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Ser de esquerda é não aceitar as injustiças, sejam elas quais forem, como um fato natural. É não calar diante da violação dos Direitos Humanos, em qualquer país e em qualquer momento. É questionar determinadas leis – porque a Justiça, muitas vezes, não anda de mãos dadas com o Direito; e entre um e outro, o homem de esquerda escolhe a justiça.
É ser guiado por uma permanente capacidade de se estarrecer e, com ela e por causa dela, não se acomodar, não se vender, não se deixar manipular ou seduzir pelo poder. É escolher o caminho mais justo, mesmo que seja cansativo demais, arriscado demais, distante demais. O homem de esquerda acredita que a vida pode e deve ser melhor e é isso, no fundo, que o move. Porque o homem de esquerda sabe que não é culpa do destino ou da vontade divina que um bilhão de pessoas, segundo dados da ONU, passe fome no mundo.
É caminhar junto aos marginalizados; é repartir aquilo que se tem e até mesmo aquilo que falta, sem sacrifício e sem estardalhaço. À direita, cabe a tarefa de dar o que sobra, em forma de esmola e de assistencialismo, com barulho e holofotes. Ser de esquerda é reconhecer no outro sua própria humanidade, principalmente quando o outro for completamente diferente. Os homens e mulheres de esquerda sabem que o destino de uma pessoa não deveria ser determinado por causa da raça, do gênero ou da religião.
Ser de esquerda é não se deixar seduzir pelo consumismo; é entender, como ensinou Milton Santos, que a felicidade está ancorada nos bens infinitos. É mergulhar, com alegria e inteireza, na luta por um mundo melhor e neste mergulho não se deixar contaminar pela arrogância, pelo rancor ou pela vaidade. É manter a coerência entre a palavra e a ação. É alimentar as dúvidas, para não cair no poço escuro das respostas fáceis, das certezas cômodas e caducas. Porém, o homem de esquerda não faz da dúvida o álibi para a indiferença. Ele nunca é indiferente. Ser de esquerda é saber que este “mundo melhor e possível” não se fará de punhos cerrados nem com gritos de guerra, mas será construído no dia-a-dia, nas pequenas e grandes obras e que, muitas vezes, é preciso comprar batalhas longas e desgastantes. Ser de esquerda é, na batalha, não usar os métodos do inimigo.
Fernando Evangelista

quarta-feira, junho 09, 2010

A crise européia e a hipocrisia de Wall Street

quarta-feira, 9 de junho de 2010

A crise na Grécia e o cinismo neoliberal



A Grécia, bola da vez da crise capitalista internacional – que não acabou, como já bravateiam os apologistas deste sistema –, está passando por uma autêntica convulsão social. A luta de classes, que muitos também achavam que tinha acabado, está cada vez mais acirrada. Em menos de três meses, já ocorreram cinco greves gerais, com elevados índices de adesão. Os protestos são quase diários, com confrontos violentos entre os trabalhadores e as forças de repressão do estado.

Ninguém consegue projetar qual será o futuro deste país, um dos primos pobres da Europa. Mas há consenso, porém, que a crise será prolongada e que o caos econômico deve contaminar outras nações do continente. Diante deste dilema, os neoliberais de plantão, culpados pelo colapso, não vacilam em apresentar receitas ainda mais amargas para os trabalhadores. Amparados pela mídia, eles difundem que a atual crise decorre dos “gastos públicos” e do “inchaço do estado” – é o que se ouve nos comentários globais de Carlos Sardenberg e de outros adoradores do deus-mercado.

País abdicou da sua soberania

A mentira é descarada, mas ainda engana os ingênuos. A crise da Grécia não é culpa do “estado de bem-estar social”, do Welfare State, mas sim da gula capitalista. Com as suas especificidades, o modelo neoliberal foi implantado neste e noutros países europeus com o desmonte do estado, da nação e do trabalho. O acordo que deu origem ao euro engessou os estados nacionais com as metas fiscais e monetárias que beneficiaram exclusivamente os rentistas. A desregulamentação financeira imposta agora cobra o seu preço, mas o ônus é jogado nas costas dos trabalhadores.

Com o ingresso na Comunidade Econômica Européia (CEE), a Grécia foi obrigada a cumprir as rígidas metas neoliberais e, além disso, renunciou a sua capacidade de emitir a própria moeda. O Banco Central Europeu (BCE), entidade supranacional com total autonomia, é quem determina a política econômica destes países, que abdicaram da sua soberania. As principais vítimas são as nações mais frágeis, reunidas no chamado Piige (Portugal, Irlanda, Itália, Grécia e Espanha). Os países “avançados”, que não abdicaram das suas moedas, são os menos afetados pela crise.

A morte anunciada do euro?

