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Ser de esquerda é não aceitar as injustiças, sejam elas quais forem, como um fato natural. É não calar diante da violação dos Direitos Humanos, em qualquer país e em qualquer momento. É questionar determinadas leis – porque a Justiça, muitas vezes, não anda de mãos dadas com o Direito; e entre um e outro, o homem de esquerda escolhe a justiça.
É ser guiado por uma permanente capacidade de se estarrecer e, com ela e por causa dela, não se acomodar, não se vender, não se deixar manipular ou seduzir pelo poder. É escolher o caminho mais justo, mesmo que seja cansativo demais, arriscado demais, distante demais. O homem de esquerda acredita que a vida pode e deve ser melhor e é isso, no fundo, que o move. Porque o homem de esquerda sabe que não é culpa do destino ou da vontade divina que um bilhão de pessoas, segundo dados da ONU, passe fome no mundo.
É caminhar junto aos marginalizados; é repartir aquilo que se tem e até mesmo aquilo que falta, sem sacrifício e sem estardalhaço. À direita, cabe a tarefa de dar o que sobra, em forma de esmola e de assistencialismo, com barulho e holofotes. Ser de esquerda é reconhecer no outro sua própria humanidade, principalmente quando o outro for completamente diferente. Os homens e mulheres de esquerda sabem que o destino de uma pessoa não deveria ser determinado por causa da raça, do gênero ou da religião.
Ser de esquerda é não se deixar seduzir pelo consumismo; é entender, como ensinou Milton Santos, que a felicidade está ancorada nos bens infinitos. É mergulhar, com alegria e inteireza, na luta por um mundo melhor e neste mergulho não se deixar contaminar pela arrogância, pelo rancor ou pela vaidade. É manter a coerência entre a palavra e a ação. É alimentar as dúvidas, para não cair no poço escuro das respostas fáceis, das certezas cômodas e caducas. Porém, o homem de esquerda não faz da dúvida o álibi para a indiferença. Ele nunca é indiferente. Ser de esquerda é saber que este “mundo melhor e possível” não se fará de punhos cerrados nem com gritos de guerra, mas será construído no dia-a-dia, nas pequenas e grandes obras e que, muitas vezes, é preciso comprar batalhas longas e desgastantes. Ser de esquerda é, na batalha, não usar os métodos do inimigo.
Fernando Evangelista

quinta-feira, agosto 22, 2013

Muito mais que médicos


por Denise Queiroz

imagem garimpada do google

A questão dos médicos acabou expondo uma ferida pouco visível do sistema brasileiro de desenvolvimento e que, obviamente, tem a ver com todo o restolho cultural que a sociedade industrializada e de consumo cria: a orientação urbana.

Num país onde até a década de 50 a população era majoritariamente rural (link) e que teve um salto desenvolvimentista impulsionado primeiro na era Vargas e depois pelos militares baixo o slogan ‘este é um país que vai pra frente’, o produzir, manufaturar, plantar e colher do campo foram sendo colocados num segundo plano. Para sermos aceitos como ‘grandes’ precisaríamos produzir em grande escala. Não à toa, verifica-se que boa parte da cobertura vegetal do país quase foi dizimada junto com a cultura do trabalho de produzir para comer - o que implicava também numa convivência comunitária de trocas, desde sementes até doces, passando por pães, receitas, farinhas, carnes dos bichinhos criados ‘para ter’.

A ‘cidade grande’ com suas luzes passou a ser o alvo da cobiça de um modo de vida onde o progresso, o sucesso, a ‘cultura’ estavam ao alcance. O povo do campo, tratando como caipira no pior sentido que a palavra pode ter - atrasado, pouco civilizado - aos poucos deixa de lado até seu linguajar típico e rico de palavras e expressões definidoras, e o substitui pelos jargões massificados, vendidos como sabão em pó pelas novelas e programas patrocinados por essa indústria, a do sabão.
Viver no interior e do que se é capaz de produzir para consumo passou a ser símbolo de pouca ‘civilização’ e de pouco acesso ao ‘bom' e até de sujeira. Cultura tão avessa é criada, que não raro conhecemos pessoas que negam sua origem geográfica ‘interiorana’, pois, após higienização pasteurizada em boas universidades das capitais, nos shoppings, lojas de departamentos, clínicas estéticas e cabeleireiros, se igualam aos oriundos do que passou a ser sinônimo de ‘desenvolvimento’ e ‘bem viver’, os da cidade.

