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Ser de esquerda é não aceitar as injustiças, sejam elas quais forem, como um fato natural. É não calar diante da violação dos Direitos Humanos, em qualquer país e em qualquer momento. É questionar determinadas leis – porque a Justiça, muitas vezes, não anda de mãos dadas com o Direito; e entre um e outro, o homem de esquerda escolhe a justiça.
É ser guiado por uma permanente capacidade de se estarrecer e, com ela e por causa dela, não se acomodar, não se vender, não se deixar manipular ou seduzir pelo poder. É escolher o caminho mais justo, mesmo que seja cansativo demais, arriscado demais, distante demais. O homem de esquerda acredita que a vida pode e deve ser melhor e é isso, no fundo, que o move. Porque o homem de esquerda sabe que não é culpa do destino ou da vontade divina que um bilhão de pessoas, segundo dados da ONU, passe fome no mundo.
É caminhar junto aos marginalizados; é repartir aquilo que se tem e até mesmo aquilo que falta, sem sacrifício e sem estardalhaço. À direita, cabe a tarefa de dar o que sobra, em forma de esmola e de assistencialismo, com barulho e holofotes. Ser de esquerda é reconhecer no outro sua própria humanidade, principalmente quando o outro for completamente diferente. Os homens e mulheres de esquerda sabem que o destino de uma pessoa não deveria ser determinado por causa da raça, do gênero ou da religião.
Ser de esquerda é não se deixar seduzir pelo consumismo; é entender, como ensinou Milton Santos, que a felicidade está ancorada nos bens infinitos. É mergulhar, com alegria e inteireza, na luta por um mundo melhor e neste mergulho não se deixar contaminar pela arrogância, pelo rancor ou pela vaidade. É manter a coerência entre a palavra e a ação. É alimentar as dúvidas, para não cair no poço escuro das respostas fáceis, das certezas cômodas e caducas. Porém, o homem de esquerda não faz da dúvida o álibi para a indiferença. Ele nunca é indiferente. Ser de esquerda é saber que este “mundo melhor e possível” não se fará de punhos cerrados nem com gritos de guerra, mas será construído no dia-a-dia, nas pequenas e grandes obras e que, muitas vezes, é preciso comprar batalhas longas e desgastantes. Ser de esquerda é, na batalha, não usar os métodos do inimigo.
Fernando Evangelista

sexta-feira, março 30, 2012

Desarquivando o Brasil: O luto numa terra de cadáveres insepultos

 

 

 do Idelber Avelar
Idelber Avelar
Convocada pela jornalista Niara de Oliveira, reúne-se a partir de ontem até o dia 02 de abril, em vários blogs, a 5ª Blogagem Coletiva #DesarquivandoBR, um esforço de cobrança, reflexão e ativismo sobre os rumos da nossa memória como país. Nos termos da convocação: O objetivo dessa blogagem continua sendo a abertura dos arquivos secretos da ditadura militar, a investigação dos crimes e violações de direitos humanos cometidos pelo Estado brasileiro contra cidadãos, a localização dos corpos e restos mortais dos desaparecidos políticos, e a revisão da Lei da Anistia para que se possa processar e punir criminalmente os torturadores, além de responsabilizar o próprio Estado pelos crimes de tortura, assassinato e desaparecimento forçado no período entre 1964 e 1979. Chamo a atenção especialmente para as vinte e seis impressionantes postagens de Pádua Fernandes, que vão desde a crítica literária até o trabalho de arquivo, passando pela teoria do Direito.
Contribuirei escrevendo um pouco sobre um tema relacionado, e ao qual eu dediquei um livro: o luto pelos mortos.
Em marcado contraste com outros países, no Brasil ainda não nos foi possível fazer o luto pelos nossos mortos. O luto, esse processo de reconciliação e aceitação do caráter irreversível da perda, depende, acima de tudo, da existência do cadáver. A morte sem cadáver, sem atestado de óbito, sem o registro de seu acontecer, sem responsabilização, invariavelmente lança o sobrevivente àquele processo que poderíamos chamar de luto suspenso – em que o sujeito, mesmo convicto da perda, não pode processá-la, pois falta-lhe o rastro material que fundamenta o luto. Esse rastro, essa marca, é fundamental, pois ela é tanto a garantia de que poderá ser realizado o sepultamento simbólico como a garantia de que o sujeito poderá processar sua perda sem ser acossado pelos fantasmas de que está abandonando e traindo o objeto amado que se foi.
Muito mais que qualquer outro país que eu conheça, o Brasil é uma terra de cadáveres insepultos. Trinta e dois anos se passaram desde a volta dos exilados e a promulgação da Lei da Anistia. Desde então, os governos militar, peemedebista, collorido, tucano e petistas se sucederam sem que se realizasse um única ação estatal de julgamento e punição dos responsáveis pelas torturas, execuções, violações acontecidas durante a ditadura militar. O nosso trabalho de luto é incompleto e precário, pois falta-lhe o essencial: o reconhecimento institucional, na pólis, do evento acontecido, e a responsabilização de seus agentes.
Freud acreditava que o trabalho do luto tinha um prazo definido para se cumprir e, na ausência de uma resolução, o sujeito estaria condenado à melancolia – aquele estado em que, incapaz de superar a perda, o sujeito se confunde com o objeto perdido. A melancolia não é necessariamente a tristeza. Na realidade, ela pode, inclusive, mascarar-se num estado eufórico, que tenta encontrar conquistas compensatórias, que vão, aqui no caso, do crescimento do PIB aos números da produção de soja. O passado, no entanto, não cessa de inscrever-se. E quanto mais o passado se inscreve sem sem resolvido, mais energia libidinal o sujeito terá que dispender no sufocamento da demanda de resolução. É o que Freud chamou de luto triunfante, que descreve exatamente, ao modo de ver, o processo vivido pelo Brasil. Nessa forma de luto incompleto, pendente e negacionista, o sujeito triunfa – imaginariamente – sobre um objeto perdido que lhe permanece oculto.
Esta tem sido uma modalidade de luto brasileira por excelência. Nossa morada é a desmemória. Jamais reparamos as vítimas da escravidão, contentando-nos com a construção de mitologias da mestiçagem e da cordialidade racial, enquanto os negros continuavam sofrendo na pele a realidade da discriminação e da violência. Jamais nos encarregamos do legado de memória deixado pelo genocídio das populações ameríndias, convenientemente esquecidas para que se impusesse o programa da ordem e do progresso. Nunca fizemos luto genuíno pelas cadáveres e corpos mutilados do Estado Novo, soterrados sob o mito do varguismo nacional e popular que foi propagado até mesmo pelos comunistas que haviam sido suas vítimas preferenciais. Hoje, curiosamente, muitos dos que concordariam com as três frases anteriores repetem o mesmo paradigma com relação aos crimes da ditadura militar. O importante é “olhar pra frente”, nos dizem, ignorando ou escondendo o fato de que quem carrega cadáveres insepultos nas costas jamais poderá olhar pra frente, só pra baixo.
Pouquíssimo trabalho de memória e de reparação foi feito no Brasil ante as vítimas do genocídio ameríndio, da escravidão, da ditadura do Estado Novo. Que não contentemos, mais uma vez, em varrer a sujeira do passado para debaixo do tapete.
*GilsonSampaio

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