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Ser de esquerda é não aceitar as injustiças, sejam elas quais forem, como um fato natural. É não calar diante da violação dos Direitos Humanos, em qualquer país e em qualquer momento. É questionar determinadas leis – porque a Justiça, muitas vezes, não anda de mãos dadas com o Direito; e entre um e outro, o homem de esquerda escolhe a justiça.
É ser guiado por uma permanente capacidade de se estarrecer e, com ela e por causa dela, não se acomodar, não se vender, não se deixar manipular ou seduzir pelo poder. É escolher o caminho mais justo, mesmo que seja cansativo demais, arriscado demais, distante demais. O homem de esquerda acredita que a vida pode e deve ser melhor e é isso, no fundo, que o move. Porque o homem de esquerda sabe que não é culpa do destino ou da vontade divina que um bilhão de pessoas, segundo dados da ONU, passe fome no mundo.
É caminhar junto aos marginalizados; é repartir aquilo que se tem e até mesmo aquilo que falta, sem sacrifício e sem estardalhaço. À direita, cabe a tarefa de dar o que sobra, em forma de esmola e de assistencialismo, com barulho e holofotes. Ser de esquerda é reconhecer no outro sua própria humanidade, principalmente quando o outro for completamente diferente. Os homens e mulheres de esquerda sabem que o destino de uma pessoa não deveria ser determinado por causa da raça, do gênero ou da religião.
Ser de esquerda é não se deixar seduzir pelo consumismo; é entender, como ensinou Milton Santos, que a felicidade está ancorada nos bens infinitos. É mergulhar, com alegria e inteireza, na luta por um mundo melhor e neste mergulho não se deixar contaminar pela arrogância, pelo rancor ou pela vaidade. É manter a coerência entre a palavra e a ação. É alimentar as dúvidas, para não cair no poço escuro das respostas fáceis, das certezas cômodas e caducas. Porém, o homem de esquerda não faz da dúvida o álibi para a indiferença. Ele nunca é indiferente. Ser de esquerda é saber que este “mundo melhor e possível” não se fará de punhos cerrados nem com gritos de guerra, mas será construído no dia-a-dia, nas pequenas e grandes obras e que, muitas vezes, é preciso comprar batalhas longas e desgastantes. Ser de esquerda é, na batalha, não usar os métodos do inimigo.
Fernando Evangelista

segunda-feira, março 26, 2012

O espírito da concórdia e da anistia política substituiu, entre nós, o desejo de justiça. Somos um país bonzinho ao invés de justo. Batemos em dependentes químicos dentro e fora da Universidade, nos bairros periféricos das grandes cidades e evitamos a prisão de banqueiros e empresários corruptos.

Ou o Brasil acaba com a saúva…


"A luta entre Carnaval e Quaresma", de Peter Brueghel (1559)
Por Izaías Almada.
O ditado ficou famoso no Brasil durante muitos anos: ou o Brasil acabava com a saúva ou a saúva acabava com o Brasil. A praga destruía terras e lavouras, dificultando o plantio e o progresso de muitos agricultores. Não raro, a imagem metaforizava-se e era usada, como faço agora, para indicar outros eventuais inimigos das terras brasileiras.
Muito embora na democracia representativa formal, essa que cinicamente dizem ser ‘o governo do povo, pelo povo e para o povo’, os partidos políticos organizados nunca representam a 100%, do ponto de vista ideológico e programático, aquilo que dizem ou que gostariam de representar dos extratos sociais que os apoiam. Ainda assim será possível afirmar com alguma segurança que até o golpe civil/militar de 1964, o quadro político partidário brasileiro apresentava alguma coerência na representatividade dos partidos políticos até então existentes.
PSD, UDN, PTB e outros menos votados como o PSP, o PDC e, sobretudo o PCB (dentro ou fora da legalidade) abrigavam em suas fileiras homens e mulheres que se identificavam com o pensamento menos ou mais conservador, com o fascismo ou com o comunismo ou o socialismo cristão ou ateu, o trabalhismo e por aí afora.
A partir de 1964, com o fechamento do Congresso e a dissolução dos partidos legalmente constituídos o país se dividiu entre os incentivadores e apoiantes da ditadura, os que tentaram resistir ao arbítrio e os indiferentes, estes sempre em maior número, infelizmente.
Os vinte e um anos de ditadura e o retorno a uma nova fase democrática, sustentada por interesses não muito claros sobre o que fazer após o período discricionário, acabaram por condenar o país ao registro de dezenas de partidos políticos, muitos deles sem qualquer representatividade. Convocou-se uma Assembleia Constituinte que deu ao Brasil sua nova Constituição com mais de 500 artigos, o que bem demonstra a colcha de retalhos a que se conseguiu chegar. Uma democracia com 500 artigos constitucionais e centenas de Medidas Provisórias com o passar dos anos. Imaginem uma democracia que se rege por MEDIDAS PROVISÓRIAS.
Partidos que se formam ao abrigo de interesses de grupos ou de personalidades discutíveis da nossa fauna de aventureiros, muitos deles incentivados pela impunidade, pelo apadrinhamento de caciques políticos e pelos “foros privilegiados” de pessoas protegidas pelos cargos eletivos e votos conquistados nas urnas. Partidos dos quais o cidadão comum mal conhece os programas. Partidos cuja teoria e a prática são separadas por um abismo de incompetência, falta de planejamento estratégico de uma política para o país e que, quando conseguida, se deve ao esforço e a dedicação de alguns de seus militantes mais atentos e audaciosos, para o bem e para o mal.
A ruptura ideológica provocada na esquerda a partir dos anos 1980, entre outros fatores, pela ascensão e imposição do neoliberalismo econômico, a queda do muro de Berlim e do leste europeu, o vertiginoso crescimento chinês e seu híbrido sistema capitalista/socialista, o desejo da América Latina em se livrar definitivamente do atraso e de suas oligarquias conservadoras, o fortalecimento dos BRICS, a chantagem nuclear e a ganância sobre o petróleo do Oriente Médio, o descaso com o continente africano, os bolsões mediáticos conservadores e fascistas espalhados pelo mundo, o fanatismo religioso – e poderíamos citar mais alguns – desestabilizou em todo o mundo a busca pela alternativa socialista.
O espírito da concórdia e da anistia política substituiu, entre nós, o desejo de justiça. Somos um país bonzinho ao invés de justo. Batemos em dependentes químicos dentro e fora da Universidade, nos bairros periféricos das grandes cidades e evitamos a prisão de banqueiros e empresários corruptos.
Só vamos às ruas para os desfiles de escolas de samba e para comemorarmos os campeonatos conquistados por nossos times de futebol. Ou o Brasil combate com eficácia a corrupção e a impunidade ou essas acabarão de vez com o país.
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Izaías Almada, mineiro de Belo Horizonte, escritor, dramaturgo e roteirista, é autor de Teatro de Arena (Coleção Pauliceia da Boitempo) e dos romances A metade arrancada de mim, O medo por trás das janelas e Florão da América. Publicou ainda dois livros de contos, Memórias emotivas e O vidente da Rua 46. Como ator, trabalhou no Teatro de Arena entre 1965 e 1968. Colabora para o Blog da Boitempo quinzenalmente, às quintas-feiras.

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