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Ser de esquerda é não aceitar as injustiças, sejam elas quais forem, como um fato natural. É não calar diante da violação dos Direitos Humanos, em qualquer país e em qualquer momento. É questionar determinadas leis – porque a Justiça, muitas vezes, não anda de mãos dadas com o Direito; e entre um e outro, o homem de esquerda escolhe a justiça.
É ser guiado por uma permanente capacidade de se estarrecer e, com ela e por causa dela, não se acomodar, não se vender, não se deixar manipular ou seduzir pelo poder. É escolher o caminho mais justo, mesmo que seja cansativo demais, arriscado demais, distante demais. O homem de esquerda acredita que a vida pode e deve ser melhor e é isso, no fundo, que o move. Porque o homem de esquerda sabe que não é culpa do destino ou da vontade divina que um bilhão de pessoas, segundo dados da ONU, passe fome no mundo.
É caminhar junto aos marginalizados; é repartir aquilo que se tem e até mesmo aquilo que falta, sem sacrifício e sem estardalhaço. À direita, cabe a tarefa de dar o que sobra, em forma de esmola e de assistencialismo, com barulho e holofotes. Ser de esquerda é reconhecer no outro sua própria humanidade, principalmente quando o outro for completamente diferente. Os homens e mulheres de esquerda sabem que o destino de uma pessoa não deveria ser determinado por causa da raça, do gênero ou da religião.
Ser de esquerda é não se deixar seduzir pelo consumismo; é entender, como ensinou Milton Santos, que a felicidade está ancorada nos bens infinitos. É mergulhar, com alegria e inteireza, na luta por um mundo melhor e neste mergulho não se deixar contaminar pela arrogância, pelo rancor ou pela vaidade. É manter a coerência entre a palavra e a ação. É alimentar as dúvidas, para não cair no poço escuro das respostas fáceis, das certezas cômodas e caducas. Porém, o homem de esquerda não faz da dúvida o álibi para a indiferença. Ele nunca é indiferente. Ser de esquerda é saber que este “mundo melhor e possível” não se fará de punhos cerrados nem com gritos de guerra, mas será construído no dia-a-dia, nas pequenas e grandes obras e que, muitas vezes, é preciso comprar batalhas longas e desgastantes. Ser de esquerda é, na batalha, não usar os métodos do inimigo.
Fernando Evangelista

sexta-feira, março 30, 2012

A greve geral e o pessimismo na Espanha

 

Ontem, durante a paralização geral (Crédito: Calabar/EFE)
Piada antiga, que me lembro de ter escutado adaptada ao aeroporto do Galeão no Rio de Janeiro e também no argentino Ezeiza. De qualquer maneira, reflete bem o espírito atual aqui nas terras de Cervantes.

Mário Benedetti costumava dizer que um pessimista é um otimista bem informado. Se é mesmo assim, todos os meus amigos espanhóis estão muito bem informados do que está acontecendo no país: não há espaço para a esperança. Os vizinhos franceses também parecem descrentes de qualquer futuro ensolarado. O diário Le Monde, em recente editorial, chamou a Espanha de “o grande problema da Europa”.

Ontem, dia 29, o país parou. Ou deveria ter parado. Os principais sindicatos espanhóis convocaram uma greve contra a Reforma Trabalhista aprovada pelo novo governo do Partido Popular. Eleito no final do ano passado e com maioria no Congresso para não precisar pactuar com os outros partidos, o conservador Mariano Rajoy rezou a cartilha da União Europeia e adotou, antes dos cem dias de governo – a famosa lua de mel entre eleito e eleitores –, uma mudança na legislação trabalhista que promove uma mudança brutal. Para uns, facilita a contração e flexibiliza os contratos de trabalho; para outros, facilita a demissão e precariza as relações de trabalho.

Os pontos mais polêmicos são que um trabalhador pode ser contratado e demitido dentro de 364 dias sem receber nada; e um empresário pode diminuir salários de seus empregados alegando “dificuldades financeiras”.

Contra essas medidas, milhares de espanhóis tomaram as ruas para protestar. O balanço da greve, como se pode imaginar, depende de quem o faz. Para o governo, a paralisação foi “moderada” e só reforçou a ideia de que a medida é dura, mas necessária – cerca de 22% dos espanhóis em idade de trabalho estão desempregados.

Os sindicatos dizem que a adesão (principalmente do setor de transporte e indústria) foi massiva e afirmam que foi apenas o primeiro passo: se o governo não sentar para negociar haverá mais protesto e mais greve.

As informações são de que em Madri e em Barcelona o apoio foi grande. Na capital catalã houve algo de violência. Coisa pouca se pensamos na situação do país e na quantidade de gente que se manifestou.

Aqui na pequena Salamanca, cidade de estudantes e aposentados, a rotina foi pouco alterada. No final do dia os sindicatos lideraram uma marcha. A quantidade de gente era considerável, mas as diferenças se notavam de longe. Cada sindicato em um canto da praça. Enquanto a Direita conduz o país com o discurso de que é preciso enxugar – o que significa na prática eliminar conquistas sociais – a Esquerda, em frangalhos, se estapeia pelo único pedaço de pão que tem nas mãos.

Comentei com uma amiga argentina que nunca vi uma manifestação tão pacífica e tranquila. Na verdade o que eu queria dizer era monótona. No Brasil, eu disse a ela, não se faz um ato sem música, sem um pouco de bom humor. Ela respondeu que na Argentina talvez não houvesse alegria, mas sim aplausos, cantos e panelaço.

Fato é que a marcha que acompanhei pareceria um velório. As pessoas quase cochichavam enquanto caminhavam. Vez ou outra alguém puxava um grito, que era repetido duas vezes por meia dúzia de pessoas e novamente o silêncio imperava. A impressão que tive foi de que estavam ali por solidariedade ou dever, mas não acreditavam que o gesto poderia fazer alguma diferença.

Gostaria de acreditar que por aqui seja diferente e os nascimentos se pareçam aos velórios. E que essa crise servirá para que um novo país surja. E que Benedetti pode ter se equivocado.

Ricardo Viel, jornalista, colunista do NR, especial de Salamanca, Espanha. 
*Notaderodapé

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