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Ser de esquerda é não aceitar as injustiças, sejam elas quais forem, como um fato natural. É não calar diante da violação dos Direitos Humanos, em qualquer país e em qualquer momento. É questionar determinadas leis – porque a Justiça, muitas vezes, não anda de mãos dadas com o Direito; e entre um e outro, o homem de esquerda escolhe a justiça.
É ser guiado por uma permanente capacidade de se estarrecer e, com ela e por causa dela, não se acomodar, não se vender, não se deixar manipular ou seduzir pelo poder. É escolher o caminho mais justo, mesmo que seja cansativo demais, arriscado demais, distante demais. O homem de esquerda acredita que a vida pode e deve ser melhor e é isso, no fundo, que o move. Porque o homem de esquerda sabe que não é culpa do destino ou da vontade divina que um bilhão de pessoas, segundo dados da ONU, passe fome no mundo.
É caminhar junto aos marginalizados; é repartir aquilo que se tem e até mesmo aquilo que falta, sem sacrifício e sem estardalhaço. À direita, cabe a tarefa de dar o que sobra, em forma de esmola e de assistencialismo, com barulho e holofotes. Ser de esquerda é reconhecer no outro sua própria humanidade, principalmente quando o outro for completamente diferente. Os homens e mulheres de esquerda sabem que o destino de uma pessoa não deveria ser determinado por causa da raça, do gênero ou da religião.
Ser de esquerda é não se deixar seduzir pelo consumismo; é entender, como ensinou Milton Santos, que a felicidade está ancorada nos bens infinitos. É mergulhar, com alegria e inteireza, na luta por um mundo melhor e neste mergulho não se deixar contaminar pela arrogância, pelo rancor ou pela vaidade. É manter a coerência entre a palavra e a ação. É alimentar as dúvidas, para não cair no poço escuro das respostas fáceis, das certezas cômodas e caducas. Porém, o homem de esquerda não faz da dúvida o álibi para a indiferença. Ele nunca é indiferente. Ser de esquerda é saber que este “mundo melhor e possível” não se fará de punhos cerrados nem com gritos de guerra, mas será construído no dia-a-dia, nas pequenas e grandes obras e que, muitas vezes, é preciso comprar batalhas longas e desgastantes. Ser de esquerda é, na batalha, não usar os métodos do inimigo.
Fernando Evangelista
segunda-feira, junho 07, 2010
Quem é a favor da Paz da Civilização mostra a sua visão e protesta bom quando são Judeus
O caso do “Exodus” repetiu-se, com troca de papéis. Agora, os israelitas são os britânicos.
Mate um turco e descanse
Uri Avnery
O caso do “Exodus” repetiu-se, com troca de papéis. Agora, os israelitas são os britânicos.
No mar alto, em águas internacionais, a marinha israelita atacou o barco. Os comandos mascarados atacaram com fúria. Centenas de agredidos resistiram. Os soldados atiraram. Houve mortos, muitos feridos. O barco foi levado a outro porto, os passageiros desembarcaram. O mundo viu-os andando pelo cais, homens e mulheres, velhos e jovens, todos esgotados, rasgados, um depois do outro, escoltados por soldados…
O navio era o “Exodus 1947”. Havia deixado a França na esperança de romper o bloqueio britânico, imposto para impedir que navios abarrotados de sobreviventes do Holocausto aportassem nas costas da Palestina. Se não conseguissem aportar, imigrantes ilegais, seriam levados pelos britânicos aos campos de concentração em Chipre, como já acontecera antes. Ninguém se preocuparia com eles por mais de um, dois dias.
Em Israel, no governo, estava Ernest Bevin, do Partido Labour, ministro britânico, arrogante e brutal, apaixonado pelo poder. Jamais deixaria que um bando de judeus mandasse no seu governo. E decidiu dar uma lição aos judeus, o mundo por testemunha. “É provocação!” gritou ele e, claro, estava certo. O objetivo era mesmo gerar um acto de provocação, para atrair os olhos do mundo para o bloqueio britânico da Palestina.
O que aconteceu todos sabem: o ataque degenerou, uma estupidez levou à outra, o mundo solidarizou-se com os passageiros dos barcos. Os britânicos, senhores da Palestina não cederam e pagaram o preço. Pesado preço.
Muitos crêem que o caso do “Exodus” marcou o ponto de viragem da luta para a criação do Estado de Israel. O mandato britânico entrou em colapso sob o peso da condenação internacional e os britânicos tiveram de deixar a Palestina. Houve, é claro, muitas outras razões de peso para aquela decisão, mas o episódio do “Exodus” provou ser a palha que quebrou a espinha dorsal do camelo.
