Com tantos abusos aos quais as negras são sujeitas,
destruir um estereótipo de fragilidade não é nem de longe uma de suas
demandas mais urgentes
Por Jarid Arraes, no Blogueiras Negras
Há muito tempo, o feminismo vem combatendo a ideia de que o sexo
feminino é o “sexo frágil”. Para muita gente, essa é uma das principais
reivindicações que representam o feminismo – tanto para quem está de
fora, quanto para muitas das próprias ativistas dentro do movimento. No
entanto, a questão é bem mais profunda e há outras nuances que quase
sempre são deixadas de lado na luta pela igualdade. Afinal, as mulheres
negras nunca foram vistas como fisicamente frágeis. Com tantos abusos
aos quais as negras são sujeitas, destruir um estereótipo de fragilidade
não é nem de longe uma de suas demandas mais urgentes.
É importante entender que a mulher tida como frágil devido aos
valores machistas da sociedade é sempre a mulher branca, especialmente
aquela de classe privilegiada, que possui certo poder de consumo e que é
pressionada a atingir os padrões de pureza, delicadeza e fragilidade
femininas. A mulher negra brasileira nunca se encaixou nesses parâmetros
e nem poderia: ela é protagonista de vários séculos de exploração,
escravidão sexual e trabalho braçal forçado. Enquanto à mulher branca é
imposto o ideal feminino de pureza cristã, a mulher negra é
hipersexualizada e vista como promíscua, sendo relegada ao papel de
“Pombagira”, que pertuba o sono da “inocente” dona de casa –
constituindo uma teia de discriminação e hipersexualização racialmente
seletiva.
Na cultura brasileira, é impossível pensar em mulheres negras como
pessoas frágeis. São as negras que, em sua maioria, começam a trabalhar
desde jovens para ajudar a família e precisam largar os estudos para
cuidar da roça ou limpar a casa de pessoas brancas como empregadas
domésticas. Em incontáveis casos, senhoras negras de idade contam
histórias de trabalho contínuo sem qualquer descanso, criando os filhos
dos brancos, cuidando da faxina de residências e centros comerciais,
transportando cargas e permanecendo em pé dias inteiros enquanto
trabalham, sem receber qualquer direito trabalhista ou pausa para
repouso. Diferente da mulher branca, a mulher negra jamais teve de
reivindicar o direito de trabalhar fora, uma vez que vem exercendo esse
tipo de serviço há vários séculos, mesmo contra a sua vontade.
Enquanto a mulher branca lutava para ingressar no mercado de trabalho
e na universidade, buscando o reconhecimento dos seus atributos
intelectuais, a mulher negra já trabalhava fora de casa há centenas de
anos, sem que nem de longe fosse vista como uma pessoa inteligente. Sob
esse aspecto, mulheres negras e brancas têm em comum a batalha pelo
reconhecimento de suas faculdades mentais e autonomia para transformar e
interagir com o mundo. No entanto, o racismo é o maior responsável por
barrar oportunidades para a mulher negra. Para conquistar equiparidade
com os homens, é extremamente necessário obter um posicionamento de
igualdade entre as próprias mulheres e ser reconhecida como ser pensante
com virtudes e individualidade, não somente como braço de trabalho à
serviço da população branca.
Para a mulher negra, ser vista como alguém forte não é uma
reivindicação, mas sim um valor imposto pela sociedade e uma ferramenta
pela sobrevivência. As mulheres negras jamais são vistas como inaptas
para trabalhos manuais, mas sim como uma mão de obra fácil e barata para
ser explorada e que pode ser facilmente substituída. Elas precisam se
embranquecer em busca de trabalhos intelectuais, que exigem “boa
aparência” e são reservados para as mulheres brancas – essas, sim,
vistas como fisicamente frágeis.
