Como foi e é construída a privatização do ensino superior no Brasil
Otaviano Helene no CORREIO DA CIDADANIA |
Uma das características do ensino
superior brasileiro nas últimas várias décadas é a constante redução da
participação das instituições públicas na sua oferta: em 1960, cerca
de 60% das matrículas eram em instituições públicas; atualmente, elas
são da ordem de 25% e com uma tendência a continuar aumentando (veja
gráfico).
Nas décadas de 1960 e 1970,
período marcado pelo regime militar, a participação do setor privado
cresceu de 40% até pouco mais do que 60% das matrículas. Após uma
década sem aumento dessa participação, a privatização voltou a crescer
após 1990, período marcado pela expansão do neoliberalismo, continuando
a aumentar ao longo da década seguinte.
O que aconteceu na década de
1980, quando a taxa de privatização permaneceu praticamente estável, ao
contrário de ter sido um sinal de que o setor público passou a ter uma
postura mais positiva, ilustra um dos muitos problemas que a
privatização apresenta. A década de 1980 foi marcada por uma profunda
recessão econômica e, consequentemente, redução de renda e aumento do
desemprego. Como consequência, aquela crise econômica afetou fortemente
as possibilidades que as pessoas tinham de arcar com as mensalidades
escolares, afastando os estudantes, como, obviamente, seria esperado.
Esse fato ilustra bem um dos graves problemas da privatização da
educação: a educação, quando privatizada, ao invés de ser um
instrumento que possa ajudar a suportar uma crise econômica (fixando os
jovens por mais tempo no setor educacional e reduzindo, assim, a
pressão sobre os empregos) e a criar as condições necessárias para
superá-la (preparando a força de trabalho do país), passa a ser um
fator a intensificação da própria crise.
Subsídios
Se “conseguimos” atingir a taxa
de privatização de 75%, é porque, ao longo do tempo, todos os níveis
governamentais contribuíram para isso, por meio de incentivos
financeiros diretos e indiretos, por meio de legislações e por deixarem
espaço livre para a atuação do setor privado.
No campo financeiro, tanto a
União como os estados e municípios têm contribuído, ao longo dos
últimos 50 anos, cada um de sua forma, para o aumento da privatização.
Essas subvenções ocorrem na forma de isenções de taxas, contribuições e
impostos (nacionais, estaduais e municipais), abatimento de despesas
com educação privada no imposto de renda de pessoa física, repasses
diretos de recursos públicos para entidades privadas, pagamento das
mensalidades dos alunos ou financiamento delas pelo setor público,
convênios com ONGs ligadas a instituições privadas, entre diversas
outras.
Como já estamos acostumados com
todas essas práticas, o que faz com que muitas pessoas as achem
positivas, vale a pena esmiuçar uma delas, talvez até a mais aceita
como sendo adequada, justa e necessária: o abatimento no imposto de
renda de pessoas físicas das despesas educacionais. Esse abatimento,
que encontra enorme apoio nas classes mais privilegiadas e mesmo
reclamações por considerarem-na pequena, é, na prática, uma distorção
do que se esperaria de um sistema tributário ou de um subsídio a uma
atividade essencial.
Como o abatimento das despesas
educacionais ocorre antes do cálculo do imposto devido, quanto maior
for a renda de uma pessoa, maior será o abatimento do imposto. Vejamos.
No caso de pessoas com altas rendas, os governos subsidiam em 27,5%
das despesas com educação privada passíveis de serem abatidas. Já no
caso de uma pessoa com renda modesta, eventuais despesas educacionais
podem ser subsidiadas em proporções bem menores do que aqueles 27,5 %
ou mesmo não terem subsídio algum.
Uma espécie de Robin Hood às
avessas. Embora possa parecer que é o contribuinte que está sendo
beneficiado, quem de fato recebe aquela subvenção é a instituição de
ensino. Por exemplo, alguém de alta renda que tenha pago R$ 1.000 para
uma instituição de ensino, receberá do governo, na forma de abatimento
de imposto, R$ 275,00; ou seja, gastou, de fato, R$ 725,00, enquanto a
instituição recebeu, também de fato, os R$ 1000 pagos. Alguém de baixa
renda que tenha gasto os mesmos R$ 1.000 não terá redução alguma do
imposto devido.
Em última instância, o
abatimento no imposto de renda é um subsídio indireto às instituições
privadas de educação. Embora este seja apenas um exemplo, mostra como
as políticas de transferência de recursos ao setor privado podem ser
distorcidas. Uma redução dos impostos por causa de despesas
educacionais só seria justificável (embora inadequado) se a redução
fosse inversamente proporcional à renda, subsidiando mais quem ganha
menos, não da forma que é hoje. Evidentemente, não há nenhuma
dificuldade técnica para se fazer isso: se subsidiamos mais quem menos
precisa e menos quem mais precisa, é porque é para ser assim mesmo.
