A cúpula dos BRICS e o boicote da mídia ocidental
A cada ano, quando chega a época da Cúpula Presidencial dos BRICS – a
quarta edição desse encontro acaba de terminar em Nova Delhi, a capital
indiana – torna-se cada vez mais evidente, para o observador atento, o
patético esforço da mídia “ocidental” (entre ela boa parte da nossa
própria imprensa) de desconstruir a imagem de uma aliança geopólítica
que reúne quatro das cinco maiores nações do planeta em território,
recursos naturais e população e que está destinada a modificar a o
equilíbrio de poder no mundo, no século XXI.
Essa estratégia – com a relativa exceção dos meios especializados em
economia - vai de simplesmente ignorar o encontro, à tentativa de
diminuir sua importância, ou semear dúvidas sobre a unidade dos
principais países emergentes, tentando ressaltar suas diferenças, no
lugar do reconhecer o que realmente importa: a política comum dos BRICS
de oposição à postura neocolonial de uma Europa e de um EUA cada vez
mais instáveis, que se debatem com um franco processo de decadência
econômica, diplomática e social.
Para isso, a mídia ocidental – incluindo a “nossa” - ignora os despachos
das agências oficiais dos BRICS, principalmente as russas e as
chinesas, que ressaltam a importância do Grupo e de suas iniciativas
para suas próprias nações – o Brasil inexplicavelmente ainda não possui
serviços noticiosos em outros idiomas, coisa que até mesmo Angola
utiliza, e muito bem – e se concentra em procurar e entrevistar
observadores “ocidentais” ou pró-ocidentais situados em esses países,
que se dedicam a repetir a cantilena da “impossibilidade” do
estabelecimento de uma aliança geopolítica de fato entre o Brasil, a
Rússia, a Índia, a China e a África do Sul, baseados nos seguintes
argumentos:
- A “distância” entre o Brasil, a África do Sul, e a Rússia, a índia e a China, como se em um mundo em que a informação é instantânea e um míssil atinge qualquer ponto do globo em menos de quatro horas, isso tivesse a menor importância.
- O fato de a África do Sul, o Brasil e a Índia serem democracias, e a China e a Rússia não serem democracias “plenas ” segundo o elástico conceito ocidental, que não considera a Venezuela uma democracia “plena”, mas o Kuwait ou a Arábia Saudita – autocracias herdadas e governadas pelo direito de sangue - sim.
- A concorrência da Índia, da China e da índia no espaço asiático, como se esses três países não cooperassem, até mesmo no campo militar, e não mantivessem reuniões, há muitos anos, para resolução de problemas eventuais.
- A rotulagem desses países em “exportadores de commodities” como a Rússia e o Brasil, “provedores de serviços”, como a India, e “fábricas do mundo”, como a China, como se essa situação, caso fosse verdadeira, não pudesse ser usada a favor de uma aliança intercomplementar, ou como se Rússia, Brasil e índia também não produzissem manufaturados, e entre eles produtos industriais avançados, como aviões, por exemplo.
É óbvio que uma aliança como os BRICS, que reúne um terço do território
mundial, 25% do PIB, e praticamente a metade da população humana não se
consolidará, política e militarmente, de uma hora para a outra. Mas
também é igualmente claro, que não se trata de um grupo heterogêneo de
nações que não tenham nada a ver uma com a outra.
Se assim fosse, o Brasil não estaria fornecendo aviões-radares para a
índia, não estaríamos desenvolvendo mísseis ar-ar e terra-ar com a DENEL
sul-africana, ou comprando helicópteros russos de combate, ou não
teríamos, há anos, um programa de satélites de sensoriamento remoto com a
China.
O primeiro traço comum entre os grandes “brics” como a Rússia, a China, a
índia e o Brasil, e, em menor grau, a África do Sul, é, como demonstra a
sua oposição à política ocidental para com a Libia e a Siria, o
respeito ao princípio de não intervenção.
Porque o Brasil, a Rússia, a índia, a China, não aceitam que se
intervenha em terceiros países, em função de questões relacionadas aos
“direitos humanos”, por exemplo, ou devido à questão nuclear ?
Porque, como são países que prezam a sua soberania, não aceitam que,
amanhã, o mesmo “ocidente” que hoje ataca a Libia, a Siria, ou o Irã,
venha se unir contra um deles, qualquer deles, por causa de outras
questões, como poderia acontecer conosco, eventualmente, no caso dos “
direitos” indígenas, ou da defesa da Amazônia, o “pulmão do mundo”.
Quem tem telhado de vidro não joga pedra nos outros. Que atire a
primeira quem nunca pisou na bola. Qual é o país, hoje, que pode acordar
pela manhã, olhar-se, enquanto sociedade, no espelho, e dizer que não
tem nenhum problema de direitos humanos?
E mais, quem arvorou à Europa e aos norte-americanos a missão de julgar o
mundo? Pode um país como os Estados Unidos, que invadiu e destruiu o
Iraque, por causa de outro mito intervencionista, o da existência –
comprovadamente falsa - de armas de destruição em massa naquele país,
falar em direitos humanos ?
Pode uma Nação que inventou e usou, no Vietnam, centenas de toneladas de
um veneno químico chamado agente laranja, contaminando para sempre o
solo e as águas de milhares de hectares de selva, falar em defesa da
natureza e das florestas tropicais?
Ou pode um país que jogou duas bombas atômicas sobre dezenas de milhares
de velhos, mulheres e crianças desarmadas, queimando-as até os ossos -
quando poderia – se quisesse – tê-las testado sobre soldados do exército
ou da marinha japonesa, falar, em sã consciência, de controle de
armamento atômico e da não proliferação nuclear?
A realidade por trás do discurso de defesa dos direitos humanos e da
natureza é muito mais complexa do que Hollywood mostra às nossas
incautas multidões em filmes como Avatar. Por mais que muitos espíritos
de "vira-lata" queiram - mesmo dentro do nosso país - que Deus tivesse
dado à Europa e aos Estados Unidos o direito de governar o mundo, para
defender seu artificial e efêmero “american way of life”, ele não o fez.
Pequenos países, como a Espanha ou a Itália, na ilusão de se sentirem
maiores, podem – assim o decidiram suas elites - abdicar de sua
soberania política e econômica e bombardear a população civil na Líbia,
no Iraque, no Afeganistão, em defesa de uma impossibilidade quimérica
como a Europa do euro, e do mandato da “Pax Americana”.
Nações como o Brasil, a Índia, a China e a Rússia, se aferram ao direito
à soberania, ao recurso à diplomacia, à primazia da negociação. Não se
pode salvar vidas distribuindo armas para um bando descontrolado de
açougueiros que espanca e mata prisioneiros indefesos, desarmados e
ensanguentados – mesmo que eles se chamem Khadaffi – e obriga jovens
muçulmanos a desfilarem em fila, de joelhos, repetidas e infinitas
vezes, sob a lente da câmera e a ameaça de armas e chicotes, para
mastigar e engolir nacos de cadáveres de cães putrefatos. O futuro da
humanidade no século XXI e nos próximos, depende cada vez mais da
emergência de um mundo multipolar que se oponha à pretensa hegemonia
“ocidental”. E é isso – queiram ou não os jornais e comentaristas
europeus e norte-americanos – que está em jogo a cada nova Cúpula dos
BRICS, como a de Nova Delhi.
*comtextolivre
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