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Ser de esquerda é não aceitar as injustiças, sejam elas quais forem, como um fato natural. É não calar diante da violação dos Direitos Humanos, em qualquer país e em qualquer momento. É questionar determinadas leis – porque a Justiça, muitas vezes, não anda de mãos dadas com o Direito; e entre um e outro, o homem de esquerda escolhe a justiça.
É ser guiado por uma permanente capacidade de se estarrecer e, com ela e por causa dela, não se acomodar, não se vender, não se deixar manipular ou seduzir pelo poder. É escolher o caminho mais justo, mesmo que seja cansativo demais, arriscado demais, distante demais. O homem de esquerda acredita que a vida pode e deve ser melhor e é isso, no fundo, que o move. Porque o homem de esquerda sabe que não é culpa do destino ou da vontade divina que um bilhão de pessoas, segundo dados da ONU, passe fome no mundo.
É caminhar junto aos marginalizados; é repartir aquilo que se tem e até mesmo aquilo que falta, sem sacrifício e sem estardalhaço. À direita, cabe a tarefa de dar o que sobra, em forma de esmola e de assistencialismo, com barulho e holofotes. Ser de esquerda é reconhecer no outro sua própria humanidade, principalmente quando o outro for completamente diferente. Os homens e mulheres de esquerda sabem que o destino de uma pessoa não deveria ser determinado por causa da raça, do gênero ou da religião.
Ser de esquerda é não se deixar seduzir pelo consumismo; é entender, como ensinou Milton Santos, que a felicidade está ancorada nos bens infinitos. É mergulhar, com alegria e inteireza, na luta por um mundo melhor e neste mergulho não se deixar contaminar pela arrogância, pelo rancor ou pela vaidade. É manter a coerência entre a palavra e a ação. É alimentar as dúvidas, para não cair no poço escuro das respostas fáceis, das certezas cômodas e caducas. Porém, o homem de esquerda não faz da dúvida o álibi para a indiferença. Ele nunca é indiferente. Ser de esquerda é saber que este “mundo melhor e possível” não se fará de punhos cerrados nem com gritos de guerra, mas será construído no dia-a-dia, nas pequenas e grandes obras e que, muitas vezes, é preciso comprar batalhas longas e desgastantes. Ser de esquerda é, na batalha, não usar os métodos do inimigo.
Fernando Evangelista

segunda-feira, abril 02, 2012

Retorno àqueles dias “mal-ditos”

Jean Wyllys

Jornalista , é deputado federal pelo PSOL-RJ e integrante da frente parlamentar em defesa dos direitos LGBT. CARTA CAPITAL
A verdade sobre os porões de tortura, vôos da morte, assassinatos e sequestros para conter a resistência é certamente terrível, mas necessária. Temos direito a ela!

