Reino Unido, laboratório de catástrofes
Vladimir Safatle, CartaCapital
Nos últimos 30 anos, o Reino Unido transformou-se em uma espécie de
laboratório de catástrofes. Espaço das ideias “inovadoras” que pareciam
quebrar consensos estabelecidos, chega hoje a uma situação social e
econômica bem exemplificada na frase enunciada desesperadamente por seu
ministro das Finanças, George Osborne, há mais de uma semana, à ocasião
da aprovação do novo Orçamento: “Nós vamos assistir aos Brasis, às
Chinas e às Índias como potências mundiais à nossa frente na economia
global ou teremos a determinação nacional de dizer: ‘Não, não ficaremos
para trás. Nós queremos liderar?”
Se Osborne tivesse um pouco de curiosidade especulativa, ele perceberia
que a crise na qual seu país entrou, de maneira muito mais forte se
comparada a vizinhos como a França e a Alemanha, é apenas o último
capítulo de uma destruição há muito gestada. Sem parque industrial
relevante, sem base agrícola, com a economia reduzida ao setor de
serviços e finanças, o Reino Unido é o melhor exemplo de um país
completamente vulnerável aos humores da economia mundial nesta época de
desregulamentação.
As respostas a tal vulnerabilidade parecem mecanismos autistas de defesa
que só conseguem piorar o quadro. Para começar, o primeiro-ministro
David Cameron, bastião da moralidade britânica e amigo de cidadãos
irrepreensíveis como o magnata da mídia Rupert Murdoch, apresentou um
pacto recessivo baseado em cortes de gastos estatais, demissão de 400
mil funcionários públicos e privatização de fato do sistema
universitário, com direito a fechamento de departamentos não alinhados
ao novo padrão técnico de ensino.
Não é preciso ser um keynesiano radical para perceber que tal política
apenas piora a capacidade da economia de contar com seu mercado interno,
isto em uma época em que o Reino Unido nada tem a exportar. Sem lembrar
que, ao desmantelar ainda mais os aparelhos de seguridade social,
Cameron deu sua contribuição para colocar fogo na crise social que a
Inglaterra assistiu não faz muito tempo: no ano passado, quando hordas
de jovens da periferia quebraram e saquearam lojas.
Seu governo apresenta agora um inacreditável “plano de recuperação”
baseado em corte de tributos para os mais ricos (cujo Imposto de Renda
cairá de 50% para 45%) e aumento da idade para a aposentadoria. A
justificativa para a redução do imposto dos ricos seria “incentivar o
aumento do empreendedorismo”. Não, não se trata de uma piada. Cameron
quer levar os britânicos a acreditar que os milionários não pegarão tal
sobra de dinheiro e a aplicarão no sistema financeiro internacional,
principalmente em países como o Brasil, onde eles terão muito mais
retorno com juros do que empreendendo em uma economia combalida. O Reino
Unido ganharia mais se tivesse um governo com os pés no chão, em vez de
indivíduos que deliram mundos possíveis onde ricos investem na produção
e bancos trabalham em favor da economia real.
A passividade britânica diante dos desatinos de seu governo vem, entre
outras coisas, da sedação pela qual o país passou nestes últimos 30
anos. Primeiro, foi a era Thatcher com a tríade desregulamentação do
sistema financeiro, privatização e flexibilização do mercado de
trabalho, e a consequente Jihad contra os sindicatos. Estávamos na
década de 1980 e Thatcher formava com Ronald Reagan o Casal 20 dos novos
tempos. Impulsionada por fatos externos, entre eles a Guerra das
Malvinas e o lento colapso do bloco soviético, Thatcher parecia seguir a
direção do vento. Ninguém percebia como suas pregações por democracia
escondiam amizades pessoais com Augusto Pinochet e afirmações medonhas
como “a sociedade civil não existe”. Ninguém queria perceber a
transformação da economia britânica em uma tênue vidraça a ser quebrada
na primeira crise real.
Depois veio Tony Blair, que passou anos a tentar convencer o mundo sobre
o mito da Terceira Via, que transformaria seu reino em uma Cool Britannia
moderna e glamourosa. Enquanto Blair se preparava para seguir George W.
Bush em suas mais delirantes intervenções internacionais, tínhamos de
ouvir seu amigo Anthony Giddens nos dizer que o Estado de Bem-Estar
Social havia acabado e que a sociedade de risco viria para ficar. Só
faltou explicar que nesta sociedade os riscos são divididos de acordo
com a boa e velha lógica de conflito de classe, como vemos claramente
agora. Ou seja, riscos são muito diferentes quando estou autorizado a
pegar dinheiro que o governo investe em bancos falidos e pagar minhas
bonificações e stock options.
Choque neoliberal, Terceira Via: depois de décadas de predomínio de tais
absurdos, fica realmente difícil para a sociedade britânica voltar a
pensar em alternativas concretas. Resta ver seu governo tentar vender,
como remédio, as próprias causas da doença. De nossa parte, diremos ao
ministro Osborne: creio que essa história de liderança ficará apenas na
vontade.
*esquerdopata
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