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Ser de esquerda é não aceitar as injustiças, sejam elas quais forem, como um fato natural. É não calar diante da violação dos Direitos Humanos, em qualquer país e em qualquer momento. É questionar determinadas leis – porque a Justiça, muitas vezes, não anda de mãos dadas com o Direito; e entre um e outro, o homem de esquerda escolhe a justiça.
É ser guiado por uma permanente capacidade de se estarrecer e, com ela e por causa dela, não se acomodar, não se vender, não se deixar manipular ou seduzir pelo poder. É escolher o caminho mais justo, mesmo que seja cansativo demais, arriscado demais, distante demais. O homem de esquerda acredita que a vida pode e deve ser melhor e é isso, no fundo, que o move. Porque o homem de esquerda sabe que não é culpa do destino ou da vontade divina que um bilhão de pessoas, segundo dados da ONU, passe fome no mundo.
É caminhar junto aos marginalizados; é repartir aquilo que se tem e até mesmo aquilo que falta, sem sacrifício e sem estardalhaço. À direita, cabe a tarefa de dar o que sobra, em forma de esmola e de assistencialismo, com barulho e holofotes. Ser de esquerda é reconhecer no outro sua própria humanidade, principalmente quando o outro for completamente diferente. Os homens e mulheres de esquerda sabem que o destino de uma pessoa não deveria ser determinado por causa da raça, do gênero ou da religião.
Ser de esquerda é não se deixar seduzir pelo consumismo; é entender, como ensinou Milton Santos, que a felicidade está ancorada nos bens infinitos. É mergulhar, com alegria e inteireza, na luta por um mundo melhor e neste mergulho não se deixar contaminar pela arrogância, pelo rancor ou pela vaidade. É manter a coerência entre a palavra e a ação. É alimentar as dúvidas, para não cair no poço escuro das respostas fáceis, das certezas cômodas e caducas. Porém, o homem de esquerda não faz da dúvida o álibi para a indiferença. Ele nunca é indiferente. Ser de esquerda é saber que este “mundo melhor e possível” não se fará de punhos cerrados nem com gritos de guerra, mas será construído no dia-a-dia, nas pequenas e grandes obras e que, muitas vezes, é preciso comprar batalhas longas e desgastantes. Ser de esquerda é, na batalha, não usar os métodos do inimigo.
Fernando Evangelista

segunda-feira, março 26, 2012

A terra é dos índios. E o carbono, é de quem?

Por US$ 120 milhões, empresa irlandesa compra direitos sobre créditos de carbono dos índios Munduruku, no Pará; contrato valeria por 30 anos. A Funai foi deixada de fora
O vídeo promocional da empresa Celestial Green Ventures – “verde celestial”, em português – traz imagens de uma reunião em uma localidade não identificada, na Amazônia. Em meio a fotos, com fundo musical, o irlandês Ciaran Kelly, CEO, explica: “Nós sentamos com a comunidade local, há uma discussão muito aberta, dizemos o que temos que fazer, quais são as suas responsabilidades e as nossas. Se concordamos, prosseguimos”.
O português João Borges de Andrade, chefe de operações no Brasil, aparece em fotos rodeado pela população local. “Eu gosto do contato com essas pessoas, elas são muito gentis e muito amigáveis. É emocionante”.
A Celestial Green atua em um novo setor que se fortalece nos recônditos da Amazônia brasileira: a venda créditos de carbono com base em desmatamento evitado, focado nas florestas. Por estes créditos, a empresa tem procurado indígenas de diversas etnias e teria assinado contratos com os Parintintin, do Amazonas, e Karipuna do Amapá, segundo as suas páginas no twitter e facebook.
No dia 22 de setembro do ano passado, o mesmo João Borges, da Celestial Green, foi a uma reunião a respeito de um contrato de crédito de carbono com os índios Munduruku, na Câmara Municipal de Jacareacanga, no Pará. Assim que ficou sabendo, a missionária Izeldeti Almeida da Silva, que trabalha há dois anos com os Munduruku, correu para lá: “Fui pega de surpresa. Depois falei com um dos líderes e ele disse que fazia tempo que estavam negociando com um grupo pequeno de lideranças”.
Quando chegou à sala de reunião, diz a freira, o espaço estava cheio. Estavam todos lá: caciques, cacicas, mulheres e crianças. Muitos vestidos para guerra: pintados, com arcos e roupas tradicionais. A reunião foi fotografada pelos dois lados. “Os guerreiros e as guerreiras estavam muito brabos com o pessoal que foram falar lá em cima”, lembra o cacique Osmarino. “As guerreiras quase bateram neles”.
Segundo Izeldeti, o representante da empresa mal conseguiu falar. “Eles gritavam em voz forte que estavam cansados de ser enganados. Disseram: ‘nós sabemos cuidar da floresta, não precisa de ajuda’. As mulheres guerreiras ficaram na fila e cada uma foi falando em Munduruku. Meteram a flecha perto do coração, passavam no pescoço. O representante da empresa disse que não entendia a língua, mas que não tava gostando porque era sinal de ameaça”. O contrato, no entanto, acabou sendo assinado naquele mesmo dia – tanto a empresa quanto os indígenas confirmam.
De acordo com Izeldeti e Osmarino, porém, o contrato foi assinado contra a vontade da maioria da população Munduruku.

