A Rússia sai da letargia
Via Jornal do Brasil
Mauro Santayana
Enganam-se
os que viram, na Guerra Fria, o conflito ideológico entre o sistema
socialista e o sistema capitalista. Na verdade, todos os que examinam a
história com cautela sabem que as ideologias podem ser, em certas
ocasiões, doutrinas de escolha para conduzir os projetos nacionais
estratégicos, mas o sentimento de nação sempre prevalece sobre as ideias
de caráter universal. Essa é uma das dificuldades do marxismo aplicado:
não é fácil a união internacional dos trabalhadores contra o capital.
Quando traduzida, a Internacional, mesmo mantendo a força de seus
acordes, não tem o mesmo efeito da versão original de Eugéne Pottier,
um participante da Comuna de Paris — nem mesmo em russo, ainda que tenha
sido o hino oficial da URSS.
O marxismo foi uma doutrina de ocasião para que o Império Russo fizesse a sua revolução nacional
O
homem, qualquer homem, é o centro de um universo que se amplia, mas que
se distancia, ao ampliar-se. Assim, a percepção do mundo e de nossa
existência nele encontra o limite ideal na comunidade cultural e em seu
espaço geográfico — enfim, na pátria. A sobrevivência da comunidade
nacional prevalece sobre os sistemas sociais que adotemos. Em razão
disso, podemos considerar que as revoluções políticas atendem, em
primeira urgência, à salvação do povo — a sua liberdade e soberania
dentro dos limites nacionais. Sendo assim, podemos dizer que o marxismo
foi uma doutrina de ocasião para que o Império Russo fizesse a sua
revolução nacional, derrubando uma monarquia enfermiça e alienada e
instituindo novo sistema político. A etapa kerensquiana da revolução
nada prometia senão uma república tão conservadora quanto o regime dos
Romanov — daí a ousadia de Lenine e seus companheiros.
A
revolução se estagnou e retrocedeu com Stalin, para se perder com
Gobartchev. Ela vinha se esvaziando, por não avançar rumo à utopia de
uma sociedade sem classes, que fora a promessa de 1917. A tecnocracia
substituíra a nobreza do Império, e parcelas da sociedade se cansaram
das restrições. Isso possibilitou a Gobartchev capitular, como
capitulou, sem a habilidade para promover uma transição mais inteligente
para a economia de mercado.
A queda do Muro de
Berlim foi um desastre para o mundo socialista e, especialmente, para a
União Soviética, esquartejada e com sua economia dilacerada, com as
empresas do Estado entregues aos favoritos de Ieltsin. As nações, no
entanto, são capazes de soerguer-se em pouco tempo, desde que encontrem
motivos para isso. Nos últimos 24 anos, com as dificuldades conhecidas, a
Rússia vem recuperando a consciência de nação e sua força histórica. O
complexo de derrota, que se seguiu à fragmentação do antigo Império e à
arrogância dos Estados Unidos como a única potência hegemônica,
foi vencida. A aliança entre os países emergentes, que une o Brasil à
Rússia, à Índia, à China e à África do Sul, é um novo espaço de
influência na geopolítica, compartilhado por essas potências — e anima
os russos.
Eles têm reconstruído seus
exércitos, e, a duras penas na fase confusa da reorganização do núcleo
mais poderoso do antigo Império, restaurado sua indústria pesada.
Setores em que eles haviam sido, e durante muito tempo, superiores, como
os da aviação militar e dos mísseis, foram recuperados. Seus aviões de
caça, bem como seus foguetes intercontinentais, continuam a ser
considerados do mesmo nível (e, em alguns casos, superiores) aos de seus
rivais.
Putin pode ter, e tem, grandes
defeitos, a par de sua vocação ditatorial, segundo seus desafetos, mas
vem devolvendo aos russos o seu orgulho antigo. O nacionalismo russo
apelou para a Revolução de Outubro, mesmo contra a opinião de Marx, que
via pouca possibilidade de um movimento socialista em uma região
geoeconômica que não se libertara de todo da visão medieval da economia e
do poder. O nacionalismo russo de nossos dias não só aceita como
prestigia (conforme as pesquisas pré-eleitorais destas horas) o líder
político que encarna a recuperação do orgulho do velho país.
A
URSS — que ocupava a mais extensa região do globo, com seus quase 25
milhões de quilômetros quadrados — não mais existe, mas a Rússia
continua sendo o maior território nacional do mundo (duas vezes o
tamanho do Brasil), com seus 17 milhões de quilômetros quadrados.
A Federação Russa quer ser ouvida e acatada no mundo de hoje
Com
essa presença poderosa, e mais de 1,2 milhão de homens em armas, a
Federação Russa quer ser ouvida e acatada no mundo de hoje. E não há
dúvida de que o seu projeto nacional é o de recuperar o espaço político
que conquistara na Segunda Guerra Mundial, e que perdeu em 1991. A
indústria militar, conforme explicou Putin, irá provocar a aceleração de
toda a economia nacional.
Para isso, Putin
anunciou que a indústria bélica irá produzir, nos próximos dez anos,
mais 400 mísseis balísticos modernos, oito submarinos estratégicos, 20
submarinos polivalentes, mais de 50 navios de superfície, cerca de 100
veículos espaciais com função militar, mais de 600 aviões modernos, mais
de mil helicópteros e 28 baterias antiaéreas dotadas de mísseis
terra-ar S-400.
*Gilsonsampaio
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