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Ser de esquerda é não aceitar as injustiças, sejam elas quais forem, como um fato natural. É não calar diante da violação dos Direitos Humanos, em qualquer país e em qualquer momento. É questionar determinadas leis – porque a Justiça, muitas vezes, não anda de mãos dadas com o Direito; e entre um e outro, o homem de esquerda escolhe a justiça.
É ser guiado por uma permanente capacidade de se estarrecer e, com ela e por causa dela, não se acomodar, não se vender, não se deixar manipular ou seduzir pelo poder. É escolher o caminho mais justo, mesmo que seja cansativo demais, arriscado demais, distante demais. O homem de esquerda acredita que a vida pode e deve ser melhor e é isso, no fundo, que o move. Porque o homem de esquerda sabe que não é culpa do destino ou da vontade divina que um bilhão de pessoas, segundo dados da ONU, passe fome no mundo.
É caminhar junto aos marginalizados; é repartir aquilo que se tem e até mesmo aquilo que falta, sem sacrifício e sem estardalhaço. À direita, cabe a tarefa de dar o que sobra, em forma de esmola e de assistencialismo, com barulho e holofotes. Ser de esquerda é reconhecer no outro sua própria humanidade, principalmente quando o outro for completamente diferente. Os homens e mulheres de esquerda sabem que o destino de uma pessoa não deveria ser determinado por causa da raça, do gênero ou da religião.
Ser de esquerda é não se deixar seduzir pelo consumismo; é entender, como ensinou Milton Santos, que a felicidade está ancorada nos bens infinitos. É mergulhar, com alegria e inteireza, na luta por um mundo melhor e neste mergulho não se deixar contaminar pela arrogância, pelo rancor ou pela vaidade. É manter a coerência entre a palavra e a ação. É alimentar as dúvidas, para não cair no poço escuro das respostas fáceis, das certezas cômodas e caducas. Porém, o homem de esquerda não faz da dúvida o álibi para a indiferença. Ele nunca é indiferente. Ser de esquerda é saber que este “mundo melhor e possível” não se fará de punhos cerrados nem com gritos de guerra, mas será construído no dia-a-dia, nas pequenas e grandes obras e que, muitas vezes, é preciso comprar batalhas longas e desgastantes. Ser de esquerda é, na batalha, não usar os métodos do inimigo.
Fernando Evangelista

sexta-feira, março 30, 2012

O império mundial da violência contra-insurgente

Sem dúvida que os caminhos da "democracia à maneira dos EUA" são sinistros e fatais. 

 


 


Através da Wikileaks tive acesso ao Manual de Campo 31-20-3 – Tácticas, técnicas e procedimentos de defesa interna para as Forças Especiais no estrangeiro , que é o terceiro de uma série produzida pelo Departamento de Defesa dos Estados Unidos para treinar e guiar a sua soldadesca nas tarefas intervencionistas e repressivas de âmbito mundial, sob a capa propagandística de ajudar outros governos "a libertar e proteger as suas sociedades da subversão, da desordem e da insurreição". O que seria de nós se os bons rapazes do tio Sam não estivessem sempre prontos para nos salvar do caos?


Recorda-se que os intelectuais do Pentágono inventaram uma quimera eufemística-política-ideológica a que eles chamam de "país anfitrião", isto é, governos subservientes aos EUA, que enfrentam situações de desestabilização de vários tipos, mas principalmente insurreições armadas e movimentos sociais que têm apoio popular, ante as quais recorrem à ajuda altruísta da contra-insurreição dos Rambos das forças especiais. Assim, o Manual de campo afirma: "Uma premissa básica da nossa política externa é que a segurança dos EUA, suas instituições e os seus valores (leia-se: o capitalismo) serão melhor preservados e fortalecidos fazendo parte de uma comunidade de nações realmente livres e independente (leia-se: sujeitas à órbita imperial). A este respeito, os Estados Unidos esforçam-se por incentivar outros países a fazer a sua parte na preservação dessa liberdade e independência (leia-se: o regime autoritário e renúncia de soberania). O objectivo é apoiar os interesses dos EUA através de um esforço conjunto (mais claro nem a água). Onde os interesses nacionais dos Estados Unidos estiverem envolvidos (leia-se: corporações, petróleo, territórios geo-estratégicos) os EUA fornecerão assistência militar e económica para complementar os esforços desses governos (leia-se: para manter a ordem estabelecida)". Em resumo, o propósito político do manual é defender os interesses imperialistas dos EUA através de aconselhamento e treino em contra-insurreição de tropas de cipaios do "país anfitrião".


