Ruy Barbosa sobre o julgamento dos recursos da AP 470
Vocês rapidamente perceberão que o texto abaixo, pelo brilhantismo e o
“domínio do fato”, não é meu. Pois, do direito, no muito, tenho um
senso de justiça, sei discernir o certo do errado, procuro andar em
linha reta e não escrever por elas tortas. Isso, só Deus.
O brilhante autor do texto entre aspas é um sábio inquestionável, uma águia do direito brasileiro.
Coletei suas opiniões e pensamentos em livro adquirido em leilão,
edição de 1917, sobre a “Questão Minas Werneck”, por ele defendida no Supremo Tribunal Federal, nas “Appelações de sentenças arbitraes”.
Em seus belos escritos, encontrei inspiração e grandes semelhanças com
os impasses e mesmo as acaloradas discussões entre pares – os
ministros - no julgamento dos recursos da AP 470, que acontece no momento no STF.
Como testemunhamos, na última sessão, quando o juiz Lewandowsky,
pretendendo estudar um recurso e, talvez, reconsiderar um voto, o juiz
Barbosa interpôs-se a ele, por considerar aquela causa decidida.
A atitude do presidente da Corte inspirou a quem assistia serem,
aquelas sessões de recurso, meras formalidades, para confirmar as
primeiras sentenças.
Vamos ver o que diz o douto sábio dos sábios do Direito brasileiro. Vamos ver o que pensaria sobre o embate o notável Ruy Barbosa, a Águia de Haia!
Escutemos o GRANDE RUY:
“Apanhar-se em contradição, o sujeito que tem a coragem infame de
variar de opinião, é o prazer dos prazeres. Se os deuses houvessem
reservado como privilégio divino essa faculdade, cada consumidor
brasileiro de papel seria um Prometeu absorto em escalar as
nuvens, não à procura do céu, mas em busca da prenda celeste de
escarafunchar divergências de ontem para o hoje nas opiniões alheias.
Quando se topa, nas letras remexidas, com um desses achados preciosos, é
dia de festa, ilumina-se a casa, leva à boca o megafone e se anuncia
ao longe que o adversário está esmagado.
Não há entretanto inutilidade mais inútil. Os homens de siso e
consciência riem destas malícias. Só a ignorância ou a imbecilidade não
se contradizem; porque não são capazes de pensar.
Só a vulgaridade e a esterilidade não variam; porque são a eterna
repetição de si mesmas. Só os sábios baratos e os néscios caros podem
ter o curso das suas ideias igual e uniforme como os livros de uma casa
de comércio; porque nunca escreveram nada seu, nem conceberam nada
novo.
A sinceridade, a razão, o trabalho, o saber não cessam de mudar: não há
outra maneira humana de acertar e produzir. Varia a fé; varia a
ciência; varia a lei; varia a justiça; varia a moral; varia a própria
verdade; varia nos seus aspectos a criação mesma; tudo, salvo a
intuição de Deus e a noção dos seus divinos mandamentos, tudo varia. Só
não variam o obcecado, ou o fóssil, o ignorante ou o néscio, o maníaco
ou o presunçoso.
Pode ser que no miolo de um compilador caiba inteiro o imenso universo
jurídico, petrificado, imutabilizado e catalogado nas suas regras, nas
suas hipóteses e nos seus resultados. Tirante, porém, essas cabeças
privilegiadas, tudo no direito é mudar constantemente; porque o direito
resulta da evolução, e a envolver consiste no variar.
Há os grandes princípios, que formam a estrutura permanente desse mundo;
mas, na vasta atmosfera de ideias que o envolve, nas grande correntes
dos sistemas, que o sulcam, nos maravilhosos fenômenos criadores, que o
animam, em todas as organizações que o povoam, em todos os resultados
que o enriquecem, tudo se transmuta e renova e transforma dia a dia.
De dia em dia esses grandes princípios envolvem, progridem e cambiam,
na interpretação, aplicação e reprodução, que lhes constituem a vida
real. Não há decretos, que se não revoguem, nem decisões, que se não
alterem, nem sentenças, que se não reformem, nem arestos, que se não
cancelem, ou doutrinas, que não passem, lições, que não desmereçam,
axiomas, que não caduquem.
Os textos, os códigos, as constituições, guardado o mesmo rosto e a
mesma linguagem, na sua inteligência e ação continuamente se vão
modificando: significam hoje o contrário do que ontem significavam;
amanhã exprimirão coisa diversa da que hoje estão exprimindo; e, neste
contínuo acomodar-se às exigências das gerações sucessivas, tomam,
sucessivamente, a cor das épocas, das escolas, dos homens, que os
entendem, comentam ou executam.