Esta semana, em Israel, não fui o único que lembrou este episódio. De facto, foi quase impossível não lembrar, sobretudo os israelitas que já vivíamos na Palestina naquele tempo e vimos tudo.
Há diferenças importantes, é claro. Aqueles eram sobreviventes do Holocausto; hoje, são pacifistas de todo o mundo. Mas então, como hoje, o mundo viu soldados pesadamente armados a atacar brutalmente passageiros desarmados – que resistiram com o que encontraram à mão, paus e porretes e com os punhos. Daquela vez, como hoje, aconteceu no mar alto – daquela vez, a 40 km da costa; agora, a 65 km.
Analisado em rectrospectiva, o comportamento do governo britânico em todo o caso parece inacreditavelmente estúpido. Mas Bevin não era bobo; os oficiais britânicos que comandaram a acção não eram idiotas. Afinal, acabavam de terminar a guerra mundial, do lado vencedor.
Se agiram como perfeitos idiotas do começo ao fim, foi por arrogância, insensibilidade e absoluto desprezo pela opinião pública mundial.
Ehud Barak é o Bevin israelita. Burro, não é; nem os generais israelitas são burros. Mas são hoje responsáveis por uma cadeia de decisões e actos alucinados, cujas implicações são difíceis de avaliar. O ex-ministro e actual comentador Yossi Sarid descreveu o comité dos sete ministros – “grupo dos sete” –, que decide sobre questões de segurança, como “os sete idiotas” – e devo protestar. Foi um insulto aos idiotas.
Os preparativos para a frota exigiram mais de um ano. Centenas de mensagens de e-mail andaram pelo mundo. Eu mesmo recebi dúzias. Não era segredo. Tudo foi feito às claras.
Houve tempo de sobra para que instituições políticas e militares em Israel se preparassem para a chegada dos barcos. Os políticos poderiam ter sido consultados. Os soldados, treinados. Os diplomatas, informados. O pessoal da espionagem trabalhou.
De nada adiantou. Todas as decisões foram erradas, do primeiro ao último momento. E ainda não terminou.
A ideia de romper o bloqueio com uma frota de pacifistas roça a genialidade. Põe Israel num dilema – tendo de escolher entre várias alternativas, todas ruins. É a situação em que qualquer general sonha ver o general adversário.
As alternativas:
(a) Permitir que a Frota chegue a Gaza, sem obstáculos. O secretário do Gabinete apoiava essa ideia. Mas levaria ao fim do bloqueio, porque depois dessa frota viriam outras, cada vez maiores.
(b) Deter os navios em águas territoriais, vistoriar a carga, assegurar-se de que não havia nem armas nem “terroristas” e deixá-los prosseguir até ao porto. Levantaria alguns protestos em todo o mundo, mas preservar-se-ia o bloqueio, pelo menos em princípio.
(c) Capturar os barcos em alto mar e levar todos até Ashdod. O risco, nesse caso, seria a batalha contra os activistas a bordo, até Ashdod.
Como os governantes em Israel sempre fazem, quando têm de escolher entre várias alternativas ruins, o governo Netanyahu escolheu a pior.
Todos os que acompanharam os preparativos noticiados pelos jornais previam que havia risco de resultar em mortos e feridos. Ninguém aborda um barco turco à espera de ser recebido por garotinhas louras que ofereçam rosas. Todos sabem que os turcos não se rendem facilmente.
As ordens que os soldados receberam – e a imprensa divulgou – incluíam as palavras fatais: “a qualquer custo”. Qualquer soldado sabe o que significam essas palavras terríveis. Não bastasse, na lista dos objectivos da missão, a atenção aos passageiros civis aparecia em terceiro lugar, depois da salvaguarda da segurança dos soldados e da necessidade de cumprir a missão.
Se Binyamin Netanyahu, Ehud Barak, o comandante geral do exército e o comandante da marinha não sabiam que a operação poderia levar a matar e ferir civis desarmados, então é necessário concluir – até os que ainda relutem – que são todos insuperavelmente incompetentes. Merecem ouvir as palavras imortais de Oliver Cromwell ao Parlamento: “Estão aí há tempo demais, considerado o serviço que têm prestado… Vão-se! Livrem-nos de vocês. Em nome de Deus, fora!”
