Pelo crediário
O sistema econômico vigente no país não é nem o capitalismo nem o socialismo, é o crediário. Os brasileiros se dividem em credores, poucos, e nós os devedores. O crediário é nossa religião. Qualquer crediário. Basta dizer sem entrada que a gente entra. Adoramos o deus a prazo e a ele entregamos nossa alma em suaves prestações. Marcamos a passagem do tempo não pelas fases da lua ou as revoluções da terra mas pelas datas de vencimento. Como qualquer religioso , o crediário impõe um rígido código moral, a pontualidade, e penitência para os que pecam contra ele, os juros de mora. Promete o paraíso - ficha limpa e crédito na hora - aos que trilham o caminho do bom pagador e o inferno aos que atrasam e aos que renegam. Não é por nada que os cobradores se vestem de vermelho com enviados do demônio. É surpreendente que os departamentos de crédito das grandes lojas ainda não tenham um guichê marcado " confissões".
- Dai-me a vossa benção porque pequei.
- O gerente de vendas o abençoe, crediarista.
- Atrasei junho e julho e tive pensamentos impuros quando paguei
agosto. Estamos no fim de outubro e ainda não paguei setembro. Eu não
sou digno.
- Vá de joelhos até a caixa e pague setembro com juros, outubro normalmente e novembro como contrição.
O Bom Pagador não só tem crédito fácil e - supõe-se - um lugar no céu,
como recebe mensagens de incentivos e congratulações dos seus credores.
A correspondência personalizada de credores para devedores é, aliás,
uma das inovações da moderna técnica de venda. Hoje é tudo mais
simpático e humano. " Parabéns! " exclama o seu credor, entusiasmado. "
Você não atrasou nem um pagamento. Precisamos nos conhecer melhor.
Apareça para a gente bater um papo! " Nem o fato de tudo na carta ser
impresso por um computador, até a assinatura do seu novo amigo,
desmancha a boa sensação que ela lhe traz. Você é amado. O futuro lhe
sorri e lhe dá tapinhas nas costa. Você é esse paradigma do mundo do
crédito, um pontual. E não fica aí a benevolência do credor satisfeito. A
próxima carta virá acompanhada de um cartão de Cliente Preferencial.
"Apresente este cartão a qualquer um dos vendedores na sua próxima
visita à nossa loja e ganhe um sorriso absolutamente grátis! " Ao
completar mais uma compra a prazo sem atrasar uma prestação você recebe
outro cartão, desta vez plastificado, de " Cliente de Ouro ". Fica
subentendido que, se continuar assim, não sei não. Você ainda acaba
sócio da firma.
Mas ai de quem
atrasar um pagamento. Por alguns dias apenas, não tem problema. Estamos
ainda dentro do período de cobrança amigável, uma espécie de acordo
tácito de que, quando você for pagar, será bem tratado e seus direitos
respeitados de acordo com a Convenção de Genebra. O computador esquecerá
sua pequena falha e todos continuarão amigos como sempre. Neste
período, a correspondência continuará no mesmo tom informal de antes,
mas com uma ponta de apreensão.
"
Alô Amigo! Notamos que você ainda não saldou seu compromisso de
novembro. Sabemos como são estas coisas. Esta vida agitada... Não
esqueça que nosso Departamento de Crédito está aberto das..."
Uma semana depois, outra carta.
" Prezado Esquecido. O que é isso? Ainda não recebemos o pagamento da
prestação de novembro. Pra um Cliente Preferencial isso está nos
parecendo muito estranho. Ponha a cabeça no lugar, companheiro ". Para
evitar mal-entendidos, a carta vem com um prudente P.S. " Se você
saldou sua dívida antes de receber este bilhete, desconsidere-o. "
Passa-se uma semana. O tom torna-se mais seco.
" Prezado Crediarista. Seu compromisso de novembro ainda não foi
saldado. O prazo para a cobrança Amigável está por se esgotar. Queira
providenciar o pagamento, para não comprometer a sua ficha de Bom
Pagador e Cliente Preferencial. "
Outra semana. A próxima carta conterá um preâmbulo sombrio: " Quem
avisa amigo é..." E descreverá tudo que lhe pode acontecer se for
revelado que você não paga suas contas. O crédito lhe será negado em
toda a parte e, sem crédito, você será reduzido a nada. Será um réprobo,
um pária da sociedade de consumo. É melhor pagar. E outra coisa: "
Devolva o seu cartão de Cliente Preferencial ".
Três dias depois, uma outra carta.
" Nosso departamento Jurídico já foi alertado. Solicitamos, no entanto -
em consideração ao seu passado de impecável pontualidade - que ele
suste qualquer ação em dois dias. Você tem 48 horas para saldar sua
dívida de novembro. Caso contrário o problema passará para esfera
judicial. E não espere mais nenhuma compreensão, Dura Lex, etc."
Há uma nova tentativa de acertar as coisas como gente civilizada, no
entanto. Uma carta do tipo " Olha aqui. A cobrança judicial não
interessa a nós nem a você. Pague o que nos deve e ficaremos
conversados. Só não passe mais perto da loja senão você apanha. "
Depois, a coisa engrossa.
" Seu sujo! Lhe demos todas as chances e você ignorou. Pois agora vai
ter. Nosso departamento jurídico está afiando os dentes e deve entrar em
ação ao raiar do dia. Não tente fugir. Você está perdido."
No dia seguinte, estranhamente, chega um envelope colorido dirigido a
você, identificado como " Cliente Preferencial ", e dentro um jovial "
Feliz Natal! " Esqueceram de avisar o computador para tirar você da
lista de efemérides. Mas no dia seguinte recomeçam as hostilidades.
" O que mais dói não é o dinheiro. Não precisamos do seu dinheiro. Não
vamos quebrar por uma mísera prestação a menos. O que dói é a confiança
traída..."
Você finalmente paga.
As cartas não lhe incomodavam, mas os telefonemas no meio da noite,
chamando você de "cachorro!" eram demais.
Dias depois, chega uma carta.
" Alô amigo! Notamos que seus compromissos atrasados foram saldados.
Sabíamos que você compreenderia. Que bom ter você de volta como cliente !
Espero que você esteja contente conosco também. Junto com esta segue um
cartão de Cliente Preferencial Recuperado, que lhe dará o direito a..."
Luis Fernando Verissimo
*umpoucodetudoumpouco
Nenhum comentário:
Postar um comentário