É o caso da Inglaterra, segundo aponta o economista Emiliano Libman, em entrevista ao Instituto Humanitas Unisimos. “Ao não adotar o euro, ela manteve sua soberania monetária... A diferença entre Inglaterra e Grécia é que, diante da grande instabilidade que as decisões de gastos do setor privado produzem, o seu Estado pode intervir”. A Grécia foi punida por não ter cumprido a meta de 3% do PIB nos gastos públicos; já na Inglaterra, o déficit fiscal chega a 13% do PIB.

Esta grave distorção é que leva muitos analistas a preverem o fim desta moeda. Joseph Stiglitz, prêmio Nobel de Economia, já chegou a anunciar que o desfecho da crise será a morte do euro. A opinião é corroborada pelo brasileiro Luiz Carlos Bresser Pereira. “O euro está enfrentando uma crise estrutural que não põe em jogo a União Européia, mas põe em risco sua própria existência. Dependendo do desenrolar da crise, alguns países poderão voltar às suas moedas nacionais”.

Reforma tributária às avessas

A orgia neoliberal também causou outras graves distorções. O desmonte do estado beneficiou os ricaços, agraciados com uma reforma tributária às avessas. Hoje, eles pagam menos impostos ou sonegam, aproveitando-se das brechas da libertinagem financeira. Segundo reportagem da revista CartaCapital, “a sonegação de imposto por gregos ricos é estimada em 23 bilhões de euros anuais – quase 10% do PIB... Nas declarações do Fisco, apenas 324 moradores dos subúrbios de Atenas admitiram ter piscina: o Google Earth mostra 16.974”. Os ricaços até camuflam suas fortunas.

No paraíso dos neoliberais, produção e consumo sofreram violenta retração. A produtividade das empresas cresceu muito com os avanços tecnológicos, mas os frutos deste crescimento não foram socializados. O arrocho salarial e o desmonte dos direitos trabalhistas e previdenciários causaram o encolhimento do mercado interno. Antes da crise, o desemprego já atingia 10,3% dos gregos (25,3% entre os jovens). Vários sindicatos foram forçados a aceitar acordos de redução salarial.

Socorro aos banqueiros e industriais

O que já estava doente entrou em coma com a eclosão da crise mundial. Na fase da bonança, os capitalistas embolsaram os lucros. Já na fase da crise, iniciada em agosto de 2007 nos EUA, eles resolveram socializar os prejuízos. O que elevou o déficit público grego é que o “estado mínimo” virou “estado máximo” para socorrer banqueiros e industriais que abusaram da orgia financeira. Três quartos da dívida grega, pública e privada, estão nas mãos de bancos, seguradoras e fundos europeus, principalmente da França (US$ 67 bilhões de dólares) e Alemanha (US$ 36 bilhões).

Diante da eclosão da crise e do risco de contágio na Europa, os cínicos neoliberais impõem agora maiores dosagens da sua receita destrutiva e regressiva. O pacote de “socorro” dos bancos exige o aumento de 21% para 23% no imposto sobre valor agregado, mas não toca nos tributos sobre a riqueza; adiamento das aposentadorias em pelo menos três anos e cortes drásticos do seu valor; liberalização das tarifas de energia e transporte; congelamento do salário dos servidores públicos até 2014; restrição ou eliminação do 13º e 14º salários; e cortes nos adicionais e licenças.

Radicalização da luta de classes

O objetivo do capital é aproveitar a crise, criada por ele, para destruir de vez o que ainda resta do Welfare State na Grécia e em toda a Europa. “O Estado social deve ser reformado”, afirmam, em uníssono, os neoliberais europeus – repetidos à exaustão pelas marionetes nativas da TV Globo e de outros veículos privados. Como alerta o economista Luiz Gonzaga Belluzzo, a meta é destruir os direitos, “conquistados a ferro e fogo”, pelas lutas sociais. “Esse estilo de sociedade, de vida e de convivência foi progressivamente sendo deformado pelo avanço do projeto neoliberal”.

Mas esta ofensiva destrutiva e regressiva do capitalismo tende a esbarrar cada vez mais na reação dos trabalhadores. “O tipo de capitalismo que vai surgir [da atual crise] dependerá muito da luta social, da formação do imaginário popular, que, na verdade, não depende muito dos iluminados, mas da capacidade de informação e compreensão do que realmente aconteceu. Isso vai se formar na luta política”, aponta Belluzzo. Também apostando na possibilidade do aumento dos conflitos sociais, o sociólogo estadunidense James Petras prevê intensas e radicalizadas lutas na Europa.

“Há um processo de reversão dos ganhos sociais, um efeito dominó em que as tentativas dos governos para impor o custo da crise na classe trabalhadora causam efeito profundo nos padrões de vida. Não consigo ver como isso não aumentará os conflitos sociais. Na Espanha, há sinais de greve geral. Em Portugal, os sindicatos rejeitaram o plano de Sócrates de cortes nas áreas sociais. Acho que há possibilidade de que, conforme os desdobramentos dos programas como estes, no restante da Europa, as relações de capital de trabalho serão afetadas num futuro não tão distante”.

do Altamiro Borges

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