Este acontecimento aponta outra vez para um dos mais sérios aspectos da situação: Israel vive numa bolha, numa espécie de gueto mental, que nos isola do mundo e nos impede de ver outra realidade: a que o resto do mundo vê. Um psiquiatra veria aí sintoma de grave doença mental.
A propaganda do governo e do exército israelitas, para o público interno, conta uma história simples: os heróicos soldados de Israel, valentes e sensíveis, elite da elite, abordaram o navio com intenções de “parlamentar” e foram atacados por uma turba selvagem e violenta. Os porta-vozes oficiais nunca esqueceram de repetir a palavra “linchamento”.
No primeiro dia, praticamente toda a comunicação social israelita acreditou. Afinal, claro que os judeus são sempre as vítimas. Sempre. Aplica-se a soldados judeus, claro. Claro. Soldados judeus abordam barco estrangeiro em águas internacionais e, imediatamente, se metamorfoseiam em vítimas encurraladas, sem escolha, obrigados a defender-se de ataque violento incitado por anti-semitas.
Impossível não lembrar a clássica piada de humor judeu, sobre a mãe judia na Rússia, que se despede do filho convocado para o exército do czar, em guerra contra a Turquia. “Não se desgaste”, aconselha a mãe. “Mate um turco, e descanse. Mate outro turco e descanse outra vez…”
“Mas mãe”, o filho interrompe, “E se o turco me matar?”
“Matá-lo”?, exclama a mãe. “E por que o mataria? O que você lhe fez?”
Soa como loucura, para qualquer pessoa normal. Soldados pesadamente armados de um comando de elite abordam um navio no mar, no meio da noite, por mar e por ar – e são as vítimas?
Mas há aí uma gota de verdade: são vítimas, sim, de comandantes arrogantes e incompetentes, de políticos irresponsáveis e da imprensa que os mesmos arrogantes, incompetentes e irresponsáveis alimentam. De facto, são vítimas também da população de Israel, dado que esses eleitores, não outros, elegeram aquele governo, inclusive a oposição, que não é diferente da situação.
O caso do “Exodus” repetiu-se, com troca de papéis. Agora, os israelitas são os britânicos.
Em algum lugar, algum novo Leon Uris prepara-se para escrever o próximo livro, “Exodus 2010”. Um novo Otto Preminger planeia filmar novo blockbuster. Um novo Paul Newman brilhará nele. Sorte, que não faltam hoje talentosos actores turcos.
Há mais de 200 anos, Thomas Jefferson declarou que todas as nações deveriam agir “com respeito decente pelas opiniões da humanidade”. Em Israel, os líderes jamais aceitaram a sabedoria dessa lição. Preferem a lição de David Ben-Gurion: “Não importa o que pensem os não-judeus. Só importa o que os judeus fazem.” Vai-se ver, tinha a certeza de que não há judeus que agem como imbecis.
Fazer da Turquia, inimiga, é pior que simples tolice. Há décadas, a Turquia tem sido a mais próxima aliada de Israel na Região, muito mais próxima do que a opinião pública supõe. A Turquia poderia, no futuro, fazer o papel de importante mediadora entre Israel e o mundo árabe-muçulmano, entre Israel e a Síria e, sim, também entre Israel e o Irão. É possível que Israel, agora, tenha conseguido unir o povo turco contra Israel – e já há quem diga que esse seria o único tema em torno do qual os turcos afinal se uniram.
Estamos a viver o segundo capítulo da operação “Chumbo Derretido”. Daquela vez, Israel reuniu a opinião pública contra Israel e os israelitas, chocámos os raros amigos de Israel e facilitámos a luta para os inimigos de Israel. Agora, Israel repete o feito, com talvez ainda mais sucesso. Israel conseguirá virar, contra Israel, a opinião pública mundial.
Este processo é lento. É como a água, acumulando por trás da barragem. A água sobe devagar, em silêncio, mal se vê. E quando alcança o nível crítico, a barragem cede e será o desastre, para Israel. Israel aproxima-se perigosamente desse ponto.
“Mate um turco e descanse…” recomenda a mãe, na piada. O governo de Israel nem descansa! Parece decidido a não parar, até ter convertido em inimigo, o último amigo que reste a Israel.
Publicado por Gush Shalom [Bloco da Paz], Israel, em Haaret’z, Telavive, 3/6/2010
Tradução de Caia Fittipaldi, disponível em viomundo.com.br
Sobre o autor
Uri Avnery
Escritor israelita, jornalista, fundador do movimento de defesa da paz Gush Shalom.
do Blog do Turquinho
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