A.C.S., uma da 700 mil mulheres que procuram o amparo da lei nos últimos anos.
“Acho que a transformação maior é a que vem de dentro de nós. Convivi por 20 anos com um marido que me batia. Quando resolvi dar um basta e me separar, sofri tantas chantagens e ameaças de morte que preferi voltar atrás da decisão. Por sorte, tive uma prima que morava em outro estado, me convenceu e me acolheu. Pude iniciar a vida, oficializar o divórcio com direito à partilha dos bens acumulados e ainda indiciá-lo pela Lei Maria da Penha. Mas posso dizer: não foi nem está sendo fácil”, relatou ela, que nasceu e construiu sua vida no Distrito Federal, mas hoje mora em outro estado.
 
Sem nunca ter trabalhado, de família classe média, a administradora contou que enfrentou grandes dilemas consigo mesma e com alguns integrantes mais próximos da família, como irmãos e filhos, que lhe pediam para não denunciar o marido. Mesmo hoje, não se sente à vontade de voltar a Brasília, de onde saiu quando resolveu processar o companheiro e dar um basta às agressões.
 
“É preciso mais apoio para a aplicação da lei e maior estrutura sim, mas o mais importante é dar às mulheres um reforço moral, para que tenham coragem. Porque, apesar de ser uma violência que agride muito, sobretudo internamente, já que parte na maioria das vezes de pessoas que amamos, a denúncia ainda consiste numa questão cultural. E nós não conseguimos mudar totalmente essa cultura”, disse.
*Nassif

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