Silvio Tendler: 'Forças conservadoras continuam mandando no Brasil'
São Paulo – Em 1981, o documentarista Silvio Tendler perdeu uma cena do
documentário “O Mundo Mágico dos Trapalhões”, que levou 1,8 milhão de
pessoas ao cinema. Nela, o escritor e desenhista Millôr Fernandes
declarava que o quarteto Didi, Dedé, Mussum e Zacarias só não era tão
engraçado quanto os ministros do então presidente e general João
Figueiredo. Três anos depois, mais um filme dele, “Jango”, sobre o
ex-presidente João Goulart, também era censurado. Uma das várias vítimas
do regime militar no Brasil, o cineasta acaba de gravar um vídeo em defesa de uma manifestação contrária às comemorações realizadas pelos militares esta semana no Rio de Janeiro (RJ).
Durante todo o regime militar, a produção cinematográfica brasileira
atravessou diferentes fases. Quando ela foi implantada, em 1964, o
Brasil era marcado pelos filmes de Nelson Pereira dos Santos, que
sofriam influência do neorrealismo italiano, como “Rio Zona Norte”
(1955) e “Rio Quarenta Graus” (1957). Em seguida, surgiu o Cinema Novo,
com uma nova estética cinematográfica e que foi instaurado com o filme
de episódios “Cinco Vezes Favela”, dirigido por Marcos Faria, Miguel
Borges, Cacá Diegues, Joaquim Pedro de Andrade e Leon Hirszman.
O cineasta baiano Glauber Rocha também foi bastante crítico ao regime
militar em filmes, caso de “Deus e o Diabo na Terra do Sol” (1963) e
“Terra em Transe” (1967), ambos indicados a Palma de Ouro, no Festival
de Cannes, na França. Praticamente na mesma época, em 1968, o
catarinense Rogério Sganzerla instaurava o “cinema udigrudi” com “O
Bandido da Luz Vermelha”. O estilo foi praticado por outros
realizadores, como Julio Bressane, e invadiu a década de 1970, dominada
também por grandes produções, como “Dona Flor e Seus Dois Maridos”
(1976), de Bruno Barreto; e o denominado cinema da Boca do Lixo, do
centro de São Paulo. Todos de algum modo incomodaram o regime militar e
precisaram de certificado da censura para poderem ser exibidos.
O mesmo aconteceu com os filmes de Silvio Tendler, entre os quais
destacam-se a trilogia sobre os ex-presidentes Juscelino Kubitschek,
João Goulart e Tancredo Neves; “O Mundo Mágico dos Trapalhões”,
“Glauber, O Filme – Labirinto do Brasil”, “Utopia e Barbárie” e
“Encontro com Milton Santos ou O Mundo Global Visto do Lado de Cá”, que
ganhou o Prêmio de Melhor Filme do Júri Popular no Festival de Brasília
de 2006.
Com tantos títulos no currículo, o cineasta lamenta o fato de que, 27
anos após o término do regime militar, ainda reste tanto a ser superado.
“O Brasil é um dos poucos países no mundo onde não houve uma Comissão
da Verdade e torturadores e canalhas continuam em liberdade. Cometeram
os crimes e ficou por isso mesmo. E muitas das vítimas até hoje não
foram encontradas. O Brasil ainda tem que acertar os ponteiros com a sua
história. A gente não pode continuar prisioneiro do passado”, explica.
Leia a seguir a entrevista completa com Silvio Tendler.
Por que o senhor resolveu participar da manifestação contra as comemorações do aniversário do golpe?
Em primeiro lugar, estranho seria não participar. Participar é normal e
uma coisa lógica para uma militância contra a ditadura. Em segundo
lugar, eu acho que a ditadura militar no Brasil foi um atraso de muitos
anos para o país, para a cultura e para a política. Eu até hoje combato
com todas as forças qualquer tentativa que seja favorável a ela.
Essa manifestação trará resultados?
Terá uma grande mobilização, muito maior do que a esperada. Eu acho que esse movimento pode se considerar já vitorioso.
Ainda é possível encontrar reflexos desse regime militar no Brasil e nós conseguimos superar todos os nossos fantasmas?
Eu acho que a gente superou muito pouco. O Brasil é um dos poucos países
no mundo onde não houve uma Comissão da Verdade e torturadores e
canalhas continuam em liberdade. Cometeram os crimes e ficou por isso
mesmo. E muitas das vítimas até hoje não foram encontradas. O Brasil
ainda tem que acertar os ponteiros com a sua história. A gente não pode
continuar prisioneiro do passado.
Como foi a relação do senhor com a censura federal e com o regime militar? E o senhor correu riscos de exílio ou de censura?
Eu tive de ficar clandestino numa época, mas consegui escapar, graças a
Deus. E tive filmes censurados pela ditadura, como “Jango”, por exemplo.
A relação com os censores era a pior possível. Na verdade, a gente teve
que encher o saco da ditadura também.
Você acredita que o cinema daquele período foi prejudicado e, de algum modo, projetos inovadores e importantes foram abortados?
Tudo foi prejudicado – cinema, teatro, tudo que era relacionado à arte,
tinha de explicar para a censura. Jornais tinham de ser reescritos,
piadas refeitas, porque imbecis determinavam o que a gente poderia falar
ou não.
O senhor lembra de algum exemplo de censura contigo?
Eu me lembro que, no filme que eu fiz sobre os Trapalhões, e o Millôr
Fernandes dizia que só não achava os Trapalhões tão engraçados quanto o
ministério Figueiredo e essa parte foi cortada.
Em função da ditadura, também havia uma autocensura por parte dos artistas? E por que a arte incomodava tanto?
A arte incomodava, porque era a grande força de resistência à ditadura.
Enquanto toda a sociedade estava aprisionada e os partidos políticos
tinham seus parlamentares cassados, os artistas e os jornalistas foram
prejudicados também.
O grosso da população entendia o que estava acontecendo?
A ditadura nunca foi vitoriosa pelo voto. Prova é a eleição de 1974. O MDB fez a maior parte dos senadores do Brasil.
O senhor acredita que as novas gerações sabem exatamente o que foi a ditadura?
As novas gerações sabem pouco, Poderiam saber bem mais. Ainda há forças
conservadoras que mandam nesse país e controlam a educação, a informação
e a cultura.
*Oterrordonordeste
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