Os donos do carbono

Totalmente desconhecida no Brasil, a Celestial Green, sediada em Dublin, se declara proprietária dos direitos aos créditos de carbono de 20 milhões de hectares na Amazônia brasileira – o que equivale aos territórios da Suíça e da Áustria somados. Juntos, os 17 projetos da empresa na região teriam potencial para gerar mais de 6 bilhões de toneladas de créditos de carbono, segundo a própria empresa.
Os créditos por desmatamento evitado, ou REDD (Redução de Emissões por Desmatamento e Degradação florestal), não são “oficiais”, ou seja, não podem ser vendidos nos mercados regulamentados pelo protocolo de Kyoto. Este protocolo só aceita, por exemplo, a venda de créditos por uma empresa de um país pobre que troque sua tecnologia por uma menos poluente; os créditos que ela deixará de emitir podem ser vendidos.
No caso das florestas, não há um mecanismo oficial que permita isso.
Por isso, os créditos de carbono referentes a florestas são negociados em um mercado voluntário, que não é regulado; empresas como a Landrover, o HSBC, a Google e a DuPont compram esses créditos para sinalizar que estão fazendo algo de bom pelo meio ambiente. O mercado é muito menor do que aquele resultante de projetos previstos por Kyoto: em 2010, o valor negociado foi de cerca de 400 milhões de dólares contra 140 bilhões de dólares do mercado “oficial”.
Na esteira da corrida pelo invisível – créditos de carbono que deixaria de ser emitido por desmatamento – a irlandesa Celestial Green se adiantou: realizou diversas negociações rápidas e à margem de qualquer órgão federal. A empresa promete avaliar o potencial de créditos de carbono depois; mas já garante sua posse sobre eles, por contrato, e o acesso às terras para avaliação.