Legislação
Além das ações financeiras e
econômicas em favor da privatização da educação, há muitas ações no
campo legal que vão no mesmo sentido. Novamente, ao invés de detalhar
as muitas formas com que isso ocorre, vamos ilustrar algumas delas. Uma
universidade é um tipo de instituição cujas atribuições incluem,
segundo a LDB (Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional),
desenvolver a pesquisa científica e tecnológica, conferir diplomas com
validade nacional, criar e extinguir cursos e definir seus currículos,
desenvolver atividades de extensão universitária, entre outras. Para
isso, seria esperado que tal tipo de instituição tivesse, em seu
quadro, pessoas altamente qualificadas para aquelas atividades, o que
no mundo acadêmico significa doutores.
Entretanto, ainda que possa
parecer absurdo, a LDB não exige doutores no corpo docente de uma
universidade: a sutil redação daquela lei exige que pelo menos um terço
do seu corpo docente tenha “titulação acadêmica de mestrado ou
doutorado”. A partícula “ou” revela a real intenção do legislador: uma
universidade, no Brasil, não precisa de doutores! Essa redação é
desrespeitosa e mesmo um escárnio, na medida em que a palavra doutorado
está apenas enfeitando o texto, sem nenhuma consequência prática; se a
frase acabasse em “mestrado”, estaria dizendo exatamente a mesma
coisa.
Além disso, exigir uma terça
parte dos docentes com determinada titulação não significa que eles
venham a exercer a terça parte das atividades desenvolvidas pelas
instituições, pois pode se atribuir a essa terça parte uma carga
horária pequena, com apenas algumas poucas horas semanais de trabalho.
E tem mais: para desenvolver
aquelas atividades, os docentes universitários deveriam contar com as
necessárias condições de trabalho, o que significaria, na prática
acadêmica, contratos em tempo integral e, preferencialmente, com
dedicação exclusiva à instituição. Mas a mesma LDB exige que uma
universidade tenha pelo menos “um terço do corpo docente em regime de
tempo integral”. Ora, se a essa terça parte do corpo docente for
atribuída uma carga didática alta e/ou muitas tarefas administrativas, a
lei estará sendo cumprida, sem, de fato, garantir as condições
necessárias para a pesquisa e as atividades de extensão universitária
previstas pela LDB.
Evidentemente, essa legislação,
que não está respondendo a nenhuma necessidade real das instituições
universitárias públicas, favorece, e muito, as instituições privadas.
A ausência do setor público abre espaço ao setor privado
Uma terceira forma de
favorecimento do setor privado ocorre por meio da restrição de vagas
oferecidas pelo setor público, o que abre o necessário espaço para o
crescimento das instituições privadas. Uma evidência dessa prática é
que a falta de vagas públicas nada tem a ver com as dificuldades
financeiras do setor público, diferentemente do que é dito com
frequência. Tanto é assim que a privatização é maior exatamente nos
estados com maiores possibilidades econômicas e orçamentárias e que
maiores contribuições dão ao governo federal.
São Paulo é o caso exemplar:
exatamente nesse estado em que a ausência do setor público é mais
marcante, como mostra a tabela. A porcentagem de matrículas em
instituições privadas em São Paulo, 87%, é bem maior do que nos demais
estados (69%). Mesmo quando comparada com a população total ou com o
número de concluintes do ensino médio, a privatização paulista é maior
do que nos outros estados por um fator dois, como mostram os dados da
tabela.
Essa maior privatização em São
Paulo é totalmente compatível com a hipótese de que a ausência do setor
público é estratégica, não fruto de uma impossibilidade econômica ou
financeira.
Conseqüências
As políticas de privatização,
quando associadas com a distribuição dos cursos oferecidos pelas
instituições privadas pelas diferentes áreas do conhecimento, fazem com
que alguns indicadores da educação superior no Brasil estejam em
completo desacordo com o que se observa em outros países com
possibilidades econômicas equivalentes ou mais modestas que as nossas.
Essa característica nos coloca em uma situação bastante frágil.
Evidentemente, não se está
defendendo que haja uma competição entre os países, coisa que, ao
contrário, devemos combater. Entretanto, uma força de trabalho mal
preparada, distribuída de forma inadequada pelas diferentes áreas
profissionais, e quantitativamente insuficiente, fragiliza o país nos
embates internacionais e compromete nossa soberania. Consequentemente,
não conseguimos sequer criar um ambiente que permita lutar por uma
relação mais saudável entre as nações e que priorize as cooperações em
lugar das competições.
Otaviano
Helene, professor no Instituto de Física da USP, foi presidente do
Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira
(Inep).
*Turquinho
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