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Ser de esquerda é não aceitar as injustiças, sejam elas quais forem, como um fato natural. É não calar diante da violação dos Direitos Humanos, em qualquer país e em qualquer momento. É questionar determinadas leis – porque a Justiça, muitas vezes, não anda de mãos dadas com o Direito; e entre um e outro, o homem de esquerda escolhe a justiça.
É ser guiado por uma permanente capacidade de se estarrecer e, com ela e por causa dela, não se acomodar, não se vender, não se deixar manipular ou seduzir pelo poder. É escolher o caminho mais justo, mesmo que seja cansativo demais, arriscado demais, distante demais. O homem de esquerda acredita que a vida pode e deve ser melhor e é isso, no fundo, que o move. Porque o homem de esquerda sabe que não é culpa do destino ou da vontade divina que um bilhão de pessoas, segundo dados da ONU, passe fome no mundo.
É caminhar junto aos marginalizados; é repartir aquilo que se tem e até mesmo aquilo que falta, sem sacrifício e sem estardalhaço. À direita, cabe a tarefa de dar o que sobra, em forma de esmola e de assistencialismo, com barulho e holofotes. Ser de esquerda é reconhecer no outro sua própria humanidade, principalmente quando o outro for completamente diferente. Os homens e mulheres de esquerda sabem que o destino de uma pessoa não deveria ser determinado por causa da raça, do gênero ou da religião.
Ser de esquerda é não se deixar seduzir pelo consumismo; é entender, como ensinou Milton Santos, que a felicidade está ancorada nos bens infinitos. É mergulhar, com alegria e inteireza, na luta por um mundo melhor e neste mergulho não se deixar contaminar pela arrogância, pelo rancor ou pela vaidade. É manter a coerência entre a palavra e a ação. É alimentar as dúvidas, para não cair no poço escuro das respostas fáceis, das certezas cômodas e caducas. Porém, o homem de esquerda não faz da dúvida o álibi para a indiferença. Ele nunca é indiferente. Ser de esquerda é saber que este “mundo melhor e possível” não se fará de punhos cerrados nem com gritos de guerra, mas será construído no dia-a-dia, nas pequenas e grandes obras e que, muitas vezes, é preciso comprar batalhas longas e desgastantes. Ser de esquerda é, na batalha, não usar os métodos do inimigo.
Fernando Evangelista

