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Ser de esquerda é não aceitar as injustiças, sejam elas quais forem, como um fato natural. É não calar diante da violação dos Direitos Humanos, em qualquer país e em qualquer momento. É questionar determinadas leis – porque a Justiça, muitas vezes, não anda de mãos dadas com o Direito; e entre um e outro, o homem de esquerda escolhe a justiça.
É ser guiado por uma permanente capacidade de se estarrecer e, com ela e por causa dela, não se acomodar, não se vender, não se deixar manipular ou seduzir pelo poder. É escolher o caminho mais justo, mesmo que seja cansativo demais, arriscado demais, distante demais. O homem de esquerda acredita que a vida pode e deve ser melhor e é isso, no fundo, que o move. Porque o homem de esquerda sabe que não é culpa do destino ou da vontade divina que um bilhão de pessoas, segundo dados da ONU, passe fome no mundo.
É caminhar junto aos marginalizados; é repartir aquilo que se tem e até mesmo aquilo que falta, sem sacrifício e sem estardalhaço. À direita, cabe a tarefa de dar o que sobra, em forma de esmola e de assistencialismo, com barulho e holofotes. Ser de esquerda é reconhecer no outro sua própria humanidade, principalmente quando o outro for completamente diferente. Os homens e mulheres de esquerda sabem que o destino de uma pessoa não deveria ser determinado por causa da raça, do gênero ou da religião.
Ser de esquerda é não se deixar seduzir pelo consumismo; é entender, como ensinou Milton Santos, que a felicidade está ancorada nos bens infinitos. É mergulhar, com alegria e inteireza, na luta por um mundo melhor e neste mergulho não se deixar contaminar pela arrogância, pelo rancor ou pela vaidade. É manter a coerência entre a palavra e a ação. É alimentar as dúvidas, para não cair no poço escuro das respostas fáceis, das certezas cômodas e caducas. Porém, o homem de esquerda não faz da dúvida o álibi para a indiferença. Ele nunca é indiferente. Ser de esquerda é saber que este “mundo melhor e possível” não se fará de punhos cerrados nem com gritos de guerra, mas será construído no dia-a-dia, nas pequenas e grandes obras e que, muitas vezes, é preciso comprar batalhas longas e desgastantes. Ser de esquerda é, na batalha, não usar os métodos do inimigo.
Fernando Evangelista

segunda-feira, março 03, 2014


Trote – tradição ou humilhação?


Trote – tradição ou humilhação?


