Ucrânia e Venezuela: diferenças
Diferenças entre Venezuela e Ucrânia
viCman/Rebelión |
Não quero plagiar a Dilma,
para quem “a Venezuela não é a Ucrânia”, mas tentar estabelecer as
diferenças dos dois processos, ambos empurrados para a guerra civil, em
função do jogo de interesses das potências ocidentais e suas gigantescas
transnacionais petrolíferas e midiáticas.
Comecemos pela Venezuela. Rica em petróleo, esta nação,
situada ao noroeste de nosso Brasil, é sacudida por intermitentes
tumultos, desde 1999. Nesse ano, ela abandonou sua condição de quase
protetorado dos Estados Unidos. Por isso, derrotou o analfabetismo, a
miséria absoluta em que viviam mais de 50% da população, o desemprego e a
subnutrição.
Hoje, o país é o segundo da América Latina em número de universitários
por habitante, vencendo mesmo a culta Argentina, só perdendo para Cuba.
Para chegar a esta situação confortável, o governo bolivariano gastou
150 bilhões de dólares da conta petróleo. Era o dinheiro que ia, por
baixo do pano, para as transnacionais petrolíferas, os tubarões
estadunidenses e europeus, com sobras gordas para a oligarquia local.
Esses setores não se conformam com a perda da galinha dos ovos de ouro
e, com a mídia como principal aríete arremetem, desde então toda sorte
de ataque às estruturas do país.
À diferença da Ucrânia, país eslavo a 10 mil km de distância e que agora
cai, pela segunda vez nas mãos da direita (a primeira foi com a
revolução laranja, responsável pela introdução de um neoliberalismo
selvagem que desmantelou a indústria e fez explodir o -desemprego), o
país sul-americano repeliu todas as arremetidas forâneas.
Com férrea determinação exercida por uma liderança política de
descortino só comparável a Fidel Castro, coisa que os ucranianos estão
longe de demonstrar, na atualidade, o presidente Hugo Chávez conseguiu,
nos seus quase 14 anos de poder, aprofundar os avanços sociais e de
soberania, no que foi reforçado por uma política de integração com os
demais presidentes progressistas da região, inclusive do Brasil e da
Argentina, os dois maiores do subcontinente. Chávez morreu de câncer,
logo depois de ganhar com folga sua terceira eleição, mas passou o poder
a seu fiel escudeiro, Nicolás Maduro, também eleito democraticamente e
que tem exibido igual domínio das rédeas do processo.
É importante que se recorde as investidas anteriores contra o regime
bolivariano, muito mais graves do que a atual, para que não caiamos no
simplismo de engolir as informações distorcidas de que o governo do
vizinho esteja a pique. Em seguida, vamos fazer a mesma introspecção na
situação ucraniana
11/04/2002 - Hugo Chávez, há três anos no governo, é
deposto por uma passeata de meio milhão de pessoas no rumo do Palácio
Miraflores. No meio do cortejo anti-governista, 11 manifestantes tombam
mortos por tiros disparados por sicários a mando da cúpula oculta do
próprio movimento, como se comprovou depois. As redes de TV e rádio
privadas suspendem suas novelas e até publicidade para concentrar-se na
cobertura da passeata de mais de 10 horas e no incitamento sistemático
da população contra o presidente.
Supostamente indignados com o massacre, os militares dão o golpe e
prendem Chávez, ele próprio um militar. Mas isto só durou 48 horas,
tempo suficiente para os golpistas mostrarem seu rosto: fechando o
Parlamento, depondo os governadores eleitos de 23 Estados e
estabelecendo total censura de informação. Aqui, entra um elemento
fundamental não disponível hoje na Ucrânia: o povo organizado, que,
mesmo debaixo da maior auto-censura da mídia, ganha as ruas, desta vez
com dois milhões de pessoas, arranca Chávez da prisão e o restitui ao
Palácio de Miraflores.
12/2002 e 02/2003 - Um lockout, greve patronal,
conhecido como o paro petrolero, tenta paralisar, durante 63 dias,
rigorosamente, todas as atividades do país, a começar da PDVSA, a
empresa de petróleo e responsável por 90% da renda do país. Fecham
lojas, supermercados, shoping centers, escolas, estádios de futebol,
cinemas. Os venezuelanos não puderam sequer comemorar o Natal e o Ano
Novo. Faltou gasolina e o desabastecimento ameaçava causar a fome.
Chávez utilizou o Exército para abrir e operar os supermercados, invadiu
os navios petroleiros em greve no alto mar , fazendo-os funcionar, e
assumiu o controle de câmbio, para deter a evasão de divisas. Ao mesmo
tempo, a população permaneceu mobilizada nas ruas e em casa, para
respaldar as medidas governamentais. 80 generais da ativa e da reserva
sublevaram-se, tomando a Praça Altamira, a mesma em Chacal, que hoje
serve de cenário para os atos violentos das atuais manifestações,
atribuídas a estudantes. No início de fevereiro de 2003, Chávez, já no
domínio da situação, demite mais de 20 mil engenheiros e dirigentes da
PDVSA, por alta traição. Também, reforma mais de 300 altos ofiiciais, e
segue com sua revolução bolivariana. Mas o país tinha sofrido um
encolhimento no PIB de cerca de 60%.