De sorte que, na tribuna do legislador, na cadeira do lente, na banca
do causídico, no pretório do juiz, a palavra, as mais das vezes, não
faz senão registrar as mutações e alternativas, em que direis consistir
a essência mesma de nosso pensamento e atividade.
Assim que, debaixo do céu, tudo obedece a essa eterna lei de
transmutação incessante das coisas. Se nihil sole novum, também
poderíamos dizer que nihil sub sole constans. Se todo o mundo se compõe
de contradições , dessas contradições é que resulta a harmonia do
mundo. Se das variações pode emanar o erro, sem as variações o erro não
se corrige. A boa filosofia é a de Joubert, quando nos aconselha que,
se por amor da verdade, houvermos de cair em contradições, não
vacilemos em nos expor a elas de corpo e alma. Se “a razão nunca está
em contradição consigo mesma, quando segue as suas leis”, como dizia o
honesto Julio Simon, a única espécie de contradição, de que o espírito
terá receio, é a de se empedernir no erro, quando enxerga a verdade.
O homem não está em contradição consigo mesmo, senão quando o está com a
sua natureza moral, que o ensina a considerar-se desonrado, quando
atina com a verdade, e se obceca no erro. É assim que o nosso próprio
organismo vive,mudando toda a hora, sem mudar nunca; porque da sua
identidade realmente não muda, senão quando, quebradas as suas leis
orgânicas pela doença ou pela morte, deixa de eliminar o que deve
eliminar, e absorver o que lhe convém absorver.
Mas, se neste ir e vir contínuo e nesse incessante mudar giram todos os
viventes, como todas as coisas, não haverá, talvez, nenhum domínio da
vida, em que tanto suba de ponto a instabilidade, quanto nessas
incomensuráveis regiões onde impera o direito, nas circunstâncias que o
realizam, nos elementos que o definem, nas fórmulas que o regem, nas
interpretações que o esclarecem, nas soluções que o aplicam. Por isto,
não muda somente a jurisprudência nacional, com o variar dos tribunais,
não muda só a de cada tribunal com a mudança de seus membros, senão
também a de cada juiz, muitas vezes, na mesma causa, de um a outro
julgamento, e não raras com toda a razão; pois justamente para isso é
que a lei nos assegura, não só as apelações, de uma a outra instância,
mas os embargos, decididos pelo mesmo magistrado, a cuja sentença as
opomos.
Pois, se a toga do magistrado não se deslustra, retratando-se dos seus
despachos e sentenças, antes se relustra, desdizendo-se do sentenciado
ou resolvido, quando se lhe antolha claro o engano, em que laborava, ou
a injustiça, que cometeu, não compreendemos que caiba no senso comum
dar em rosto a um jurista, ou a um advogado com o repúdio de uma
opinião outrora abraçada.
E, se, como no caso, essa opinião era, não uma tese consagrada, mas uma
novidade ainda imatura, se nem se sustentara com a tese do pleito, nem
constituía argumento essencial numa demonstração, mas apenas a
auxiliava, e lhe era acessória, óbvio parece que a ‘semrazão’ dobra e
tresdobra em estranheza”.
Petrópolis, fevereiro de 1917
RUY BARBOSA
RUY BARBOSA
Ainda o RUY:
“O bom senso humano, em todos os tempos, tem reconhecido não ser lícito
abandonar a sorte da lei comum e dos direitos por ela assegurados às
contingências do julgamento por um só tribunal. Daí a concepção das
instâncias, dos recursos e, especialmente, das apelações, destinadas a
corrigirem, mediante segundo exame do caso em cada lide, os vícios,
omissões e nulidades do processo, os erros, abusos e injustiças da
sentença.
”Apellandi usus quam sit frequens quamque necessarius,nemo est qui
nesciat, quippe cúm iniquitatem judicantium vel imperitiam recorrigat.”
(Fr. I D. de appellationibus, XLII I.)
Ninguém há, que não saiba, diz o fragmento do texto de Ulpiano
incorporado neste lance das Pandecas, “ninguém há, que não saiba quão
frequente e quão necessário é o uso de apelar, remédio que se criou
para corrigir a iniquidade e reparar a perícia dos julgadores”.
Desta noção de justiça rudimentar só discrepou a grande matriz do nosso
direito civil e do nosso direito judiciário, a jurisprudência romana,
em outras épocas tenebrosas como as de Calígula, que vedou as apelações, e Nero, que as impediu (…)”.
Petrópolis, fevereiro de 1917
RUY BARBOSA
RUY BARBOSA
*A jornalista, para tornar a
leitura acessível a todos, atualizou alguns termos para a linguagem
mais corrente, como, por exemplo, trocar “empeceu” por “impediu”.
Hildegard Angel*comtextolivre
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