Importado da Europa, o trote permanece forte no Brasil. Apesar dos episódios violentos e humilhantes registrados todos os anos, nem universidades nem sociedade se empenham para acabar com a prática
Por Anna Beatriz Anjos
Na última segunda-feira (10), o ano letivo se iniciou para algumas instituições particulares de ensino superior. Uma delas é a Faculdade de Comunicação Social Cásper Líbero, que ocupa o famoso número 900 da Avenida Paulista, o centro financeiro de São Paulo. Os alunos dos cursos de Jornalismo, Publicidade e Propaganda, Rádio e TV e Relações Públicas deram boas-vindas aos seus calouros com o tradicional trote. Tanto pela manhã como à noite, o que se via nos arredores do imponente prédio da TV Gazeta, que abriga a faculdade, eram jovens pintados e sujos pedindo dinheiro nos semáforos.
A polêmica começou no dia seguinte, quando as fotos da festa começaram a ser divulgadas nas redes sociais. Entre imagens de meninos e meninas sorridentes, algumas se destacaram. Em uma delas, um rapaz aparece amarrado, com fita isolante, a um poste. Noutras, garotas simulavam sexo oral com bananas e pepinos, a mando de seus veteranos. Os flagras vieram acompanhados por relatos de outros “excessos”: bixos e bixetes com roupas picotadas, por vezes quase nus, e calouros bêbados “além da conta”.
(Foto: Reprodução/Facebook)
Faculdade Cásper Líbero, fevereiro de 2014: segundo relatos em redes sociais, meninas foram induzidas por seus veteranos/as a colocar pepinos e  bananas na boca (Foto: Reprodução/Facebook)
Como era de se esperar, as fotos rodaram a internet e ganharam as manchetes dos grandes portais. Folha de São Paulo, Estadão, G1, Yahoo, UOL… Gilberto Dimenstein também se posicionou. Em meio a discussões acaloradas em grupos do Facebook e ao estardalhaço da imprensa, um texto trouxe fôlego ao debate. A jornalista Bianca Santana, formada na Cásper Líbero e recém-contratada professora da instituição, escreveu, em seu blog no portal Brasil Post: “Entendo como improvável que estudantes de comunicação, bastante conectados, não tenham visto as fotos do adolescente negro, preso pelo pescoço em um poste, trazendo à tona nossas sombras de um passado escravocrata e um presente racista. Muito simbólico estudantes trazerem essas sombras à tona, não por um viés crítico ou reflexivo, mas pela humilhação de outro estudante. Se não foi um apoio intencional ao linchamento do adolescente, à degradação de seres humanos, foi, no mínimo, inconsciente. O que não é menos grave”.
Tanto a Cásper Líbero, como o Centro Acadêmico Vladmir Herzog (CAVH), que representa seus estudantes, divulgaram notas de repúdio aos atos ocorridos durante a recepção aos calouros. A faculdade os classificou como “excessos absolutamente inadequados e reprováveis sob todos os aspectos”. Já o CAVH declarou que tais ”episódios não podem e nem devem passar desapercebidos, tampouco serem considerados normais”. Os próprios alunos criticaram o ocorrido. “Bixos, a Cásper não é isso, vocês vão ver! Por mais que vocês tenham passado por isso ontem, não repitam com os seus bixos no ano que vem”, postou uma veterana em rede social.
Os abusos cometidos pelos estudantes de uma das maiores escolas de comunicação do Brasil resgataram a discussão sobre os trotes universitários. Apesar de não ter havido casos de violência física grave, a agressão simbólica foi intensa. Por que, afinal, o trote vexatório e humilhante ainda acontece?
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Definitivamente, não é a primeira vez
O trote é um ritual antigo, que existia antes de ser apropriado pelos universitários. “Talvez sua origem mais remota sejam os ritos de passagem das sociedades arcaicas. Mas Platão, por exemplo, já fala da existência de trotes na academia, em Atenas”, explica Antônio Ribeiro de Almeida Júnior, professor da Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz (ESALQ-USP), doutor em Sociologia e um dos autores do livro Universidade, Preconceitos e Trote. A prática se converteu em tradição, contudo, nas universidades europeias medievais. “Os estudantes urbanos queriam ‘curar a bestialidade’ dos de origem rural”, ressalta o filósofo Paulo Denisar Fraga, professor da Universidade Federal de Alfenas (UNIFAL-MG) e autor do livro A violência no escárnio do trote tradicional.
(Foto: Reprodução/Facebook)
Ainda no trote  da Cásper Líbero, nesta semana, calouro foi amarrado a  um poste  em plena Avenida Paulista (Foto: Reprodução/Facebook)
O primeiro registro que se tem de um trote aplicado com essa conotação data de 1342, na Universidade de Paris. Glauco Mattoso, em O calvário dos carecas: história do trote estudantil, relata que, àquela época, já existiam rixas entre alunos alemães e parisienses que frequentavam o mesmo espaço. Foi em território germânico, entretanto, que as práticas mais severas se tornaram recorrentes. “Os veteranos alemães da universidade de Heidelberg, em 1491, identificavam o novato como uma fera que deveria ser aculturada por meio de provações, tais como beber uma taça de vinho que continha, na realidade, urina, ou mesmo ter os pelos do nariz e cabelos arrancados, pois eram considerados animais peludos que deveriam ser depilados em nome dos costumes ‘civilizados’”, conta Antônio Zuin, professor do Departamento de Educação da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) e autor do livro O trote na universidade: passagens de um rito de iniciação.
Segundo Fraga, o trote chegou ao Brasil por influência dos portugueses, que o praticavam em suas universidades, principalmente em Coimbra. “Há relatos de que até mesmo professores novos eram vítimas”, aponta. Por aqui, o primeiro caso grave foi a morte do calouro Francisco Cunha e Meneses, da Faculdade de Direito do Recife, em 1831. Ele foi esfaqueado por outro novato, Joaquim Serapião de Carvalho. Almeida organizou, em seu portal Antitrote, uma cronologia dos episódios envolvendo violência e recepção a novos alunos em universidades brasileiras.