15/08/2004 - Data do referendo revogatório, exigido
pela oposição para cassar o mandato de Chávez, em meio a uma campanha de
desmoralização, conduzida pelos meios de comunicação de praticamente
todo o planeta, dominando mais de 90 da audiência. Hugo Chávez ganha o
referendo por 58% e aproveita a oportunidade para aprofundar suas
reformas sociais e econômicas. Os extremistas da oposição tentam
mergulhar o país em nova crise, mas vêem-se desmoralizados em suas
alegações de fraude eleitoral: a lisura do pleito havia sido atestada
por observadores internacionais, inclusive o Center Jimmy Carter, do
ex-presidente dos Estados Unidos.
27/05/2007 - Por não ter renovado a licença da RCTV
(Rede Caracas de Televisión), a maior rede de TV do país, em
funcionamento desde 1953, Chávez sofre virulenta campanha internacional,
seguida de atos vandálicos nos principais centros do país. O
presidente, que acusou a TV de insistir no golpismo contra as
instituições, manteve sua decisão de ocupar militarmente o canal e fazer
dele uma nova rede do governo, a TVS, que se juntou à Telesur e à VTV.
Mas ele ainda ainda teve de aguentar alguns dias de tumulto e atentados a
bens públicos, para dominar anarquia que se instalou nos bairros ricos
de Caracas e outras cidades, tendo, para isso, de utilizar um
dispositivo de 120 mil soldados.
25/08/2012 - O presidente Hugo Chávez já estava
gravemente enfermo, quando uma explosão criminosa na refinaria Amuay, a
maior do mundo, causa a morte de 48 pessoas e ferimentos em uma centena.
Uma investigação concluiu que o vazamento responsável pelo incêndio foi
propositado, como frisou o ministro das Minas e Energia e presidente da
PDVSA, Rafael Ramírez.
14/04/2013 - Nicolás Maduro se elege presidente,
sucedendo a Hugo Chávez, falecido em cinco de março, com apenas 1,5%, ou
300 mil votos, de vantagem sobre Henrique Capriles Radonski, candidato
único das oposições. Capriles não aceita o resultado, faz novas
acusações de fraude e convoca seus aliados a manifestar-se nas ruas.
Atos vandálicos contra escolas e postos de saúde, onde atuam médicos e
professores cubanos, redundam na morte de 11 pessoas e cerca de 80
feridos, em 20 dias de distúrbios que assaltaram várias capitais
venezuelanas. Maduro manda recontar os votos e assume oficialmente no
dia 19 do mesmo mês, iniciando um mandato de seis anos.
11/2013 – Uma explosão de preços, com remarcações, que
chegaram a atingir, em alguns casos, até 12 mil por cento, aliada à
escassez de produtos de primeira necessidade, levou o presidente Nicolás
Maduro a decretar uma série de medidas. Elas obrigaram os comerciantes,
desta vez pressionados pelo Eército e o povo na rua, a restabelecer os
preços antigos e avender os produtos que haviam escondido em seus
depósitos.
“Esta guerra econômica foi decidida na Casa Branca. Faz parte dos
fatores de poder nos Estados Unidos, acreditando que tinha chegado o
momento de destruir a revolução bolivariana”, disse o presidente. A
manobra, entretanto, não foi capaz de evitar nova vitória do governo na
eleição municipal de dezembro, quando os chavistas ganharam por 11,5%,
dez pontos a mais que a estreita margem da eleição presidencial, em que
concorreram Maduro e Henrique Capriles, este candidato único da
oposição.
03/12/2013 – A cinco dias da eleição municipal, quase
toda a Venezuela, incluindo a capital, Caracas, ficou sem luz devido a
um colapso no fornecimento de energia elétrica. O apagão ocorreu durante
um discurso televisivo do presidente Nicolás Maduro e uma partida de
basquete. Maduro entendeu tratar-se de uma ação subversiva planejada de
fora, e ordenou colocar as forças armadas e de segurança em estado de
alerta máximo.
23/01/2014 – Renunciando à via eleitoral e institucional, a oposição se bifurca, tendo a vertente mais extremista , liderada por Leopoldo López,
ex-agente da CIA, novamente assaltado as ruas, incendiando escolas,
postos de saúde, estações do metrô e atentado contra as redes elétricas.
Os distúrbios já causaram 15 mortos e tendem a continuar, mas o governo
bolivariano, parece novamente no domínio do processo, inclusive porque
os atos são de puro terrorismo e são rechaçados por 85% da população.
