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Ser de esquerda é não aceitar as injustiças, sejam elas quais forem, como um fato natural. É não calar diante da violação dos Direitos Humanos, em qualquer país e em qualquer momento. É questionar determinadas leis – porque a Justiça, muitas vezes, não anda de mãos dadas com o Direito; e entre um e outro, o homem de esquerda escolhe a justiça.
É ser guiado por uma permanente capacidade de se estarrecer e, com ela e por causa dela, não se acomodar, não se vender, não se deixar manipular ou seduzir pelo poder. É escolher o caminho mais justo, mesmo que seja cansativo demais, arriscado demais, distante demais. O homem de esquerda acredita que a vida pode e deve ser melhor e é isso, no fundo, que o move. Porque o homem de esquerda sabe que não é culpa do destino ou da vontade divina que um bilhão de pessoas, segundo dados da ONU, passe fome no mundo.
É caminhar junto aos marginalizados; é repartir aquilo que se tem e até mesmo aquilo que falta, sem sacrifício e sem estardalhaço. À direita, cabe a tarefa de dar o que sobra, em forma de esmola e de assistencialismo, com barulho e holofotes. Ser de esquerda é reconhecer no outro sua própria humanidade, principalmente quando o outro for completamente diferente. Os homens e mulheres de esquerda sabem que o destino de uma pessoa não deveria ser determinado por causa da raça, do gênero ou da religião.
Ser de esquerda é não se deixar seduzir pelo consumismo; é entender, como ensinou Milton Santos, que a felicidade está ancorada nos bens infinitos. É mergulhar, com alegria e inteireza, na luta por um mundo melhor e neste mergulho não se deixar contaminar pela arrogância, pelo rancor ou pela vaidade. É manter a coerência entre a palavra e a ação. É alimentar as dúvidas, para não cair no poço escuro das respostas fáceis, das certezas cômodas e caducas. Porém, o homem de esquerda não faz da dúvida o álibi para a indiferença. Ele nunca é indiferente. Ser de esquerda é saber que este “mundo melhor e possível” não se fará de punhos cerrados nem com gritos de guerra, mas será construído no dia-a-dia, nas pequenas e grandes obras e que, muitas vezes, é preciso comprar batalhas longas e desgastantes. Ser de esquerda é, na batalha, não usar os métodos do inimigo.
Fernando Evangelista

sexta-feira, agosto 23, 2013

No Brasil é assim mesmo, cada um por si

A reação hidrófoba dos médicos brasileiros ao anúncio de que cerca de 4 mil colegas cubanos virão atender a população miserável de quase uma centena de municípios do Norte e Nordeste, abandonada há séculos à própria sorte, é facilmente explicada: no Brasil as coisas são assim mesmo.
A afirmação não carrega nenhum sentido de fatalidade. 
É apenas reveladora de como funciona o sistema capitalista, esse salve-se quem puder, porque o que importa é dinheiro no bolso.
O Brasil tem um modelo de saúde estranho, onde convivem o estatal e o privado, o atendimento universal, gratuito, do SUS, e o para quem tem uma boa grana, dos planos de saúde.
Ora, é claro que, se um dia, o SUS conseguir atender a população de modo satisfatório, quem vai sofrer com isso são as empresas donas dos planos de saúde.

A grita dos médicos, capitaneados pelas suas associações de classe, é, portanto, lógica: eles simplesmente temem que a saúde pública do país atinja um tal nível de excelência que prejudique os seus negócios.
Qualquer análise com um mínimo de lógica desse xenofobismo extremado revelado por esses profissionais mostra a absoluta fragilidade de seus argumentos. 
São pueris, num extremo; canalhas, no outro.
O desarrazoado de suas alegações mostra ainda um engajamento partidário inconcebível. 
Ora, qualquer médico, como cidadão, tem o direito de fazer propaganda política para quem quer que seja, desde o mais democrata dos democratas até o mais fascista entre os fascistas, mas essa prerrogativa não se estende ao seu trabalho, que, pelo menos na teoria, é diminuir o sofrimento das pessoas, e não induzí-las em quem votar.
Os médicos, porém, não estão sozinhos nessa cruzada em favor de seus interesses.
Há vários outros exemplos de categorias profissionais, entidades de classe e setores empresariais cujo único objetivo, seguindo a lógica implacável do capitalismo - obter lucro seja como for -, é impedir qualquer mudança que possa prejudicá-los.
Não é por acaso que o Enem, um extraordinário avanço na educação brasileira, é bombardeado pela nossa gloriosa imprensa a cada ano: seu sucesso implica o enfraquecimento da indústria de cursinhos preparatórios ao vestibular.
Não é por acaso que o projeto do trem-bala ligando Campinas ao Rio de Janeiro tem sido submetido a toda espécie de críticas: no mundo todo, as empresas aéreas tiveram de reduzir drasticamente suas operações nos trechos de média distância em que competem com o transporte ferroviário de alta velocidade.
No Brasil as coisas são assim mesmo: cada um se preocupa com o seu próprio umbigo.
Tudo bem, isso faz parte da natureza humana, contaminada pelo egoísmo de um sistema econômico que pretende nos igualar aos mais ferozes predadores, que nos trata como bestas-feras.
Mas é sempre bom lembrar disso quando a gente se depara com tais aberrações de caráter como essas exibidas, orgulhosamente, pelos nossos desinteressados, altruístas e patriotas doutores.

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