Os Munduruku

A proposta aos Munduruku foi feita em junho do ano passado. Segundo relatos dos indígenas, a oferta dividiu o grupo. A Celestial Green oferecia 4 milhões de dólares por ano, ao longo de 30 anos, pelos créditos de carbono dos 2,3 milhões de hectares da terra indígena – num total máximo de US$120 milhões. Em troca, teria todos os direitos sobre os créditos de carbono e mais “outros certificados e benefícios” a serem obtidos “com a biodiversidade”.
“Primeiro, ele [representante da Celestial Green] falou que o projeto é para defender os povos indígenas. Disse que não podia mais mexer na terra, nem branco nem indígena. Quando ouvi essa conversa, era bom”, conta Osmarino Manhoari Munduruku, cacique de uma das 111 aldeias onde vivem mais de 6 mil Munduruku. “Depois, ele mandou o papel para associação. Nós vimos que, onde esse projeto tá, não pode fazer roça, nem caçar, nem pescar. Hoje estamos acostumados de plantar mandioca, batata, cana, batata doce, banana. A gente pesca, caça, tira madeira quando precisa. Mas eles dizem que não podia mais, eles mesmos iam dar o dinheiro para comprar os alimentos. E os indígenas não pode mais fazer nada, nada, nada. Aí a maioria achou que não é certo”.
A Pública teve acesso ao texto do contrato enviado por lideranças indígenas ao CIMI, Conselho Indigenista Missionário, depois das primeiras gestões da empresa. O documento revela claramente as linhas gerais buscadas pela empresa no acordo.
“Este contrato concede à empresa o direito de realizar todas as análises e estudos técnicos, incluindo acesso sem restrições a toda a área, aos seus agentes e representantes”, diz o documento. Se as áreas negociadas não se adequassem à captação de carbono, o contrato seria invalidado. De qualquer maneira, a empresa teria assegurado o direito de fazer um levantamento detalhado de toda a área dos Munduruku.
O contrato vetava qualquer modificação no ambiente: “O proprietário compromete-se a não efetuar quaisquer obras na área do contrato, ou outra atividade que venha a alterar a qualidade de carbono captado ou que contribua de alguma forma para afetar negativamente a imagem da empresa ou do projeto”.
Outro ponto polêmico garantia à empresa “direitos sobre os créditos de carbono obtidos, com quaisquer metodologias utilizadas”, além de “todos os direitos de quaisquer certificados ou benefícios que se venha a obter através da biodiversidade desta área”.
Além disso, os Munduruku deixariam de receber o pagamento caso não submetessem suas atividades ao crivo da Celestial Green: “O proprietário compromete-se a manter a propriedade em conformidade com as metodologias estabelecidas pela empresa”. O valor, contido num anexo, chama a atenção: 4 milhões de dólares por ano, chegando a um valor total de 120 milhões de dólares.
Segundo especialistas consultados pela reportagem, dificilmente um contrato assim teria validade legal. Primeiro, porque parte de princípios jurídicos errados. O texto analisado se refere aos Mundurukus como “proprietários”, quando as terras indígenas pertencem à União. Depois, porque viola princípios de exclusividade de uso dada aos indígenas em terra homologada. “É totalmente ilegal. A empresa se coloca como dona dos recursos naturais e se atribui o direito de entrar quando bem entender para fiscalizar. Em algumas cláusulas, ela quer fazer o papel do Estado”, afirma João Camerini, advogado da ONG Terra de Direitos.
Para o antropólogo Miguel Aparicio, coordenador do Programa Operação Amazônia Nativa, o caso dos Munduruku deve servir de alerta para o governo. “É uma manifestação aberta da postura dos ‘biopiratas do carbono’. As cláusulas ignoram o direito indígena de usufruto exclusivo sobre suas terras, reconhecido pela Constituição Federal. O contrato proposto merece a intervenção urgente do poder público brasileiro”.
Como o mercado de crédito de carbono é novo, o governo brasileiro ainda não criou parâmetros para regular essas negociações. Mas, dada a urgência da questão, 15 entidades e movimentos ligados às populações indígenas elaboraram uma carta de Princípios e Critérios Socioambientais de REDD. Alguns desses princípios são a participação de toda a população afetada no processo de decisão e a transparência sobre os detalhes do contrato e do mercado em que estão entrando.
O caso dos Munduruku foi denunciado em setembro no ano passado no blog da ativista ambiental Telma Monteiro. O procurador Cláudio Henrique Dias, do Ministério Público Federal de Santarém, abriu um procedimento administrativo para investigar o caso. Ele pediu a cópia do contrato à Associação Pussuru, que representa os Munduruku, e acionou a Funai.
A Funai não quis se pronunciar nessa reportagem mas prometeu uma entrevista com o presidente Márcio Meira para a semana que vem.

Corretores de carbono, xeretas, piratas?

