por Denise Queiroz
imagem garimpada do google |
A questão dos médicos acabou expondo uma ferida pouco
visível do sistema brasileiro de desenvolvimento e que, obviamente, tem a ver
com todo o restolho cultural que a sociedade industrializada e de consumo cria:
a orientação urbana.
Num país onde até a década de 50 a população era
majoritariamente rural (link)
e que teve um salto desenvolvimentista impulsionado primeiro na era Vargas e
depois pelos militares baixo o slogan ‘este é um país que vai pra frente’, o
produzir, manufaturar, plantar e colher do campo foram sendo colocados num
segundo plano. Para sermos aceitos como ‘grandes’ precisaríamos produzir em
grande escala. Não à toa, verifica-se que boa parte da cobertura vegetal do
país quase foi dizimada junto com a cultura do trabalho de produzir para comer
- o que implicava também numa convivência comunitária de trocas, desde sementes
até doces, passando por pães, receitas, farinhas, carnes dos bichinhos criados ‘para
ter’.
A ‘cidade grande’ com suas luzes passou a ser o alvo da
cobiça de um modo de vida onde o progresso, o sucesso, a ‘cultura’ estavam ao
alcance. O povo do campo, tratando como caipira no pior sentido que a palavra
pode ter - atrasado, pouco civilizado - aos poucos deixa de lado até seu
linguajar típico e rico de palavras e expressões definidoras, e o substitui
pelos jargões massificados, vendidos como sabão em pó pelas novelas e programas
patrocinados por essa indústria, a do sabão.
Viver no interior e do que se é capaz de produzir para
consumo passou a ser símbolo de pouca ‘civilização’ e de pouco acesso ao ‘bom'
e até de sujeira. Cultura tão avessa é criada, que não raro conhecemos pessoas
que negam sua origem geográfica ‘interiorana’, pois, após higienização pasteurizada
em boas universidades das capitais, nos shoppings, lojas de departamentos, clínicas
estéticas e cabeleireiros, se igualam aos oriundos do que passou a ser sinônimo
de ‘desenvolvimento’ e ‘bem viver’, os da cidade.
Algumas décadas depois dessa criação cultural que buscava
mão-de-obra barata, o desconhecimento do modo de vida que deu origem à maior
parte das pessoas que hoje se amontoam em ruas mal tratadas das grandes cidades
é tal, que não se pode mais criticar os norte-americanos pelo seu
desconhecimento geográfico do resto do mundo. Jovens universitários brasileiros
em congressos aos quais alguns comparecem para ‘ter currículo’ olham com
desprezo estudantes de universidades desconhecidas (por pouco expostas à mídia
hegemônica) do interior do país. E acabam arregalando os olhos ao saber que
muitas cidades de 300 ou 400 mil habitantes de estados distantes demais das
grandes metrópoles são capazes de produzir não só conhecimento, mas tecnologia
de ponta em algumas áreas.
Desde o sistema educacional básico, onde informações sobre
cidadania são dadas en passant e textos para análise e aprendizado são baseados
em programas televisivos e personagens de telenovelas, ‘pois fica mais fácil
trabalhar uma vez que os alunos estão familiarizados com o tema’, até as
universidades tradicionalmente bem conceituadas, o modus vivendi urbano é
disseminado.
A quem compete a mudança? Quem vai ser o responsável pela
verdadeira revolução deste país, que é mostrar aos brasileiros a enorme riqueza
cultural que desperdiçamos diariamente ao acompanhar ficção patrocinada por uma
indústria que nada mais visa o consumo? Como reverter a dominação cultural de
lixo pasteurizado e valorizar o regional, o autêntico, transformar o local em
central e motivo de orgulho que ultrapasse as fronteiras de pequenas
comunidades?
É tragicômico que crianças criadas em comunidades rurais,
distantes miles de quilômetros de grandes centros metropolizados, reproduzam o
modo de vestir, dançar, falar, da cultura do rap, por exemplo. Mas essa cultura
lhes chega pelas ondas da TV, agora que já quase não há mais casas sem
eletricidade e televisão. O estilo ‘da moda’ aparece no programa dominical – de
qualquer emissora aberta – e também na telenovela e no noticiário, até em
horário nobre, quando celebridades construídas são chamadas a opinar sobre
grandes temas nacionais... O apelo é tal e tanto que parece àquela pessoa, lá
do interior do Pará ou de uma comunidade alemã nas montanhas catarinenses, que
não há outro modo possível de viver. Até as favelas - onde só em São Paulo
cerca de um milhão de pessoas vivem exprimidas, à margem do ordenamento
civilizatório prometido pelo imaginário ficcional construído do ‘desenvolvimento’
- são glamourizadas.
Talvez uma das grandes mentiras criadas pela publicidade é o
slogan daquela rede de TV que assegura que ‘a gente se vê por aqui’. A canção do
Aldir Blanc, imortalizada por Elis, já dizia que ‘o Brasil não conhece o Brasil’.
A resistência dos novos profissionais -
não são só os médicos, ressalte-se - em se bandearem para onde são necessários,
é prova disso. É prova também de que, apesar dos indicadores, do censo, dos
estudos sérios que vem sendo conduzidos e encaminhados desde pelo menos a
década de 30, buscando uma forma de desenvolver o país e apontando falhas, cada
vez mais gritantes, nas opções tomadas pelos que governaram e vem governando,
pouco foi feito.
As cidades grandes ficaram enormes, invivíveis. As médias
ficaram grandes e o individualismo, antes restrito a quem morava empoleirado
nos edifícios de apartamentos, agora é a norma até para quem vive em cidades
onde há 30 anos havia um povoado. A fartura de tanta terra se amontoa nos
portos à espera do embarque, enquanto o roçado vira capoeira outra vez porque os
velhos, já sem forças, não dão conta e ‘os meninos foram trabalhar na cidade,
pois precisam do salário certo’.
Louvável que se contrate mais médicos para tratar da saúde
física, essencial, de tanta gente de tantos lugares, pois também a procura por
saúde é uma das razões de abandono do campo. Que a mesma urgência seja aplicada
em tratar da saúde cultural, para modificar e reestruturar o modelo de
desenvolvimento, antes que o paciente Brasil entre em estado vegetativo.
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