O paciente, o Sr. Direito, está “precluso”
Contaram-me uma história de um jornalista que participava de um programa de televisão com um juiz e que, diante das formalidades levantadas no mundo jurídico para que se aja contra o que é manifestamente ilegal, fez os espectadores imaginarem a seguinte situação: o Sr. Direito é atropelado ali na frente do Tribunal e todos gritam: olhem, o Direito foi atropelado!
E correm a pedir que o Doutor recupere o Sr. Direito, trate do Sr. Direito, conserte o Sr. Direito. Mas o Doutor diz que não, que essa não é a forma de fazer, que é preciso chamar a ambulância, pegar uma maca, deitar ali o Sr. Direito, ligar a sirene e entrar pela porta de emergência do Tribunal, ou melhor, do Hospital. Bem, o pessoal volta com o Sr. Direito, coloca-o de novo no asfalto, chama a ambulância, procura a maca, conserta a sirene quebrada da ambulância e, horas e horas depois, consegue fazer o Sr. Direito ser examinado. Tarde demais, porém. O Doutor levanta os óculos, franze as sombrancelhas e diz, com voz triste e grave: senhores, o Sr. Direito, infelizmente, está precluso. A preclusão, juridicamente, é a morte do Direito.
A historinha, evidente, não é totalmente veraz. Muitas vezes a Justiça não pode agir, embora eu esteja cansado de ir a eventos onde, por sua própria iniciativa, ela manda fiscais verificarem se há propaganda eleitoral antecipada ou transgressões à lei. Seus funcionários, de colete e máquinas fotográficas, ficam ali, trabalhando debaixo de sol e chuva, com grande esforço pessoal, sábados e domingos, sem o seu repouso e o lazer com suas famílias. Empenham-se, corretamente, em buscar detectar pequenas transgressões; uma faixa, uma camiseta, um “santinho”. Mas , enquanto eles se esforçam, será possível que infrações milhões de vezes maiores, mais graves, possam ser praticadas sem menhuma reação?
Em geral, o privilégio da ação, o papel de estar atento e agir diante do Sr. Direito sendo atropelado é do Ministério Público. E, infelizmente, a impressão que se tem é que o Ministério Público Eleitoral só olha para uma das pistas da rua, onde pede multas à menor invasão do acostamento ou excesso de velocidade, enquanto na outra pista o pobre do Sr. Direito é atropelado como um boneco de pano, sem que nada aconteça.
Hoje, ao analisar a pesquisa Ibope, o Estado de S. Paulo chega a publicar esta pérola:
“No caso de Serra, praticamente não há diferenças entre os dois grupos: 41% de preferências entre os que viram o programa tucano e 37% entre os que não viram.”
Que programa tucano? O programa do DEM ilegalmente usado pelo candidato tucano?
Todos sabiam que isso ocorreria. Estava nos jornais. Era declarado e confesso.
O Ministério Público Eleitoral ignorou tudo. O Judiciário lavou as mãos, dizendo que seria censura prévia.
Ou seja, o Sr. Direito só poderia ser protegido depois de atropelado. E, mesmo depois de atropelado em rede nacional, diante de milhões de brasileiros, há mais de dez dias, o douto Ministério Público Eleitoral não teve ainda oportunidade de vir em seu socorro.
Pior, duas outras jamantas, Roberto Freire e Roberto Jefferson, anunciam nos jornais e nos sites oficiais de seus partidos, que vão passar com “seus” PPS e PTB por cima do Sr. Direito, em rede nacional de rádio e televisão, nos dias 10 e 24 deste mês, promovendo José Serra, mas o Ministério Público Eleitoral só se preocupa em deduzir que, se Lula suspirar ao ouvir o nome de Dilma Roussef, isso carateriza propaganda eleitoral antecipada.
Faço um apelo aos srs. Procuradores e Ministros da Suprema Corte Eleitoral. A intenção de transgredir é pública, confessa, impressa nos jornais. O que está em jogo não é a liberdade de expressão, mas o desvio de finalidade dos programas partidários, como, aliás, Suas Excelências puniram ao considerar que, subjetivamente, havia ocorrido no programa do PT. Mas os partidos pró-Serra vão muito além da transgressão sujetiva. Vão fazer seus programas serem “estrelados” e promoverem um integrante de outro partido, o que é absoluta e expressamente vedado pela lei, independendo de qualquer interpretação subjetiva. Quem é filiado a uma partido não pode participar do programa de outro. É, repito,outra vez, a letra do Inciso I, Parágrafo 1° do Artigo 45 da Lei 9096, que regula estes programas.
O princípio da liberdade de expressão não está em jogo aí. Também é uma garantia constitucional a inviolabilidade do lar, mas se um homem entra em casa de revólver em punho, gritando que vai matar a mulher e os filhos, deveria o poder público, em nome da inviolabilidade do lar, deixar que isso se consume, para depois aplicar as sanções cabíveis a este tresloucado cidadão?
E, neste caso, a coisa é ainda mais evidente: ainda que Serra ficasse imóvel como uma estátua na tela, fará parte do programa e esta participação é expressamente proibida por lei.
Ocorre aí não uma preclusão jurídica, mas prática, com a inocuidade da pena prevista para esta trangressão. Que lhes importa a punição futura se, daqui a meses, quando a lenta roda da Justiça girar, o objetivo da transgressão terá sido alcançado. Que importa perder o horário partidário de 2011? É como matar alguém atropelando-o e sabendo que a pena por isso limitar-se-á a perder a carteira de motorista por seis meses, em lugar de responder por um homicídio.
Repito, não é uma transgressão subjetiva, pendente de interpretação. É expressa, objetiva, literal afronta à lei.
É impossível ser um bom operador do Direito sem amar a Justiça. É evidente que a intenção do legislador, ao proibir a participação em horário político de um partido de filiado a outro partido foi a de evitar seu uso eleitoral. Foi, aliás, medida inspirada no que aconteceu com Fernando Collor que, tal como fará José Serra – se não se puser côbro a isso – , apareceu em três programas de rede nacional nas eleições de 89, para projetar-se como candidato. Com a diferença, para pior, que Serra o fará em quatro, pois além do DEM, do PPS, do PTB, ainda terá – este, legitimamente – o programa do PSDB.
Quem teve a paciência de ler, até aqui, este “tijolaço”, há de ter percebido que o escreve alguém que ama a Justiça e tem, pelos seus operadores, enorme respeito. É por isso que perde sua noite de sábado alinhando estes argumentos que, embora não contenham as citações em alemão ou italiano tão ao gosto de alguns juristas, vale-se da mísera e pobre realidade dos fatos, sem latinismos ou citações para floreá-los.
Eu só quero, por favor, é que o Sr. Direito não seja, de novo e repetidas vezes, atropelado. E que, na prática, embora não juridicamente, tenhamos de dizer, daqui a 20 dias, que já não há recurso possível, o Sr. Direito está, na prática, inapelavelmente, precluso.
Morto, portanto. E sem ressurreição possível.
do Tijolaço
O Malandro ” E no entanto êle se move como prova o Galileu”
me lembrei desta composição do Chico Buarque, da Ópera do Malando.
Seu texto excelente, nos mostra como na composição, que a ópera nunca para.
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