Antônio José do Nascimento Fernandes, mestre em Química pela Universidade Federal do Amazonas e conselheiro-secretário do Instituto Amazônia Livre, pensa diferente. O Instituto mantém um projeto com a Celestial Green de “monitoramento e levantamento dos dados das florestas, das comunidades, do que pode ser desmatado daqui a 20, 30 anos”.
Para ele, que trabalha com a empresa há cerca de um ano, o contrato assinado com os Munduruku não limita o uso da terra pelos índios: “A única coisa que fala no contrato é que eles [os índios] devem preservar os recursos e que todo uso deve ser informado”. E como isso será informado? Segundo Antônio, o plano é elaborar um conselho formado “pelas instituições financeiras, pelos representantes indígenas e pela Instituição Amazônia Livre”, para deliberar sobre isso. “Não é de cima para baixo. É um projeto de igual pra igual. É uma troca mútua, porque eles consomem, mas sabem que [os recursos] podem acabar”.
A Celestial Green não é exatamente uma empresa transparente. O site da empresa, que está em construção há alguns meses, não traz mais do que uma descrição genérica, embora declare que há três anos a empresa vem negociando com prefeituras, proprietários de terra e tribos indígenas da Amazônia.
Os objetivos declarados dos projetos da Celestial, comandada pelo irlandês Ciaran Kelly, são: “alcançar lucratividade para todos os investidores”, “proteger áreas da floresta em risco dos efeitos devastadores da extração ilegal de madeira, mineração ilegal e queimadas”, “proteger a biodiversidade presente nessas áreas e conduzir atividades importantes de coleta de dados”, além de “fornecer empregos, educação e cuidado médico básico para os habitantes das áreas dos projetos”.
Segundo o site, os projetos estão em negociação com investidores no Panamá, Ásia, Vietnã, Malásia, Coreia do Sul e China.
A parte que promete ao visitante “descubra mais sobre nossos projetos” está em construção. Não há mais detalhes.
Em 27 de junho de 2011, a empresa anunciou vagamente ter “aumentado a sua base de contratos na Amazônia brasileira”. “A Celestial Green Ventures PLC aumentou o tamanho de sua base de terras contratadas em 1.203.226 de hectares (um aumento de 6,5%) com a assinatura de 5 novos contratos garantindo à empresa a produção de qualquer tipo de carbono nestas terras pelos próximos 30 anos”. Segundo o release, a empresa se listou na bolsa Deutsche Boerse, em Frankfurt, com a missão de dobrar a área contratada para 40 milhões de hectares (duas Suíças, duas Áustrias).
Mais recentemente, em fevereiro deste ano, a companhia anunciou pelo seu twitter novos contratos com as prefeituras de São Gabriel da Cachoeira, Boca do Acre e Apuí, no Amazonas, totalizando 11 milhões de hectares cujo carbono também ficará à sua disposição.

O projeto “Borba”

A empresa tem um caso que é apresentado como bem-sucedido: o chamado “projeto Borba”. O projeto, acordado com o prefeito de Borba, município de 20 mil habitantes no sul do Amazonas em 2010, não teve até hoje os créditos validados – uma empresa escocesa, a Ecometrica, está ainda desenvolvendo uma metodologia para medir e validar os créditos gerados, ou o tanto de carbono que não será jogado no ar pela proteção das áreas. “Um comunicado oficial será emitido na hora certa”, limita-se a dizer a empresa.
Segundo um release que foi apagado do site, o projeto Borba consistiu na assinatura de um contrato com a prefeitura do município, intermediado pela ONG FEAMA – Fundação Ecológica de Amazônia – ONG capitaneada pelo brasileiro Romeu Cordeiro da Silva. A FEAMA não tem site na internet, nem telefone de contato.
O acordo dava direitos a créditos de uma área de 1.333.578 hectares, cerca de 1/3 do município.
Procurados pela Pública, nem o secretário de administração da prefeitura, Ricardo José Sá de Souza, nem o secretário de Meio Ambiente sabiam do acordo.
Finalmente a Pública conseguiu conversar com o prefeito Antonio José Muniz Cavalcante, que não explicou por que seus secretários não foram informados do caso. “A Celestial Green apareceu, falou com a associação de municípios. Como temos uma reserva municipal, fizemos um contrato que dá direito de eles negociarem o carbono nesta área. Vieram no município, fizeram um projeto e coletaram bastante material. Mas não tivemos benefícios. Esse contrato já está até quebrado, porque o prazo deve estar vencido. E como não tivemos retorno, pelo menos no que propuseram a nos pagar, nada foi desembolsado”.
Apesar dos créditos de Borba não terem sido validados – e, aparentemente à revelia da prefeitura – a Industry RE, companhia britânica de investimentos anunciou em 7 de junho de 2011 a compra de 1 milhão desses créditos para serem revendidos a outras empresas. A empresa afirma, numa brochura, que vai cobrar 10 libras por cada crédito de carbono.
A Industry RE tem um projeto de eficiência energética para o grupo Guardian Media Group, que detém o jornal britânico Guardian. Além disso, mantém o simpático site My Tree Frog, no qual cada pessoa pode comprar créditos de carbono de onde quiser, “anulando” assim as suas próprias pegadas ecológicas.
Segundo o diretor Ian Hamilton afirmou no início de março ao site econômico Point Carbon News, os créditos de Borba seriam usados para aliviar as emissões de uma subsidiária da Coca-cola no Oriente Médio e uma unidade da gigante eletrônica japonesa Canon.
Uma brochura da IndustryRE que tenta vender esses créditos de Borba afirma que a Celestial Green tem acesso a uma área de 18.192.193 de hectares por 30 anos, incluindo acordo com diversas prefeituras no estado do Amazonas. Os maiores terrenos estão no estado do Amazonas: 2.954.902 hectares em Barcelos, 1.066.862 hectares em Caruari; 1.761.189 hectares em Manicoré, e 1.440.585 hectares em Canutama – além de Borba, claro.
Segundo o documento, os projetos da Industry RE não focam apenas os créditos de carbono, mas pretendem “expandir os parâmetros” para incluir o desenvolvimento de energia e água limpa, reflorestamento, manejo sustentável de florestas e conservação.
Além disso, a Celestial Green possui 10 mil hectares em Rondônia, terra adquirida do Capital First Merchant Bank Ltda. Mas isso é outra história.

