A ÉTICA E A RETIDÃO
Talvez nos conviesse, ao tratar da corrupção política, substituir o vocábulo “ética” por substantivos mais singelos, como retidão e correção. Ética
é conceito filosófico profundo, de definição difícil, e que se
desgastou no abuso de seu emprego. É uma idéia que está acima do exame
dos escândalos atuais, que não merecem nem mesmo serem qualificados como
aéticos. Apelar para a ética, nesses casos, é como usar uma balança de
ouro para pesar cascalho sujo. Em lugar de recorrer à ética, tratemos
apenas do Código Penal.
Em todos os tempos
humanos – esta é a âncora recorrente – houve peculatários. E em todos os
tempos humanos eles foram combatidos, mesmo quando os larápios se
encontravam à frente dos estados. As sublevações populares, quaisquer
fossem suas bandeiras, sempre se fizeram contra os usurpadores do bem
público.
Em todos os tempos houve – de acordo
com os historiadores – organizações criminosas, de quadrilhas de
salteadores de estradas a ocupantes do poder nacional. Daí a famosa
comparação de Santo Agostinho: a diferença entre os grupos de bandidos
organizados e os estados é o exercício da justiça. No estado em que não
prevalece a justiça, os governantes não diferem dos bandidos. No
interior dos estados, como no interior de qualquer comunidade, as duas
realidades – a busca da justiça e a ação criminosa – coexistem e se
combatem. Até mesmo no interior das famílias há os que procedem
corretamente e os pérfidos.
O povo brasileiro
tem sido submetido, mais do que outros povos, ao assalto quase
continuado aos bens comuns. E o maior dano é o causado à sua dignidade. A
dignidade ou, em termos mais simples, a vergonha, é um atributo das
pessoas honradas, como lembra Lupicínio Rodrigues em sua composição mais
conhecida, em que a vingança contra o opróbrio é recomendada. Cidadãos
de paises que não se destacam pela retidão de seus homens públicos –
como é o caso da Itália e da Espanha, entre outros – se esbaldam em
comentar as notícias do Brasil, por meio da rede internacional de
computadores: lá os ladrões são levados aos tribunais; aqui costumam
escafeder-se pelos corredores dos entraves processuais.
Talvez
Agostinho tenha razão, se pensarmos no que foi a política de
privatizações do governo soi-disant social-democrata, que nos
infelicitou entre 1995 e 2003. Podem dar-nos todas as explicações
técnicas e econômicas, dentro da famosa “ética do capitalismo”, para
justificar a entrega das empresas estatais ao setor privado, mas não
houve nada de honrado nessa decisão. Ao contrário: a privatização só
privilegiou alguns empresários, brasileiros e estrangeiros, além de
fazer, de alguns gestores do processo, homens subitamente beneficiados
por posições destacadas e altamente remuneradas nas organizações
compradoras e nas organizações financeiras que com elas se associaram.
Há,
como em todas as outras organizações criminosas, os que agem com
cautela jurídica e os lambões. Essa construtora envolvida, se nos
ativermos a uma conversação telefônica entre seu presidente e o Sr.
Carlos Cachoeira, não soube como operar no sofisticado sistema. Tampouco
souberam precaver-se o senador Torres e o vitorioso empresário
tentacular Carlos Cachoeira. Foram, além de tudo, lambões, ao se
envolverem com personagens vulgares do millieu, como o araponga Dadá.
A
vulnerabilidade de Brasília à ação dos corruptores nos leva a uma
constatação constrangedora: a autonomia da capital da República foi a
mais infeliz das decisões constitucionais de 1988. A esse erro, que
violou criminosamente o pacto federativo de 1891, somaram-se outros,
como os cometidos pelo açodado afã “modernizador” do demagogo e
moralista de fachada Fernando Collor, ao alienar as residências
funcionais da capital da República. Até então, os servidores de Brasília
eram recrutados em todo o país, e servir ao poder central constituía
uma vitória do mérito. Sem essa modesta vantagem – a garantia de moradia
por um aluguel moderado – a transferência para o planalto central
perdeu seu grande atrativo.
A administração
pública, tanto da União, quanto do Distrito Federal, se viu obrigada a
recrutar quem se apresentasse. Os cargos comissionados foram, de modo
geral, preenchidos pelos atores políticos, que atendiam e atendem à
pressão de seus eleitores. Por outro lado, o achatamento dos vencimentos
dos servidores – a não ser em carreiras privilegiadas – afasta os mais
bem dotados para as atividades privadas, de remuneração muito mais
atraente.
Antes de 1988, Brasília era
administrada diretamente pelo poder central, mas seus prefeitos
(aquinhoados pelo governo militar com o título de governadores) tinham
que ser aprovados pelo Senado - em nome de toda a Federação – e estavam
submetidos ao controle de um comitê especial da mesma casa legislativa.
Com a autonomia, Brasília passou a ser um estado como os outros -
sujeito à pressão de suas oligarquias. E como a população, em sua
maioria, é pressionada pela miséria, tende a votar com a emoção,
seguindo os demagogos de turno. Por isso, a câmara de vereadores, que se
denomina distrital, mas tem a arrogância de votar como se fosse o
plenário das Nações Unidas, é dominada por homens como os que foram
filmados pelo ex-delegado de polícia Durval Barbosa, ao receber dinheiro
vivo de suas próprias mãos, a fim de votar de acordo com os interesses
do governador de Brasília de então.
E há outros
inconvenientes. Quando a Comissão Arinos discutia a questão da
autonomia, no anteprojeto de Constituição que elaborava, Hélio Jaguaribe
lembrou outra grave inconveniência da medida. Argumentou que, no caso
em que o governador local fosse inimigo do Presidente da República,
seria fácil colocar caminhões fétidos de lixo na praça dos Três Poderes,
quando o Brasil estivesse recebendo a visita de um chefe de estado
estrangeiro, para a desmoralização nacional diante do mundo. Isso sem
falar no esbulho dos outros estados da federação, que perderam, de fato,
a soberania sobre a sua capital.
A solução
radical terá de ser emenda constitucional, imediata, que devolva a
administração política do Distrito Federal ao governo da República, como
era antes de 1988, e já a partir de 2015, quando termina o atual
mandato, antes que a situação se perpetue. Essa medida radical irá
romper aqueles esquemas conhecidos de desvio de recursos públicos. Não é
certo que isso venha a acabar com a corrupção, mas certamente reduzirá a
sua audácia e os seus efeitos.
*Gilsonsampaio
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