sexta-feira, março 30, 2012

Pelo crediário


O sistema econômico vigente no país não é nem o capitalismo nem o socialismo, é o crediário. Os brasileiros se dividem em credores, poucos, e nós os devedores. O crediário é nossa religião. Qualquer crediário. Basta dizer sem entrada que a gente entra. Adoramos o deus a prazo e a ele entregamos nossa alma em suaves prestações. Marcamos a passagem do tempo não pelas fases da lua ou as revoluções da terra mas pelas datas de vencimento. Como qualquer religioso , o crediário impõe um rígido código moral, a pontualidade, e penitência para os que pecam contra ele, os juros de mora. Promete o paraíso - ficha limpa e crédito na hora - aos que trilham o caminho do bom pagador e o inferno aos que atrasam e aos que renegam. Não é por nada que os cobradores se vestem de vermelho com enviados do demônio. É surpreendente que os departamentos de crédito das grandes lojas ainda não tenham um guichê marcado " confissões".
- Dai-me a vossa benção porque pequei.
- O gerente de vendas o abençoe, crediarista.
- Atrasei junho e julho e tive pensamentos impuros quando paguei agosto. Estamos no fim de outubro e ainda não paguei setembro. Eu não sou digno.
- Vá de joelhos até a caixa e pague setembro com juros, outubro normalmente e novembro como contrição.
O Bom Pagador não só tem crédito fácil e - supõe-se - um lugar no céu, como recebe mensagens de incentivos e congratulações dos seus credores. A correspondência personalizada de credores para devedores é, aliás, uma das inovações da moderna técnica de venda. Hoje é tudo mais simpático e humano. " Parabéns! " exclama o seu credor, entusiasmado. " Você não atrasou nem um pagamento. Precisamos nos conhecer melhor. Apareça para a gente bater um papo! " Nem o fato de tudo na carta ser impresso por um computador, até a assinatura do seu novo amigo, desmancha a boa sensação que ela lhe traz. Você é amado. O futuro lhe sorri e lhe dá tapinhas nas costa. Você é esse paradigma do mundo do crédito, um pontual. E não fica aí a benevolência do credor satisfeito. A próxima carta virá acompanhada de um cartão de Cliente Preferencial. "Apresente este cartão a qualquer um dos vendedores na sua próxima visita à nossa loja e ganhe um sorriso absolutamente grátis! " Ao completar mais uma compra a prazo sem atrasar uma prestação você recebe outro cartão, desta vez plastificado, de " Cliente de Ouro ". Fica subentendido que, se continuar assim, não sei não. Você ainda acaba sócio da firma.
Mas ai de quem atrasar um pagamento. Por alguns dias apenas, não tem problema. Estamos ainda dentro do período de cobrança amigável, uma espécie de acordo tácito de que, quando você for pagar, será bem tratado e seus direitos respeitados de acordo com a Convenção de Genebra. O computador esquecerá sua pequena falha e todos continuarão amigos como sempre. Neste período, a correspondência continuará no mesmo tom informal de antes, mas com uma ponta de apreensão.
" Alô Amigo! Notamos que você ainda não saldou seu compromisso de novembro. Sabemos como são estas coisas. Esta vida agitada... Não esqueça que nosso Departamento de Crédito está aberto das..."
Uma semana depois, outra carta.
" Prezado Esquecido. O que é isso? Ainda não recebemos o pagamento da prestação de novembro. Pra um Cliente Preferencial isso está nos parecendo muito estranho. Ponha a cabeça no lugar, companheiro ". Para evitar mal-entendidos, a carta vem com um prudente P.S. " Se você saldou sua dívida antes de receber este bilhete, desconsidere-o. "
Passa-se uma semana. O tom torna-se mais seco.
" Prezado Crediarista. Seu compromisso de novembro ainda não foi saldado. O prazo para a cobrança Amigável está por se esgotar. Queira providenciar o pagamento, para não comprometer a sua ficha de Bom Pagador e Cliente Preferencial. "
Outra semana. A próxima carta conterá um preâmbulo sombrio: " Quem avisa amigo é..." E descreverá tudo que lhe pode acontecer se for revelado que você não paga suas contas. O crédito lhe será negado em toda a parte e, sem crédito, você será reduzido a nada. Será um réprobo, um pária da sociedade de consumo. É melhor pagar. E outra coisa: " Devolva o seu cartão de Cliente Preferencial ".
Três dias depois, uma outra carta.
" Nosso departamento Jurídico já foi alertado. Solicitamos, no entanto - em consideração ao seu passado de impecável pontualidade - que ele suste qualquer ação em dois dias. Você tem 48 horas para saldar sua dívida de novembro. Caso contrário o problema passará para esfera judicial. E não espere mais nenhuma compreensão, Dura Lex, etc."
Há uma nova tentativa de acertar as coisas como gente civilizada, no entanto. Uma carta do tipo " Olha aqui. A cobrança judicial não interessa a nós nem a você. Pague o que nos deve e ficaremos conversados. Só não passe mais perto da loja senão você apanha. "
Depois, a coisa engrossa.
" Seu sujo! Lhe demos todas as chances e você ignorou. Pois agora vai ter. Nosso departamento jurídico está afiando os dentes e deve entrar em ação ao raiar do dia. Não tente fugir. Você está perdido."
No dia seguinte, estranhamente, chega um envelope colorido dirigido a você, identificado como " Cliente Preferencial ", e dentro um jovial " Feliz Natal! " Esqueceram de avisar o computador para tirar você da lista de efemérides. Mas no dia seguinte recomeçam as hostilidades.
" O que mais dói não é o dinheiro. Não precisamos do seu dinheiro. Não vamos quebrar por uma mísera prestação a menos. O que dói é a confiança traída..."
Você finalmente paga. As cartas não lhe incomodavam, mas os telefonemas no meio da noite, chamando você de "cachorro!" eram demais.
Dias depois, chega uma carta.
" Alô amigo! Notamos que seus compromissos atrasados foram saldados. Sabíamos que você compreenderia. Que bom ter você de volta como cliente ! Espero que você esteja contente conosco também. Junto com esta segue um cartão de Cliente Preferencial Recuperado, que lhe dará o direito a..."

Luis Fernando Verissimo
*umpoucodetudoumpouco

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