De vinis e ouro à sonhada preservação do meio ambiente

O “projeto Rondônia” é o mais antigo da Celestial Green Ventures, aliás Celestial Green Investments (CGI), uma empresa de investimentos sediada em Kent, na Inglaterra, que tem como CEO o mesmo irlandês Ciaran Kelly.
O projeto baseia-se em uma área de 10 mil hectares em Rondônia e foi detalhadamente descrito em um documento – registrado junto ao Security and Exchange Comission, comissão financeira dos Estados Unidos – de compra de ações da CGI pela empresa de investimento Apollo Capital, com sede em Miami – da qual Ciaran Kelly era um dos diretores.
Antes de investir em negócios sustentáveis, a Apollo Capital chegou a prensar vinis e copiar CDs e DVDs. No seu site registra investimentos milionários em bonds do banco central da Venezuela, da Petrobras e também em exploração de quartzo na Bahia.
Essa área em Rondônia, localizada no município de Machadinho d’Oeste, é adjacente à terra indígena dos Cinta Larga e foi comprada pela Apollo Capital da empresa brasileira Capital First Merchant Bank Ltda junto com a concessão para exploração de ouro e diamantes, fato celebrado em seu site.
Meses depois, Apollo e Celestial Green mudaram de idéia: decidiram não fazer a mineração da área e vender os créditos de carbono não emitido por não ter explorado o local. “A Celestial Green acredita que o desenvolvimento de operações de mineração teriam um impacto ecológico catastrófico”, diz o documento de registro. Créditos de carbono do “projeto Rondônia” estão disponíveis para os usuários do site Tree Frog. Quem quiser aliviar sua pegada ecológica, é só clicar.

“Our people”

Nem mesmo a equipe que compõe a empresa consta do site da Celestial Green. Quando a Pública começou a investigar a CG, a empresa listava 29 pessoas como sua equipe, incluindo diversos brasileiros. Dois dias depois, a lista sumiu.
A Pública tentou entrar em contato com alguns desses supostos funcionários. Na tarde de quinta-feira, conversou com o professor Eder Zanetti, doutorando em manejo florestal pela UFPR, um consultor experiente em projetos de crédito de carbono. Eder foi responsável pela área de mudanças climáticas globais e serviços ambientais das florestas no Centro Nacional de Pesquisas Florestais da Embrapa.
Ao celular, perguntado sobre suas relações com a empresa irlandesa, ele se mostrou surpreso: “Não tenho conhecimento, não. Nunca vi nem falar esse nome [Celestial Green]”. Segundo ele, a sua consultoria foi procurada por “diversas empresas internacionais querendo fazer negócio com terra indígena aqui no Brasil”. A procura, nos últimos dois anos, tem aumentado. “Mas não estou fazendo consultoria para nenhum projeto no momento”.
Mais tarde, por email, Zanetti confirmou: “De fato não consegui entender a natureza do meu envolvimento com a referida empresa. Eu não saberia dizer nem se ela é séria ou não, porque não consegui navegar no site para ver quem são os proprietários. Definitivamente não sou funcionário deles”.
Outro brasileiro listado no site explicou que atua como consultor em um projeto da CG. Vivaldo Campbell de Araújo foi delegado do IBDF – atual Ibama – de 1971 a 1978. Ele conta que não sabia que seu nome estava no site, mas havia pedido reserva. Não queria ser listado como membro da empresa. “Porque você sabe, tem muita especulação”. Segundo ele, faz cerca de oito meses que ele é consultor de um projeto de manejo sustentável que pretende “mostrar as alternativas de manter o carbono, mas alterar as florestas pelas espécies mais valiosas”.