A partir desta proposição essencial, o manual cobre com detalhe todos os aspectos da guerra de contra-insurreição, monitorizada pelos militares dos EUA: as actividades prévias à missão intervencionista, a análise preliminar, as "autorizações" para a formação, a instalação no "país anfitrião", programas de instrução das tropas, as operações tácticas, o controle das populações, as operações conjuntas, as actividades pós-missão, bem como anexos que vão desde questões legais (sic) de operações de informações, forças de auto-defesa civil (paramilitares), o estabelecimento de bases, técnica de minas, etc.


Como em outros manuais, este texto dá importância ao verniz culturalista que os colegas antropólogos dedicados à contra-insurreição aconselharam aos militares. Isso inclui uma espécie de manual com as regras básicas de etiqueta e bom comportamento, para que os nativos não se sintam diminuídos, manipulados ou discriminados pelos assessores gringos, subitamente transformados em poliglotas, corteses, cuidadosos do multiculturalismo, as diferenças de género, e guardiões das leis e dos hábitos democráticos que aprenderam recentemente no Iraque ou no Afeganistão, pelo baixo preço que essa educação tem custado em países destruídos e "terroristas" executados, torturados, desaparecidos ou mantidos em prisão.


O manual não negligencia o papel dos meios de comunicação de massa nos esforços de contra-insurreição, inclusive, é claro, o do Serviço de Informação dos EUA (USIA), ao qual é atribuída a tarefa de influenciar a opinião pública de outras nações em prol dos objectivos já identificados da política externa de seu governo, divulgando as suas acções, fazendo contra-propaganda às opiniões hostis para os EUA, coordenando operações psicológicas abertas sob a orientação do Departamento de Estado.


Outro aspecto do manual a destacar é a importância que atribui ao recrutamento e à integração de forças paramilitares ou irregulares, como parte integrante da luta contra-insurreccional, componente clandestina que temos denunciado várias vezes para o caso do México, que continua a ter um papel estratégico agora com a acção de grupos de narcotráfico que actuam como paramilitares.


Além disso, o manual é muito claro sobre o envolvimento directo de forças de combate norte-americanas, "se a situação do governo do país anfitrião se deteriorar a tal ponto que os interesses vitais dos EUA estejam em risco" e para "fazer uma mudança decisiva no conflito", o qual pode ser, não só de natureza contra-insurreccional, como também causado pelo narcotráfico. Este aspecto deve ser levado muito a sério para uma análise mais responsável da "situação mexicana".


A acção de esquadrões da morte ou grupos de matadores é discutida no texto comentado, e até mesmo descrita com precisão e cinismo: "Caçar-matar. As forças amigas podem usar esta técnica (sic) nas operações de consolidação... Elas usam essa técnica para caçar e destruir os inimigos isolados. A equipe de caçar-matar consiste em duas secções: os caçadores e os assassinos. Os caçadores devem estar ligeiramente equipados e altamente móveis. A sua missão é localizar as forças inimigas, enquanto mantêm uma comunicação constante com os executores, que estão alerta e prontos para a ação. Quando os caçadores fazem contacto, notificam os assassinos". Sem dúvida que os caminhos da "democracia à maneira dos EUA" são sinistros e fatais.



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  •  Gilberto Lopez y Rivas [*]




  •  O texto na íntegra do referido manual encontra-se em http://www.bidstrup.com/Army-Terrorism-Manual.pdf

    O original encontra-se em www.resumenlatinoamercano.org . Tradução de Guilherme Coelho.


    Este artigo encontra-se em http://resistir.info/ .
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