Desarquivando o Brasil: O luto numa terra de cadáveres insepultos
do Idelber Avelar
Idelber Avelar
Convocada pela jornalista Niara de Oliveira,
reúne-se a partir de ontem até o dia 02 de abril, em vários blogs, a 5ª
Blogagem Coletiva #DesarquivandoBR, um esforço de cobrança, reflexão e
ativismo sobre os rumos da nossa memória como país. Nos termos da convocação: O
objetivo dessa blogagem continua sendo a abertura dos arquivos secretos
da ditadura militar, a investigação dos crimes e violações de direitos
humanos cometidos pelo Estado brasileiro contra cidadãos, a localização
dos corpos e restos mortais dos desaparecidos políticos, e a revisão da
Lei da Anistia para que se possa processar e punir criminalmente os
torturadores, além de responsabilizar o próprio Estado pelos crimes de
tortura, assassinato e desaparecimento forçado no período entre 1964 e
1979. Chamo a atenção especialmente para as vinte e seis impressionantes postagens de Pádua Fernandes, que vão desde a crítica literária até o trabalho de arquivo, passando pela teoria do Direito.
Contribuirei escrevendo um pouco sobre um tema relacionado, e ao qual eu dediquei um livro: o luto pelos mortos.
Em
marcado contraste com outros países, no Brasil ainda não nos foi
possível fazer o luto pelos nossos mortos. O luto, esse processo de
reconciliação e aceitação do caráter irreversível da perda, depende,
acima de tudo, da existência do cadáver. A morte sem cadáver, sem
atestado de óbito, sem o registro de seu acontecer, sem
responsabilização, invariavelmente lança o sobrevivente àquele processo
que poderíamos chamar de luto suspenso – em que o sujeito, mesmo
convicto da perda, não pode processá-la, pois falta-lhe o rastro
material que fundamenta o luto. Esse rastro, essa marca, é fundamental,
pois ela é tanto a garantia de que poderá ser realizado o sepultamento
simbólico como a garantia de que o sujeito poderá processar sua perda
sem ser acossado pelos fantasmas de que está abandonando e traindo o
objeto amado que se foi.
Muito mais que qualquer
outro país que eu conheça, o Brasil é uma terra de cadáveres
insepultos. Trinta e dois anos se passaram desde a volta dos exilados e a
promulgação da Lei da Anistia. Desde então, os governos militar,
peemedebista, collorido, tucano e petistas se sucederam sem que se
realizasse um única ação estatal de julgamento e punição dos
responsáveis pelas torturas, execuções, violações acontecidas durante a
ditadura militar. O nosso trabalho de luto é incompleto e precário, pois
falta-lhe o essencial: o reconhecimento institucional, na pólis, do
evento acontecido, e a responsabilização de seus agentes.
Freud
acreditava que o trabalho do luto tinha um prazo definido para se
cumprir e, na ausência de uma resolução, o sujeito estaria condenado à
melancolia – aquele estado em que, incapaz de superar a perda, o sujeito
se confunde com o objeto perdido. A melancolia não é necessariamente a
tristeza. Na realidade, ela pode, inclusive, mascarar-se num estado
eufórico, que tenta encontrar conquistas compensatórias, que vão, aqui
no caso, do crescimento do PIB aos números da produção de soja. O
passado, no entanto, não cessa de inscrever-se. E quanto mais o
passado se inscreve sem sem resolvido, mais energia libidinal o sujeito
terá que dispender no sufocamento da demanda de resolução. É o que
Freud chamou de luto triunfante, que descreve exatamente, ao
modo de ver, o processo vivido pelo Brasil. Nessa forma de luto
incompleto, pendente e negacionista, o sujeito triunfa – imaginariamente
– sobre um objeto perdido que lhe permanece oculto.
Esta
tem sido uma modalidade de luto brasileira por excelência. Nossa morada
é a desmemória. Jamais reparamos as vítimas da escravidão,
contentando-nos com a construção de mitologias da mestiçagem e da
cordialidade racial, enquanto os negros continuavam sofrendo na pele a
realidade da discriminação e da violência. Jamais nos encarregamos do
legado de memória deixado pelo genocídio das populações ameríndias,
convenientemente esquecidas para que se impusesse o programa da ordem e
do progresso. Nunca fizemos luto genuíno pelas cadáveres e corpos
mutilados do Estado Novo, soterrados sob o mito do varguismo nacional e
popular que foi propagado até mesmo pelos comunistas que haviam sido
suas vítimas preferenciais. Hoje, curiosamente, muitos dos que
concordariam com as três frases anteriores repetem o mesmo paradigma com
relação aos crimes da ditadura militar. O importante é “olhar pra
frente”, nos dizem, ignorando ou escondendo o fato de que quem carrega
cadáveres insepultos nas costas jamais poderá olhar pra frente, só pra
baixo.
Pouquíssimo trabalho de memória e de
reparação foi feito no Brasil ante as vítimas do genocídio ameríndio, da
escravidão, da ditadura do Estado Novo. Que não contentemos, mais uma
vez, em varrer a sujeira do passado para debaixo do tapete.
*GilsonSampaio
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