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Ser de esquerda é não aceitar as injustiças, sejam elas quais forem, como um fato natural. É não calar diante da violação dos Direitos Humanos, em qualquer país e em qualquer momento. É questionar determinadas leis – porque a Justiça, muitas vezes, não anda de mãos dadas com o Direito; e entre um e outro, o homem de esquerda escolhe a justiça.
É ser guiado por uma permanente capacidade de se estarrecer e, com ela e por causa dela, não se acomodar, não se vender, não se deixar manipular ou seduzir pelo poder. É escolher o caminho mais justo, mesmo que seja cansativo demais, arriscado demais, distante demais. O homem de esquerda acredita que a vida pode e deve ser melhor e é isso, no fundo, que o move. Porque o homem de esquerda sabe que não é culpa do destino ou da vontade divina que um bilhão de pessoas, segundo dados da ONU, passe fome no mundo.
É caminhar junto aos marginalizados; é repartir aquilo que se tem e até mesmo aquilo que falta, sem sacrifício e sem estardalhaço. À direita, cabe a tarefa de dar o que sobra, em forma de esmola e de assistencialismo, com barulho e holofotes. Ser de esquerda é reconhecer no outro sua própria humanidade, principalmente quando o outro for completamente diferente. Os homens e mulheres de esquerda sabem que o destino de uma pessoa não deveria ser determinado por causa da raça, do gênero ou da religião.
Ser de esquerda é não se deixar seduzir pelo consumismo; é entender, como ensinou Milton Santos, que a felicidade está ancorada nos bens infinitos. É mergulhar, com alegria e inteireza, na luta por um mundo melhor e neste mergulho não se deixar contaminar pela arrogância, pelo rancor ou pela vaidade. É manter a coerência entre a palavra e a ação. É alimentar as dúvidas, para não cair no poço escuro das respostas fáceis, das certezas cômodas e caducas. Porém, o homem de esquerda não faz da dúvida o álibi para a indiferença. Ele nunca é indiferente. Ser de esquerda é saber que este “mundo melhor e possível” não se fará de punhos cerrados nem com gritos de guerra, mas será construído no dia-a-dia, nas pequenas e grandes obras e que, muitas vezes, é preciso comprar batalhas longas e desgastantes. Ser de esquerda é, na batalha, não usar os métodos do inimigo.
Fernando Evangelista