Na linha do tempo, estão elencados diversos casos sérios, mas o de maior repercussão até hoje no país é o de Edison Tsung Chi Hsueh, encontrado morto na piscina da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Era período de início das aulas, em fevereiro de 1999, e, na noite anterior, os veteranos haviam preparado, na sede do centro acadêmico, uma festa para saudar os novos. Na ocasião, onde estiveram presentes cerca de 200 estudantes, o trote foi aplicado. Testemunhas relataram à polícia que havia muitas pessoas alcoolizadas e que alguns veteranos obrigaram calouros a entrar na piscina. Um deles foi Edison, que se afogou. Em 2006, o processo que apurava sua morte foi arquivado pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ), sob alegação de insuficiência de provas para condenar os quatro acusados pelo crime – à época, dois eram médicos e dois eram alunos. Em junho de 2013, o Supremo Tribunal Federal (STF) confirmou o trancamento da ação.
Mais recentemente, outros eventos similares chocaram o país. Em 2005, um ingressante do curso de Agronomia da Universidade Federal de Uberlândia (UFU) foi obrigado a deitar sem camisa sobre um formigueiro e levou cerca de 250 picadas. Ele chegou a correr risco de morte, conforme disse à imprensa Osvaldo Toshiyuski Hamawaki, coordenador do curso. Um ano depois, a instituição decidiu expulsar dois alunos considerados mentores da agressão e suspendeu por 4 meses outros 13 que tiveram envolvimento com o ato.
(Foto: Arquivo pessoal)
Edison Tsung Chi Hsueh foi encontrado morto na piscina da Faculdade de Medicina da USP, em 1999. Na noite anterior, veteranos obrigaram os novos alunos a entrar na piscina. Edison se afogou (Foto: Arquivo pessoal)
Passados alguns anos, em 2010, os trotes violentos voltaram a se destacar. No primeiro dia de aulas da Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM), dois calouros se desentenderam e um deles deixou a briga com o nariz e os dentes quebrados. Pessoas que presenciaram a confusão contaram que a vítima apanhou com chutes na cabeça depois de atirar água nos colegas com uma arma de brinquedo. Também em 2010, um rapaz de 17 anos passou 20 horas em coma alcoólico. Ele havia acabado de ser aprovado no curso de Geografia da Universidade Federal do Paraná (UFPR) e foi forçado a ingerir álcool em grande quantidade. Em ambos os casos, as instituições de ensino envolvidas instauraram sindicâncias internas para investigação dos fatos.
Diante da recorrência dessas práticas violentas, medidas em âmbito legal foram tomadas. Os estados de São Paulo, Santa Catarina, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Espírito Santo, Minas Gerais, Paraíba, Paraná e Rio de Janeiro têm leis estaduais que proíbem o trote universitário agressivo. Um projeto de lei em nível nacional (nº 1.023), já aprovado pela Câmara Federal, tramita agora no Senado. Ele prevê multas (que variam de mil a 20 mil reais), suspensão e cancelamento de matrícula para quem for pego praticando o trote.
“As barbaridades que ocorrem nos trotes aparecem como comemoração, alegria”
Normalmente encarado como celebração pelo ingresso ao sonho da vida acadêmica, o trote universitário não é visto dessa forma por vários de seus estudiosos. “O trote é um processo seletivo para você entrar em um grupo – o dos trotistas – que exige obediência e silêncio. Não é pra entrar na universidade, é pra entrar nesse grupo específico que disputa o poder e o controle da universidade. Esse grupo exige o trote violento. O teste tem que ser dolorido, só assim será de fato visto como um teste”, indica Antonio Ribeiro de Almeida Junior.
Para que o calouro se submeta às ordens dos veteranos, uma relação de serventia é criada. Os novos alunos são colocados em um patamar abaixo, tratados como inferiores. “Desde que La Boétie escreveu o Discurso da Servidão Voluntária, não se deve esquecer que a violência pode contar com o elemento da submissão consentida”, explica Fraga. Dessa forma, fica mais difícil para os novatos se recusarem a fazer algo que não querem.
Essa hierarquia é legitimada pelo próprio ambiente universitário. “A forma como o veterano recebe seu calouro tem muita relação com o modo como impera, na universidade, um caldo de cultura autoritário no qual o veterano se julga, na condição de portador da ‘cultura’, no direito de domesticar o calouro, não por acaso chamado de bicho”, defende Zuin.
(Foto: Divulgação)
A “caloura Chica da Silva” apareceu durante o trote de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) em 2013. A instituição precisou se manifestar sobre as acusações de racismo (Foto: Divulgação)
A blindagem de tradição que envolve as práticas trotistas também camufla o universo de preconceitos que reúnem. Almeida destaca, mais uma vez, o caráter irônico que eles assumem. “No pedágio, você pega os alunos de primeiro ano e coloca na condição do mendigo. É um preconceito de classe. Analisando os apelidos, percebe-se que fazem referência à origem étnica, opção religiosa, sexual, características físicas. Por exemplo, se o sujeito é muito alto, vai se chamar algo como Bambu, se é negro, vão falar que é a Branca de Neve. Essas barbaridades que ocorrem nos trotes aparecem como comemoração, alegria”. Para Fraga, “os preconceitos servem para legitimar humilhações e agressões nesse ritual”.
Apesar do trote ser praticado tradicionalmente na maioria das instituições de ensino superior, sua modalidade severa é mais comum em algumas delas, que guardam certas semelhanças entre si. “Normalmente, ocorre em faculdades que oferecem cursos de grande prestígio social, como medicina, engenharia, direito. Ou, então, em cursos que têm histórico de predominância masculina, como é o caso de Agronomia, na ESALQ”, esclarece Almeida.
Em alternativa aos costumes de sujar os novos estudantes e fazê-los sair pelas ruas em busca de dinheiro, que será gasto em bebidas alcoólicas, as universidades lançaram a moda do “trote solidário”. Ele consiste em um conjunto de ações voluntárias, como doação de sangue, alimentos, roupas, entre outros. Isso pode representar um avanço em comparação aos atos abusivos já registrados ao longo dos anos, mas, ainda assim, não é suficiente. “Mesmo o trote dito solidário possui no seu âmago essa ideia da domesticação do calouro. E por isso não pode ser identificado como a alternativa definitiva para a inserção dele na vida universitária”, comenta Zuin. “Há muito ainda a ser feito nas universidades, mas, antes de mais nada ,seria preciso reconhecer que a sua própria estrutura muitas vezes autoritária contribui para a perpetuação da barbárie do trote”, reforça.
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*Crédito da foto de capa: Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF)
*revistaforum

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