Contrato questionado

A Pública procurou repetidamente a Celestial Green. Por telefone, a funcionária Paula Cofré, brasileira nascida no Chile, explicou que o CEO Ciaran Kelly não dá entrevistas pelo telefone – apenas por email. Formada em jornalismo pela PUC do Paraná, Paula trabalha há cerca de 6 meses na empresa. Foi contratada inicialmente como secretária e hoje é “administradora sênior e assistente pessoal do CEO”. Segundo ela, o representante português João Borges não costuma dar entrevistas.
Paula confirmou a assinatura do contrato entre a Celestial Green e os Mundukuru e disse que a empresa não conta com um escritório no Brasil. “Temos pessoas trabalhando em Manaus, mas ainda não abriram (um escritório)”. A Pública enviou a minuta de contrato obtida pelo CIMI, pedindo que a empresa confirmasse se havia alguma diferença quanto ao contrato assinado. “Eu sei que eles não costumam dar detalhes sobre os contratos, tipo valor, essas coisas”, explicou Paula.
Finalmente o CEO respondeu – sem responder: “Podemos afirmar categoricamente que os contratos da CGV PLC têm sempre o cabeçalho com os detalhes da empresa, são assinados em cada página por um representante da empresa, são autenticados e também contêm um carimbo da companhia”.
Pouco depois, Antônio José do Nascimento Fernandes, do Instituto Amazônia Livre, uma ONG que trabalha com a Celestial Green em alguns projetos, ligou para a Pública e leu o anexo 1 do contrato, confirmando que se trata do mesmo texto – inclusive reafirmando os valores acordados.
Na sua entrevista em papel timbrado, Ciaran afirmou que “a Celestial Green Ventures não pode divulgar nenhum acordo financeiro que tenha sido feito com nossos parceiros”. Mas prometeu: “no final de julho de 2012, nosso primeiro ano completo de finanças será apresentado”.
A Pública vai esperar pra ver.
~ o ~
FUNAI: “Os contratos com indígenas não têm validade”
Márcio Meira, presidente da Funai, fala sobre assédio de empresas internacionais para compra de crédito de carbono em terra indígena. E explica a ausência da Funai no caso do contrato assinado pelos Munduruku
Em setembro do ano passado, os líderes da população Munduruku assinaram um contrato leonino com uma empresa irlandesa, transferindo os direitos aos créditos de carbono da reserva por 120 milhões de dólares. Pelo documento, a empresa ganharia acesso restrito às suas terras e os índios ficariam impedidos de dispor de seu uso sem a autorização prévia da compradora.
O contrato entre a Organização do Povo Munduruku e a Celestial Green foi assinado sem a presença de representante da Funai (Fundação Nacional do Índio), responsável por defender os direitos dos índios e, portanto, por acompanhar negociações comerciais que possam colocá-los em risco. A Pública trouxe a história à tona no dia 9 de março deste ano.
A Funai, no entanto, tomou conhecimento da transação no início de 2011, quando encaminhou o contrato à apreciação da Advocacia Geral da União (AGU). Em seu parecer, a AGU considera o contrato ilegal. Tese que vale para todos os contratos de crédito de carbono em terra indígena no Brasil.
O parecer, ainda não conclusivo, deixa em aberto a possibilidade que outros órgãos da União encontrem meios de regularizar futuros contratos com os indígenas. O presidente da Funai, Márcio Meira, é contra as negociações atuais, como a que envolveu os Munduruku. Mas defende que o comércio de crédito carbono funcione como meio de remunerar os indígenas pela preservação das florestas depois que o mercado for regulamentado no país.
Leia a entrevista:
Como a Funai avaliou o teor do contrato assinado entre os Munduruku e a Celestial Green?
Desde que tivemos o primeiro contrato desse tipo, há um ano e meio, nossa avaliação é de preocupação e alerta em relação ao assédio dessas empresas aos indígenas. Procuramos a assessoria especializada da Funai, que é ligada à Advocacia Geral da União, para que analisasse e, se necessário, tomasse medidas judiciais. Tomamos medidas educativas e de precaução. Fizemos uma cartilha distribuída às comunidades indígenas alertando para contratos que podem ser danosos a elas.
Por que a Funai não alertou os Munduruku sobre a ilegalidade do contrato?
A Funai não estava lá, naquele momento. Ficamos sabendo depois da reunião que os Munduruku tiveram com a empresa. Na maioria dos contratos desse tipo, a gente só toma conhecimento depois.