terça-feira, agosto 20, 2013

Ruy Barbosa sobre o julgamento dos recursos da AP 470

Vocês rapidamente perceberão que o texto abaixo, pelo brilhantismo e o “domínio do fato”, não é meu. Pois, do direito, no muito, tenho um senso de justiça, sei discernir o certo do errado, procuro andar em linha reta e não escrever por elas tortas. Isso, só Deus.
O brilhante autor do texto entre aspas é um sábio inquestionável, uma águia do direito brasileiro.
Coletei suas opiniões e pensamentos em livro adquirido em leilão, edição de 1917, sobre a “Questão Minas Werneck”, por ele defendida no Supremo Tribunal Federal, nas “Appelações de sentenças arbitraes”.
Em seus belos escritos, encontrei inspiração e grandes semelhanças com os impasses e mesmo as acaloradas discussões entre pares  – os ministros -  no julgamento dos recursos da AP 470, que acontece no momento no STF.
Como testemunhamos, na última sessão, quando o juiz Lewandowsky, pretendendo estudar um recurso e, talvez,  reconsiderar um voto, o juiz Barbosa interpôs-se a ele, por considerar aquela causa decidida.
A atitude do presidente da Corte inspirou a quem assistia serem, aquelas sessões de recurso, meras formalidades, para confirmar as primeiras sentenças.
Vamos ver o que diz o douto sábio dos sábios do Direito brasileiro. Vamos ver o que pensaria sobre o embate o notável Ruy Barbosa, a Águia de Haia!
Escutemos o GRANDE RUY:
“Apanhar-se em contradição, o sujeito que tem a coragem infame de variar de opinião, é o prazer dos prazeres. Se os deuses houvessem reservado como privilégio divino essa faculdade, cada consumidor brasileiro de papel seria um Prometeu absorto em escalar as nuvens, não à procura do céu, mas em busca da prenda celeste de escarafunchar  divergências de ontem para o hoje nas opiniões alheias. Quando se topa, nas letras remexidas, com um desses achados preciosos, é dia de festa, ilumina-se a casa, leva à boca o megafone e se anuncia ao longe que o adversário está esmagado.
Não há entretanto inutilidade mais inútil. Os homens de siso e consciência riem destas malícias. Só a ignorância ou a imbecilidade não se contradizem; porque não são capazes de pensar.
Só a vulgaridade e a esterilidade não variam; porque são a eterna repetição de si mesmas. Só os sábios baratos e os néscios caros podem ter o curso das suas ideias igual e uniforme como os livros de uma casa de comércio; porque nunca escreveram nada seu, nem conceberam nada novo.
A sinceridade, a razão, o trabalho, o saber não cessam de mudar: não há outra maneira humana de acertar e produzir. Varia a fé; varia a ciência; varia a lei; varia a justiça; varia a moral; varia a própria verdade; varia nos seus aspectos a criação mesma; tudo, salvo a intuição de Deus e a noção dos seus divinos mandamentos, tudo varia. Só não variam o obcecado, ou o fóssil, o ignorante ou o néscio, o maníaco ou o presunçoso.
Pode ser que no miolo de um compilador caiba inteiro o imenso universo jurídico, petrificado, imutabilizado e catalogado nas suas regras,  nas suas hipóteses e nos seus resultados. Tirante, porém, essas cabeças privilegiadas, tudo no direito é mudar constantemente; porque o direito resulta da evolução, e a envolver consiste no variar.
Há os grandes princípios, que formam a estrutura permanente desse mundo; mas, na vasta atmosfera de ideias que o envolve, nas grande correntes dos sistemas, que o sulcam, nos maravilhosos fenômenos criadores, que o animam, em todas as organizações que o povoam, em todos os resultados que o enriquecem, tudo se transmuta e renova e transforma dia a dia.
De dia em dia esses grandes princípios envolvem, progridem e cambiam, na interpretação, aplicação e reprodução, que lhes constituem a vida real.  Não há decretos, que se não revoguem, nem decisões, que se não alterem, nem sentenças, que se não reformem, nem arestos, que se não cancelem, ou doutrinas, que não passem, lições, que não desmereçam, axiomas, que não caduquem.
Os textos, os códigos, as constituições, guardado o mesmo rosto e a mesma linguagem, na sua inteligência e ação continuamente se vão modificando: significam hoje o contrário do que ontem significavam; amanhã exprimirão coisa diversa da que hoje estão exprimindo;  e, neste contínuo acomodar-se às exigências das gerações sucessivas, tomam, sucessivamente, a cor das épocas, das escolas, dos homens, que os entendem, comentam ou executam.
De sorte que, na tribuna do legislador, na cadeira do lente, na banca do causídico, no pretório do juiz, a palavra, as mais das vezes, não faz senão registrar as mutações e alternativas, em que direis consistir a essência mesma de nosso pensamento e atividade.
Assim que, debaixo do céu, tudo obedece a essa eterna lei de transmutação incessante das coisas. Se  nihil sole novum, também poderíamos dizer que nihil sub sole constans. Se todo o mundo se compõe de contradições , dessas contradições é que resulta a harmonia do mundo.  Se das variações pode emanar o erro, sem as variações o erro não se corrige.  A boa filosofia é a de Joubert, quando nos aconselha que, se por amor da verdade, houvermos de cair em contradições, não vacilemos em nos expor a elas de corpo e alma. Se “a razão nunca está em contradição consigo mesma, quando segue as suas leis”, como dizia o honesto Julio Simon, a única espécie de contradição, de que o espírito terá receio, é a de se empedernir no erro, quando enxerga a verdade.
O homem não está em contradição consigo mesmo, senão quando o está com a sua natureza moral, que o ensina a considerar-se desonrado, quando atina com a verdade, e se obceca no erro. É assim que o nosso próprio organismo vive,mudando toda a hora, sem mudar nunca; porque da sua identidade realmente não muda, senão quando, quebradas as suas leis orgânicas pela doença ou pela morte, deixa de eliminar o que deve eliminar, e absorver o que lhe convém absorver.
Mas, se neste ir e vir contínuo e nesse incessante mudar giram todos os viventes, como todas as coisas, não haverá, talvez, nenhum domínio da vida, em que tanto suba de ponto a instabilidade, quanto nessas incomensuráveis regiões onde impera o direito, nas circunstâncias que o realizam, nos elementos que o definem, nas fórmulas que o regem, nas interpretações que o esclarecem, nas soluções que o aplicam. Por isto, não muda somente a jurisprudência nacional, com o variar dos tribunais, não muda só a de cada tribunal com a mudança de seus membros, senão também a de cada juiz, muitas vezes, na mesma causa, de um a outro julgamento, e não raras com toda a razão; pois justamente para isso é que a lei nos assegura, não só as apelações, de uma a outra instância, mas os embargos, decididos  pelo mesmo magistrado, a cuja sentença as opomos.
Pois, se a toga do magistrado não se deslustra, retratando-se dos seus despachos e sentenças, antes se relustra, desdizendo-se do sentenciado ou resolvido, quando se lhe antolha claro o engano, em que laborava, ou a injustiça, que cometeu, não compreendemos que caiba no senso comum dar em rosto a um jurista, ou a um advogado com o repúdio de uma opinião outrora abraçada.
E, se, como no caso, essa opinião era, não uma tese consagrada, mas uma novidade ainda imatura, se nem se sustentara com a tese do pleito, nem constituía argumento essencial numa demonstração, mas apenas a auxiliava, e lhe era acessória, óbvio parece que a ‘semrazão’ dobra e tresdobra em estranheza”.
Petrópolis, fevereiro de 1917
RUY BARBOSA
Ainda o RUY:
“O bom senso humano, em todos os tempos, tem reconhecido não ser lícito abandonar a sorte da lei comum e dos direitos por ela assegurados às contingências do julgamento por um só tribunal. Daí a concepção das instâncias, dos recursos e, especialmente, das apelações, destinadas a corrigirem, mediante segundo exame do caso em cada lide, os vícios, omissões e nulidades do processo, os erros, abusos e injustiças da sentença.
 ”Apellandi usus quam sit frequens quamque necessarius,nemo est qui nesciat, quippe cúm iniquitatem judicantium vel imperitiam recorrigat.” (Fr. I D. de appellationibus, XLII I.)
Ninguém há, que não saiba, diz o fragmento do texto de Ulpiano incorporado neste lance das Pandecas, “ninguém há, que não saiba quão frequente e quão necessário é o uso de apelar, remédio que se criou para corrigir a iniquidade e reparar a perícia dos julgadores”.
Desta noção de justiça rudimentar só discrepou a grande matriz do nosso direito civil e do nosso direito judiciário, a jurisprudência romana, em outras épocas tenebrosas como as de Calígula, que vedou as apelações, e Nero, que as impediu (…)”.
Petrópolis, fevereiro de 1917
RUY BARBOSA
*A jornalista, para tornar a leitura acessível a todos, atualizou alguns termos para a linguagem mais corrente, como, por exemplo, trocar “empeceu” por “impediu”.
Hildegard Angel
*comtextolivre

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