Algumas décadas depois dessa criação cultural que buscava mão-de-obra barata, o desconhecimento do modo de vida que deu origem à maior parte das pessoas que hoje se amontoam em ruas mal tratadas das grandes cidades é tal, que não se pode mais criticar os norte-americanos pelo seu desconhecimento geográfico do resto do mundo. Jovens universitários brasileiros em congressos aos quais alguns comparecem para ‘ter currículo’ olham com desprezo estudantes de universidades desconhecidas (por pouco expostas à mídia hegemônica) do interior do país. E acabam arregalando os olhos ao saber que muitas cidades de 300 ou 400 mil habitantes de estados distantes demais das grandes metrópoles são capazes de produzir não só conhecimento, mas tecnologia de ponta em algumas áreas.

Desde o sistema educacional básico, onde informações sobre cidadania são dadas en passant e textos para análise e aprendizado são baseados em programas televisivos e personagens de telenovelas, ‘pois fica mais fácil trabalhar uma vez que os alunos estão familiarizados com o tema’, até as universidades tradicionalmente bem conceituadas, o modus vivendi urbano é disseminado. 

A quem compete a mudança? Quem vai ser o responsável pela verdadeira revolução deste país, que é mostrar aos brasileiros a enorme riqueza cultural que desperdiçamos diariamente ao acompanhar ficção patrocinada por uma indústria que nada mais visa o consumo? Como reverter a dominação cultural de lixo pasteurizado e valorizar o regional, o autêntico, transformar o local em central e motivo de orgulho que ultrapasse as fronteiras de pequenas comunidades?

É tragicômico que crianças criadas em comunidades rurais, distantes miles de quilômetros de grandes centros metropolizados, reproduzam o modo de vestir, dançar, falar, da cultura do rap, por exemplo. Mas essa cultura lhes chega pelas ondas da TV, agora que já quase não há mais casas sem eletricidade e televisão. O estilo ‘da moda’ aparece no programa dominical – de qualquer emissora aberta – e também na telenovela e no noticiário, até em horário nobre, quando celebridades construídas são chamadas a opinar sobre grandes temas nacionais... O apelo é tal e tanto que parece àquela pessoa, lá do interior do Pará ou de uma comunidade alemã nas montanhas catarinenses, que não há outro modo possível de viver. Até as favelas - onde só em São Paulo cerca de um milhão de pessoas vivem exprimidas, à margem do ordenamento civilizatório prometido pelo imaginário ficcional construído do ‘desenvolvimento’ - são glamourizadas.

Talvez uma das grandes mentiras criadas pela publicidade é o slogan daquela rede de TV que assegura que ‘a gente se vê por aqui’. A canção do Aldir Blanc, imortalizada por Elis, já dizia que ‘o Brasil não conhece o Brasil’.  A resistência dos novos profissionais - não são só os médicos, ressalte-se - em se bandearem para onde são necessários, é prova disso. É prova também de que, apesar dos indicadores, do censo, dos estudos sérios que vem sendo conduzidos e encaminhados desde pelo menos a década de 30, buscando uma forma de desenvolver o país e apontando falhas, cada vez mais gritantes, nas opções tomadas pelos que governaram e vem governando, pouco foi feito.

As cidades grandes ficaram enormes, invivíveis. As médias ficaram grandes e o individualismo, antes restrito a quem morava empoleirado nos edifícios de apartamentos, agora é a norma até para quem vive em cidades onde há 30 anos havia um povoado. A fartura de tanta terra se amontoa nos portos à espera do embarque, enquanto o roçado vira capoeira outra vez porque os velhos, já sem forças, não dão conta e ‘os meninos foram trabalhar na cidade, pois precisam do salário certo’.

Louvável que se contrate mais médicos para tratar da saúde física, essencial, de tanta gente de tantos lugares, pois também a procura por saúde é uma das razões de abandono do campo. Que a mesma urgência seja aplicada em tratar da saúde cultural, para modificar e reestruturar o modelo de desenvolvimento, antes que o paciente Brasil entre em estado vegetativo.


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