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Ser de esquerda é não aceitar as injustiças, sejam elas quais forem, como um fato natural. É não calar diante da violação dos Direitos Humanos, em qualquer país e em qualquer momento. É questionar determinadas leis – porque a Justiça, muitas vezes, não anda de mãos dadas com o Direito; e entre um e outro, o homem de esquerda escolhe a justiça.
É ser guiado por uma permanente capacidade de se estarrecer e, com ela e por causa dela, não se acomodar, não se vender, não se deixar manipular ou seduzir pelo poder. É escolher o caminho mais justo, mesmo que seja cansativo demais, arriscado demais, distante demais. O homem de esquerda acredita que a vida pode e deve ser melhor e é isso, no fundo, que o move. Porque o homem de esquerda sabe que não é culpa do destino ou da vontade divina que um bilhão de pessoas, segundo dados da ONU, passe fome no mundo.
É caminhar junto aos marginalizados; é repartir aquilo que se tem e até mesmo aquilo que falta, sem sacrifício e sem estardalhaço. À direita, cabe a tarefa de dar o que sobra, em forma de esmola e de assistencialismo, com barulho e holofotes. Ser de esquerda é reconhecer no outro sua própria humanidade, principalmente quando o outro for completamente diferente. Os homens e mulheres de esquerda sabem que o destino de uma pessoa não deveria ser determinado por causa da raça, do gênero ou da religião.
Ser de esquerda é não se deixar seduzir pelo consumismo; é entender, como ensinou Milton Santos, que a felicidade está ancorada nos bens infinitos. É mergulhar, com alegria e inteireza, na luta por um mundo melhor e neste mergulho não se deixar contaminar pela arrogância, pelo rancor ou pela vaidade. É manter a coerência entre a palavra e a ação. É alimentar as dúvidas, para não cair no poço escuro das respostas fáceis, das certezas cômodas e caducas. Porém, o homem de esquerda não faz da dúvida o álibi para a indiferença. Ele nunca é indiferente. Ser de esquerda é saber que este “mundo melhor e possível” não se fará de punhos cerrados nem com gritos de guerra, mas será construído no dia-a-dia, nas pequenas e grandes obras e que, muitas vezes, é preciso comprar batalhas longas e desgastantes. Ser de esquerda é, na batalha, não usar os métodos do inimigo.
Fernando Evangelista

sábado, outubro 29, 2011

Slavoj Žižek: “Nosso inimigo é a ilusão democrática”

