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Ser de esquerda é não aceitar as injustiças, sejam elas quais forem, como um fato natural. É não calar diante da violação dos Direitos Humanos, em qualquer país e em qualquer momento. É questionar determinadas leis – porque a Justiça, muitas vezes, não anda de mãos dadas com o Direito; e entre um e outro, o homem de esquerda escolhe a justiça.
É ser guiado por uma permanente capacidade de se estarrecer e, com ela e por causa dela, não se acomodar, não se vender, não se deixar manipular ou seduzir pelo poder. É escolher o caminho mais justo, mesmo que seja cansativo demais, arriscado demais, distante demais. O homem de esquerda acredita que a vida pode e deve ser melhor e é isso, no fundo, que o move. Porque o homem de esquerda sabe que não é culpa do destino ou da vontade divina que um bilhão de pessoas, segundo dados da ONU, passe fome no mundo.
É caminhar junto aos marginalizados; é repartir aquilo que se tem e até mesmo aquilo que falta, sem sacrifício e sem estardalhaço. À direita, cabe a tarefa de dar o que sobra, em forma de esmola e de assistencialismo, com barulho e holofotes. Ser de esquerda é reconhecer no outro sua própria humanidade, principalmente quando o outro for completamente diferente. Os homens e mulheres de esquerda sabem que o destino de uma pessoa não deveria ser determinado por causa da raça, do gênero ou da religião.
Ser de esquerda é não se deixar seduzir pelo consumismo; é entender, como ensinou Milton Santos, que a felicidade está ancorada nos bens infinitos. É mergulhar, com alegria e inteireza, na luta por um mundo melhor e neste mergulho não se deixar contaminar pela arrogância, pelo rancor ou pela vaidade. É manter a coerência entre a palavra e a ação. É alimentar as dúvidas, para não cair no poço escuro das respostas fáceis, das certezas cômodas e caducas. Porém, o homem de esquerda não faz da dúvida o álibi para a indiferença. Ele nunca é indiferente. Ser de esquerda é saber que este “mundo melhor e possível” não se fará de punhos cerrados nem com gritos de guerra, mas será construído no dia-a-dia, nas pequenas e grandes obras e que, muitas vezes, é preciso comprar batalhas longas e desgastantes. Ser de esquerda é, na batalha, não usar os métodos do inimigo.
Fernando Evangelista

quarta-feira, abril 04, 2012

Reino Unido, laboratório de catástrofes

 

Vladimir Safatle, CartaCapital

Nos últimos 30 anos, o Reino Unido transformou-se em uma espécie de laboratório de catástrofes. Espaço das ideias “inovadoras” que pareciam quebrar consensos estabelecidos, chega hoje a uma situação social e econômica bem exemplificada na frase enunciada desesperadamente por seu ministro das Finanças, George Osborne, há mais de uma semana, à ocasião da aprovação do novo Orçamento: “Nós vamos assistir aos Brasis, às Chinas e às Índias como potências mundiais à nossa frente na economia global ou teremos a determinação nacional de dizer: ‘Não, não ficaremos para trás. Nós queremos liderar?”
Se Osborne tivesse um pouco de curiosidade especulativa, ele perceberia que a crise na qual seu país entrou, de maneira muito mais forte se comparada a vizinhos como a França e a Alemanha, é apenas o último capítulo de uma destruição há muito gestada. Sem parque industrial relevante, sem base agrícola, com a economia reduzida ao setor de serviços e finanças, o Reino Unido é o melhor exemplo de um país completamente vulnerável aos humores da economia mundial nesta época de desregulamentação.
As respostas a tal vulnerabilidade parecem mecanismos autistas de defesa que só conseguem piorar o quadro. Para começar, o primeiro-ministro David Cameron, bastião da moralidade britânica e amigo de cidadãos irrepreensíveis como o magnata da mídia Rupert Murdoch, apresentou um pacto recessivo baseado em cortes de gastos estatais, demissão de 400 mil funcionários públicos e privatização de fato do sistema universitário, com direito a fechamento de departamentos não alinhados ao novo padrão técnico de ensino.
Não é preciso ser um keynesiano radical para perceber que tal política apenas piora a capacidade da economia de contar com seu mercado interno, isto em uma época em que o Reino Unido nada tem a exportar. Sem lembrar que, ao desmantelar ainda mais os aparelhos de seguridade social, Cameron deu sua contribuição para colocar fogo na crise social que a Inglaterra assistiu não faz muito tempo: no ano passado, quando hordas de jovens da periferia quebraram e saquearam lojas.
Seu governo apresenta agora um inacreditável “plano de recuperação” baseado em corte de tributos para os mais ricos (cujo Imposto de Renda cairá de 50% para 45%) e aumento da idade para a aposentadoria. A justificativa para a redução do imposto dos ricos seria “incentivar o aumento do empreendedorismo”. Não, não se trata de uma piada. Cameron quer levar os britânicos a acreditar que os milionários não pegarão tal sobra de dinheiro e a aplicarão no sistema financeiro internacional, principalmente em países como o Brasil, onde eles terão muito mais retorno com juros do que empreendendo em uma economia combalida. O Reino Unido ganharia mais se tivesse um governo com os pés no chão, em vez de indivíduos que deliram mundos possíveis onde ricos investem na produção e bancos trabalham em favor da economia real.
A passividade britânica diante dos desatinos de seu governo vem, entre outras coisas, da sedação pela qual o país passou nestes últimos 30 anos. Primeiro, foi a era Thatcher com a tríade desregulamentação do sistema financeiro, privatização e flexibilização do mercado de trabalho, e a consequente Jihad contra os sindicatos. Estávamos na década de 1980 e Thatcher formava com Ronald Reagan o Casal 20 dos novos tempos. Impulsionada por fatos externos, entre eles a Guerra das Malvinas e o lento colapso do bloco soviético, Thatcher parecia seguir a direção do vento. Ninguém percebia como suas pregações por democracia escondiam amizades pessoais com Augusto Pinochet e afirmações medonhas como “a sociedade civil não existe”. Ninguém queria perceber a transformação da economia britânica em uma tênue vidraça a ser quebrada na primeira crise real.
Depois veio Tony Blair, que passou anos a tentar convencer o mundo sobre o mito da Terceira Via, que transformaria seu reino em uma Cool Britannia moderna e glamourosa. Enquanto Blair se preparava para seguir George W. Bush em suas mais delirantes intervenções internacionais, tínhamos de ouvir seu amigo Anthony Giddens nos dizer que o Estado de Bem-Estar Social havia acabado e que a sociedade de risco viria para ficar. Só faltou explicar que nesta sociedade os riscos são divididos de acordo com a boa e velha lógica de conflito de classe, como vemos claramente agora. Ou seja, riscos são muito diferentes quando estou autorizado a pegar dinheiro que o governo investe em bancos falidos e pagar minhas bonificações e stock options.
Choque neoliberal, Terceira Via: depois de décadas de predomínio de tais absurdos, fica realmente difícil para a sociedade britânica voltar a pensar em alternativas concretas. Resta ver seu governo tentar vender, como remédio, as próprias causas da doença. De nossa parte, diremos ao ministro Osborne: creio que essa história de liderança ficará apenas na vontade.

*esquerdopata

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