Para algumas pessoas, pode parecer que tudo isso ficou para trás, em
uma escravidão perdida no passado distante. No entanto, o racismo é
muito perverso e, em pleno ano 2013, a discriminação e os estereótipos
raciais permanecem fortes e são responsáveis pela naturalização com que
se vê mulheres negras empurrando carrinhos de mão repletos de sucata ou
lavando as privadas imundas dos banheiros públicos. A falta de
sensibilidade quanto a realidade das negras é espantosa, especialmente
quando levada em consideração a forma como a sociedade se choca com a
possibilidade de uma mulher branca necessitar desse tipo de trabalho.
Os problemas causados pelo patriarcado oprimem todas as mulheres: as
brancas por não serem consideradas fortes e as negras por não serem
consideradas humanas. É essencial compreender que delimitar as
diferenças pelas quais o machismo oprime mulheres não é uma questão de
pesar sofrimentos. As negras têm uma história diferente e sofrem
problemas específicos, que precisam ser reconhecidos e combatidos
devidamente. A feminilidade imposta não é composta por um único padrão
para todas as mulheres e aquilo que é esperado de cada uma varia
drasticamente de acordo com sua origem e sua cor. É preciso compreender
que a misoginia não é homogênea e que, sem destruir o racismo, a mulher
negra jamais será libertada do patriarcado.
Por fim, resta a certeza de que a mulher negra jamais será um ser
frágil, pois sua força para resistir permanece viva. A força da mulher
negra não está relacionada a opressão desumana do trabalho que o racismo
impõe, mas ao orgulho de si, de suas raízes, sua coragem e de sua
capacidade de gerar laços fortes para destruir a discriminação. A força
dos seus braços e ombros não existe para a escravidão, mas sim para que
possam se unir e formar as paredes de uma represa feminista.
Jarid Arraes é educadora sexual, feminista e escreve no Mulher Dialética e no Guia Erógeno.
*Forum
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Ser de esquerda é não aceitar as injustiças, sejam elas quais forem, como um fato natural. É não calar diante da violação dos Direitos Humanos, em qualquer país e em qualquer momento. É questionar determinadas leis – porque a Justiça, muitas vezes, não anda de mãos dadas com o Direito; e entre um e outro, o homem de esquerda escolhe a justiça.
É ser guiado por uma permanente capacidade de se estarrecer e, com ela e por causa dela, não se acomodar, não se vender, não se deixar manipular ou seduzir pelo poder. É escolher o caminho mais justo, mesmo que seja cansativo demais, arriscado demais, distante demais. O homem de esquerda acredita que a vida pode e deve ser melhor e é isso, no fundo, que o move. Porque o homem de esquerda sabe que não é culpa do destino ou da vontade divina que um bilhão de pessoas, segundo dados da ONU, passe fome no mundo.
É caminhar junto aos marginalizados; é repartir aquilo que se tem e até mesmo aquilo que falta, sem sacrifício e sem estardalhaço. À direita, cabe a tarefa de dar o que sobra, em forma de esmola e de assistencialismo, com barulho e holofotes. Ser de esquerda é reconhecer no outro sua própria humanidade, principalmente quando o outro for completamente diferente. Os homens e mulheres de esquerda sabem que o destino de uma pessoa não deveria ser determinado por causa da raça, do gênero ou da religião.
Ser de esquerda é não se deixar seduzir pelo consumismo; é entender, como ensinou Milton Santos, que a felicidade está ancorada nos bens infinitos. É mergulhar, com alegria e inteireza, na luta por um mundo melhor e neste mergulho não se deixar contaminar pela arrogância, pelo rancor ou pela vaidade. É manter a coerência entre a palavra e a ação. É alimentar as dúvidas, para não cair no poço escuro das respostas fáceis, das certezas cômodas e caducas. Porém, o homem de esquerda não faz da dúvida o álibi para a indiferença. Ele nunca é indiferente. Ser de esquerda é saber que este “mundo melhor e possível” não se fará de punhos cerrados nem com gritos de guerra, mas será construído no dia-a-dia, nas pequenas e grandes obras e que, muitas vezes, é preciso comprar batalhas longas e desgastantes. Ser de esquerda é, na batalha, não usar os métodos do inimigo.
Fernando Evangelista
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