Anne Applebaum escreveu no Washington Post que os protestos em Wall Street e na Catedral de St Paul são parecidos, “na falta de foco, na incoerência e, sobretudo, na recusa a engajar-se nas instituições democráticas existentes”. “Diferentes dos egípcios” – prossegue ela – “com os quais os manifestantes de Londres e New York comparam-se abertamente (e ridiculamente) nós aqui temos instituições democráticas”. [1]
Claro que, se você reduz os protestos da Praça Tahrir a simples demanda por democracia à moda ocidental, como faz Applebaum, torna-se ridícula qualquer comparação entre Occupy Wall Street e os eventos do Egito: como poderiam os que protestam em Wall Street exigir o que já têm? O que a colunista do Washington Post bloqueia e não vê é a possibilidade de haver descontentamento geral com os sistemas capitalistas globais que assumem formas diferentes aqui e lá.
“Mas num sentido” – Applebaum concede – “o fracasso do movimento internacional Occupy, que não consegue apresentar propostas sólidas de novas leis, é compreensível: as fontes da crise econômica global e suas soluções estão, por definição, fora da competência de políticos locais e nacionais”. E acaba forçada a concluir que “a globalização já começou, visivelmente, a solapar a legitimidade das democracias ocidentais”.
Isso, precisamente, é o que os manifestantes estão mostrando e impondo à atenção de todos: que o capitalismo global solapa a democracia. Conclusão óbvia, daí em diante, é que temos de começar a pensar em meios para expandir a democracia para além da forma que tem hoje, baseada em estados-nação e sistemas multipartidários, e que se mostrou incapaz de gerenciar as consequências destrutivas da vida econômica.
Mas, em vez de dar esse passo adiante, Applebaum muda tudo, culpa os próprios manifestantes que protestam nas ruas, listando as seguintes questões:
Se os ativistas “globais” não tiverem cuidado, acabarão por acelerar o declínio daquele modelo. Os manifestantes gritam em Londres: “Queremos um processo!” Ora, eles já têm um processo: chama-se sistema policial britânico. Se não sabem usá-lo, só conseguirão enfraquecê-lo ainda mais...
O argumento de Applebaum, portanto, parece ser que, dado que a economia global está fora do alcance da política democrática, qualquer tentativa para expandir a democracia para que consiga manejar a economia global... acelerará o declínio da democracia. E o quê, então, devemos fazer? A jornalista sugere que continuemos engajados num sistema político que, segundo ela mesma, não é capaz de fazer o que se espera que faça.
Se há o que não falta hoje, é crítica do capitalismo: estamos inundados de histórias sobre o quanto as empresas poluem cruelmente nosso ambiente; de banqueiros que recebem gordos bônus enquanto seus bancos têm de ser ‘resgatados’ e são salvos com dinheiro público, sobre os pardieiros onde o trabalho de crianças é superexplorado para fabricar roupas baratas que são vendidas em bancas.
Mas há um truque escondido aí: todas essas histórias assumem que a luta contra esses crimes tenha de ser feita no quadro bem conhecido da democracia liberal. A meta (explícita ou implícita) é democratizar o capitalismo, ampliar o controle democrático sobre a economia global, mediante a exposição na mídia, os inquéritos parlamentares, leis mais duras, inquéritos e investigações judiciais etc. Mas não se questiona o quadro das instituições do estado democrático burguês. Esse é preservado, sacrossanto, até nas modalidades mais radicais do “anticapitalismo ético” – o Fórum Social Mundial de Porto Alegre, o movimento de Seattle etc. etc.
Aqui, o insight chave de Marx continua tão pertinente hoje quanto sempre foi: a questão da liberdade não deve ser enquadrada, basicamente, na esfera política – quer dizer, em coisas como eleições livres, judiciário independente, imprensa livre, respeito pelos direitos humanos. A verdadeira liberdade reside na rede “apolítica” das relações sociais, do mercado à família, onde a mudança necessária, para melhorar as coisas, não é alguma reforma política, mas uma mudança nas relações sociais de produção.
Os eleitores não votam para decidir quem será proprietário do quê, ou para decidir sobre as relações entre os trabalhadores numa fábrica. Essas coisas são deixadas entregues a processos fora da esfera política, e é ilusão supor que essas coisas possam ser mudadas com, simplesmente, alguma “ampliação” da democracia: por exemplo, criando bancos “democráticos” controlados pelo povo.
Mudanças radicais nesse campo têm de ser feitas fora da esfera de instrumentos democráticos, como direitos humanos e outros. Esses instrumentos democráticos têm um papel positivo, é claro, mas é preciso ter em mente que todos os mecanismos democráticos são parte de um aparelho de estado burguês previsto para garantir, sem perturbações, o funcionamento da produção capitalista.
Badiou acertou ao dizer que o nome do pior inimigo, hoje, não é “capitalismo”, “império”, “exploração” ou coisas do tipo, mas, sim “democracia”. Hoje, o que impede qualquer genuína transformação das relações capitalistas é a “ilusão democrática”, a aceitação de mecanismos democráticos burgueses como únicos meios legítimos de mudança.
Os protestos de Wall Street são só o começo, mas é preciso começar como já começaram lá, com um gesto formal de rejeição, que é mais importante que seu conteúdo propositivo, porque só um gesto desse tipo pode abrir espaço para novos conteúdos.
Assim sendo, não nos deixemos distrair pela pergunta “Mas o que querem vocês?”. É a autoridade masculina interrogando a mulher histérica: “Você só reclama! Você tem alguma ideia do que você realmente quer?” Em termos psicanalíticos, os protestos são uma explosão histérica que provoca o chefe e mina sua autoridade. E a pergunta do chefe (“Mas o que você quer?”) esconde seu subtexto: “Responda em língua que eu entenda, ou cale a boca!”
Até agora, os que protestam em Wall Street e pelo mundo, têm conseguido muito bem escapar à crítica que Lacan fez aos estudantes de 1968: “Como revolucionários, vocês são histéricas clamando por um novo chefe. Conseguirão”.
Nota dos tradutores
[1] Washington Post, 17/10/2011, em: What the Occupy protests tell us about the limits of democracy
Slavoj Žižek
London Review of Books (Blogs)
Democracy is the enemy
Traduzido pelo Coletivo da Vila Vudu
*Redecastorphoto

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