Esta sofre com o trancamento de ruas, depredações, sujeira e detritos
infestando as principais vias do país.
Agora analisemos a Ucrânia. Um presidente tíbio e
enredado em profundas contradições foi incapaz de domar uma turba
violenta de leões de chácara, lutadores de boxe e grupos assumidamente
nazistas que havia três meses ocupava, incendiava e assassinava soldados
e adversários, na praça do Parlamento, onde também se situam os
principais prédios públicos.
Viktor Ianukovitch viu-se finalmente deposto por um golpe parlamentar e
fugiu da capital, deixando o poder com os insurretos, financiados e
treinados pela Europa e os Estados Unidos, interessados nesta área
altamente estratégica e tradicionalmente aliada da Rússia.
Tomaram o poder? Longe disso. No máximo, podem ter precipitado a
partição daquele imenso país, o maior em território e celeiro da Europa.
Talvez nem isso consiga, porque, como ocorreu com a revolução laranja,
de 2004, quando assumiram o poder formal em Kiev, tiveram de sair
correndo três anos depois, porque os ucranianos não aceitaram a
dilapidação de seu patrimônio e a receita do FMI.
Os principais líderes laranjas, o corrupto Viktor Yushchenko e a
bilionária Yulia Timoshenko, até há pouco amargavam na prisão,
condenados por desvio de verbas, isso depois de terem sido escorraçados
nas urnas pelo mesmo tipo de eleitorado iludido que hoje aclama os
“heróis da Praça Maidan”, outro nome dado à Praça da Independência..
Menos de uma semana depois da queda de Yanukovicht lá já estavam os
técnicos do FMI para aplicar uma política fiscal, com o mesmo
receituário que nos aplicavam por aqui, com arrocho e congelamento
salarial, cortes nos programas sociais, recessão econômica e
privatização do Estado. O país tem de pagar só este ano 35 bilhões de
dólares e a Europa e Estados Unidos já avisaram que o dinheiro tem de
ficar a cargo dos ucranianos.
A Rússia, que se habilitara a pagar a conta em contrapartidas bem mais
suaves, certamente vai retirar a proposta, além de suspender as parcelas
mais gordas do empréstimo de 15 bilhões prometidos ao antigo governo.
Isolada na Praça Maidan, a turba que controla a Praça da Independência,
sempre falando em nome da sociedade civil e indicando os nomes do novo
governo, terá também pela sua frente a ameaça concreta de separação das
regiões leste e sul, fronteiriças ao antigo território soviético, e onde
estão concentradas as indústrias. Os nacionalistas já saíram às ruas
para pedir a autonomia da Crimeia, outro território rico à beira do Mar
Negro, onde uma base naval, reforçada pelo governo do presidente
Vladimir Putin, deverá garantir as aspirações dos 60% da população de
origem russa daquele território.
A Ucrânia é um país geográfica, étnica, econômica, cultural e
militarmente dividido. Quase um quarto da população, vivendo nas regiões
sul e leste do país, é de origem russa e fala a língua de seus
antepassados, de quem se consideram aliados incondicionais, inclusive
por uma questão de sobrevivência.
Finalmente, há a questão estratégica. O governo Putin já avisou que não
vai aceitar a aberta ingerência da Europa e dos Estados Unidos, na sua
fronteira, sobretudo agora, que já recuperou boa parte de seu poderio
militar, destroçado depois da aventura da Perestroika e do consequente
colapso do então Bloco Soviético.
Como se sabe, o trunfo russo não reside apenas na força militar e
atômica que, segundo o politólogo Moniz Bandeira, autor do livro A Segunda Guerra Fria,
recentemente lançado pela Editora Civilização Brasileira, permaneceu
quase intacto depois da dissolução do bloco soviético. Ele está também
em mais de 50% da energia (petróleo e gás natural) com que a Rússia
abastece a Europa, através o gasoduto, que inclusive passa pela Ucrânia,
país altamente dependente neste setor e que agora terá que se virar
para pagar o preço real pelo seu uso e não mais o preço camarada de que
desfrutava até a “revolução” de Maidan.
Como o fez com a Geórgia, que depois de tomada pelo Ocidente, em 2003,
Putin dividiu em três, propiciando a independência da Ossétia e da
Abecásia, estas ficando sob influência russa. O presidente da antiga
segunda potência também anunciou seu propósito de instalar bases militares na Venezuela, Cuba e Nicarágua, da mesma maneira que os Estados Unidos fizeram com seus vizinho na região do Cáucaso.
Está reinstalada a guerra fria, dirão alguns, mas pelo menos estes
países, sob ameaça permanente de invasão pelo Exército norte-americano,
terão uma proteção contra aventuras intervencionistas, como Cuba teve no
passado com a velha União das Repúblicas Socialistas Soviéticas. Ou
alguém tem dúvida de que a URSS teria impedido a invasão do Iraque,
Afeganistão e a guerra civil na Síria?
*Turquinho
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