Eu nasci em 1974, quando o Brasil estava sob a ditadura do general Ernesto Geisel. Nasci na periferia miserável de Alagoinhas, cidade do interior da Bahia.
Quando me entendi por gente, lá pelos anos 1980, a ditadura ainda vigorava, mas lá, por aquelas bandas, não se fala em ditadura. Meus pais, meus tios e meus vizinhos – aquelas pessoas pobres em luta apenas pelo pão de cada dia – não falavam em ditadura.
E aquele comunicado da censura oficial que antecipava cada programa de tevê que eu via pela janela do único vizinho com aparelho em casa, aquele comunicado nada significava além de um alerta inócuo para mim e para os demais.
Só anos depois, já no final do ensino fundamental, pude perceber, pelos livros da biblioteca da casa paroquial (“Brasil: nunca mais”, o principal deles) que nós fazíamos parte da pátria mãe que dormia distraída enquanto era subtraída em “tenebrosas transações”, para citar Chico Buarque.
Aliás, por falar em Chico Buarque, a trilha sonora oficial daqueles “anos de chumbo” – que inclui, além de Buarque, Geraldo Vandré, Gilberto Gil, Caetano Veloso, Gal Costa, Torquato Neto, Elis Regina e etc. – não era ouvida naquelas bandas.
O que se tocava nas poucas radiolas, autofalantes da “feira do pau” e na Rádio Emissora de Alagoinhas, eram artistas como Nelson Ned, Odair José, Agnaldo Timóteo, Paulo Sérgio, Cláudia Barroso, Waldick Soriano e Fernando Mendes, além, claro, de Roberto Carlos.
As verdades da ditadura – a censura, os conflitos, as torturas, os assassinatos, os exílios – não chegavam até nós, da mesma maneira que nossa verdade naqueles anos era – e é – ignorada pelos envolvidos na resistência à ditadura e responsável em parte pela construção da memória daquele período.
A memória é uma construção social e, sendo assim, pode cristalizar determinados aspectos de um tempo, em detrimento de outros que poderiam e podem ser muito importantes para se pensar o quadro político-social vigente naqueles anos (afinal, a visão de mundo das camadas populares, colocadas à margem do centro de decisão política, deve ter algo a nos dizer sobre a ditadura: elas não sabiam ou não queriam saber, ou tinham medo de saber ou eram simplesmente ignoradas em sua invisibilidade e subalternidade? Sabemos hoje que, durante a ditadura, o perigo rondava o conhecimento, e que, por isso, muitos oscilavam entre saber e esquecer).
Ora, o historiador francês Jacques Le Goff, afirma que é preciso interrogar-se sobre os esquecimentos.  “Devemos fazer o inventário dos arquivos do silêncio, e fazer a história a partir dos documentos e das ausências de documentos”.
Até onde se sabe, não existem documentos que recupere a memória do tratamento que os líderes dos movimentos revolucionários davam aos homossexuais (em especial às mulheres lésbicas) seja em seus “aparelhos”, seja nas prisões. Sendo assim, devemos trabalhar a partir dessa ausência e do silêncio sobre em torno desse assunto. Há muito para se dizer sobre aqueles dias “mal-ditos”.
A eleição da presidenta Dilma Rousseff – ela mesma uma vítima direta dos crimes da ditadura militar e agente da resistência ao terrorismo de estado praticado naqueles anos – abre um capítulo para a memória, que não consiste apenas em estabelecer uma verdade historiográfica daqueles crimes.
Tanto a verdade historiográfica quanto a temporada de julgamos que esperamos que se suceda à historiografia pressupõem uma construção de significados em um prazo longo (e não podemos ser ingênuos em acreditar que essa construção não resultará em conflito ideológico e de valor – vejam, por exemplos, a tagarelice do deputado e ex-militar Jair Bolsonaro, defendendo que se gozava de liberdade no período da ditadura; a ação de militares contra uma recente novela do SBT que tratou superficialmente daqueles dias “mal-ditos”; e o manifesto contrário à Comissão Nacional da Verdade assinado por mais de cem militares da reserva e seguido pela arrogante declaração do secretário-geral do Exército questionando a veracidade das torturas de que foi vítima a presidenta Dilma).
A verdade – ou verdades – sobre os porões de tortura, vôos da morte, assassinatos, sequestros, a desumanidade dos métodos dos repressores para conter a resistência é certamente terrível, sobretudo para quem sobreviveu aos fatos. Mas é necessária. Eu tenho direito a ela! Minha geração e as que vieram depois têm direito a ela!
A Comissão da Verdade, liberada do imediatismo dos fatos, poderá nos oferecer uma narrativa não unificadora, porque esta não seria desejável. Esperamos que todos os que escreveram aquelas páginas infelizes e sobreviveram a esse ponto de resgatá-las sejam ouvidos pela Comissão da Verdade.
Por isso, para garantir a lisura dos trabalhos da mesma e auxiliá-la ao mesmo tempo, um grupo de deputados da Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara – do qual faço parte – decidiu instituir uma Subcomissão Parlamentar da Memória, Verdade e Justiça  que conta com  o coordenação da deputada Luiza Erundina. Assim que se noticiou a existência dessa subcomissão, chegou, ao meu gabinete, um exemplar do calhamaço “A verdade sufocada – a história que a esquerda não quer que o Brasil conheça”, escrito pelo coronel reformado Carlos Alberto Brilhante Ustra.
E eu já o li (criticamente, claro). Sabemos que tanto a Comissão Nacional da Verdade quanto a nossa subcomissão parlamentar não poderão reconstruir tudo, mas a utopia de tudo saber a respeito daquelas páginas infelizes de nossa história deve servir como um programa, um horizonte e uma advertência para o futuro.
*Turquinho

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