A Funai não sabia da negociação desde o início de 2011?
A Funai sabe que há negociações em curso, alguns indígenas informam. A gente passa a orientação para terem cuidado em relação a esse assédio, dizemos para não assinar o contrato. Mesmo assim alguns contratos são assinados. Mas eles não têm validade jurídica. Nós alertamos as empresas: esses créditos que estão no mercado voluntário não têm validade.
A informação que temos dos Munduruku é que não houve contato e orientação da Funai.
Isso não é verdade, a Funai está em contato permanente com todos os povos indígenas do Brasil. Temos 36 regionais, quase 300 coordenações técnicas locais, o próprio chefe da coordenação técnica na área é um indígena Munduruku. Ele é a própria Funai.
Mas se a Funai está tão próxima, como não sabia que o contrato seria assinado?
A Funai sabe de reuniões, mas não há como saber em detalhes o que acontece. Principalmente a sede da Funai. Eu não tomei conhecimento dessa reunião, a não ser depois que aconteceu.
Ambientalistas e movimentos ligados às populações indígenas dizem que a Funai está sendo omissa na orientação dos indígenas assediados por essas empresas. Como o senhor responde a essa crítica?
Não concordo, a Funai tem sido ativa, não tem poupado esforços. Essa cartilha que produzimos para alertar sobre os riscos foi feita com movimentos indígenas. Mas é um assédio muito forte. Mexe com recursos altos o que mobiliza os interesses.
Qual é o teor dos outros contratos que a Funai teve conhecimento?
Eles são parecidos. Temos cerca de 30 contratos, todos muito semelhantes e preocupantes porque não têm base jurídica. A Celestial Green é a que mais fez contratos com indígenas, são mais de dez.
O que vai acontecer com os outros contratos que já foram assinados?
Os contratos com indígenas não têm validade jurídica.
Eles também avançam sobre o direito dos indígenas de uso da terra?
Podem ter alguma cláusula que fere o direito territorial. De qualquer forma, esses contratos não têm validade jurídica. Terras indígenas são propriedade da União, indígenas tem usufruto exclusivo. No caso, o comércio de créditos de carbono não está regulamentado pela legislação brasileira e não é possível ser feito em terras indígenas no momento. Por isso a Funai tem defendido que, o mais rápido possível, seja feita uma legislação regulamentando essa questão.
A Funai já intermediou algum contrato de créditos de carbono?
A Funai não intermedia contratos dessa natureza porque eles são ilegais. Tomamos conhecimento de contratos depois de assinados. O único caso foi o povo Surui que nos procurou dizendo que tinha interesse em assinar e pediu orientação da Funai. Demos a orientação que tem que dar para eles terem cuidado.
A Funai acompanhou o contrato?
A Funai tem acompanhado as manifestações dos Surui para que, se eventualmente assinarem o contrato, não caiam em armadilhas. Pode ser que já tenham assinado, mas eu não tenho essa informação.
A Advocacia Geral da União recomenda que os contratos de crédito carbono devem ser intermediados pela União. A Funai vai passar a desempenhar esse papel?
Essa é uma missão da Funai: proteção dos direitos dos indígenas em qualquer tema. Em qualquer política pública em relação aos direitos indígenas, a Funai tem que participar. Mas esse caso depende da regulamentação.
O senhor anunciou a Bolsa Verde como um incentivo para que os indígenas não cedam ao assédio financeiro. Mas R$ 100 mensais fazem frente aos milhões de dólares oferecidos pelas empresas estrangeiras?
O serviço que os indígenas prestam à humanidade na preservação da floresta tropical tem que ser reconhecido. A Funai fez isso quando regulamentou um auxílio aos indígenas no trabalho de monitoramento territorial. Mas temos é que olhar para frente e buscar um mecanismo de crédito de carbono. É uma boa ideia, mas não pode ser utilizada para os interesses econômicos apenas de terceiros. Sendo regulamentado, esse é o principal fator que pode contribuir para beneficiar os indígenas.
Circula a informação pelos jornais de que a Funai está funcionando em ritmo lento desde que o senhor pediu demissão. É verdade?
Sobre esse assunto eu não falo, isso é fofoca. Estou trabalhando aqui todo dia, incansavelmente, desde que cheguei há cinco anos.
Natalia Viana, Ana Aranha, Jessica Mota e Carlos Arthur França
No Pública

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