MARCOS COIMBRA: "a lei serve para proibir que seu adversário faça aquilo que você, tranquilamente, faz"
Marcos Coimbra
Sociólogo e presidente do Instituto Vox Populi
marcoscoimbra.df@dabr.com.br
Sem a lei, não existe civilização e sociedade organizada. Sem a universalização da obrigação de cumpri-la, não existe democracia. Repetindo um velho e verdadeiro chavão, a democracia exige que o preceito da igualdade de todos perante a lei seja observado, seja no tocante aos direitos, seja aos deveres. Ela existe para todos e todos estão igualmente sujeitos a ela.
Daí não se deduz, no entanto, que as leis sejam imutáveis. Respeitá-las não quer dizer eternizá-las. As sociedades chegam a determinadas formulações institucionais e podem alterá-las, considerando que não se adequam mais ao que ela considera desejável. Uma lei pode caducar. Era boa em determinado momento, mas, em outro, torna-se ultrapassada.
Nas leis fundamentais, essa mutabilidade é rara e pouco recomendável. Mas há outras em que é muito positivo que existam mecanismos que aumentem a possibilidade de mudanças e que até as encorajem.
Veja-se o caso da moderna legislação eleitoral brasileira. Toda ela foi feita depois de um hiato de mais de 20 anos de ditadura, nos quais as eleições para o Executivo foram circunscritas às disputas municipais (em cidades do interior) e as legislativas fortemente cerceadas. Enquanto o país passou por grandes mudanças econômicas, sociais e culturais, o sistema político permaneceu artificialmente congelado.
Note-se que nossa tradição democrática anterior ao golpe militar de 1964 não nos serviu de muita ajuda naquela altura, pois era modesta. Os intervalos democráticos que vivemos no século 20 foram tão pequenos que não produziram referências jurídicas sólidas para a reconstrução institucional pós-ditadura. Em outras palavras, tivemos que inventar uma legislação eleitoral enquanto a íamos praticando.
Muita coisa foi feita na base da tentativa e do erro. Fez-se uma lei para uma eleição, verificou-se em que funcionou e mudou-se na outra. O compromisso não era com a permanência, mas com a eficácia. Todos queriam leis melhores, ainda que não fossem duráveis.
O resultado disso foi uma intensa volatilidade em nossas leis eleitorais. Durante muitos anos, cada eleição teve um marco jurídico diferente em aspectos fundamentais e não apenas em questões de detalhe. Em função disso, a cada uma se ouvia um coro de críticas à falta de “regras claras e homogêneas”, como se elas pudessem brotar do nada.
Hoje, é evidente a necessidade de reavaliar a legislação eleitoral. Há muita coisa nela que foi superada pelas transformações que atravessamos nos últimos 20 anos — na sociedade, nos meios de comunicação e na tecnologia. Ela usa expressões que ninguém mais conhece, se ocupa de coisas obsoletas e quer disciplinar outras que se tornaram irrelevantes.
Há, ainda, coisas que foram superadas na prática pelos atores políticos, independentemente de ideologia. Por exemplo, os limites ao livre uso do tempo de propaganda na televisão e no rádio, pois eles contrariam um objetivo maior, de fortalecimento dos partidos políticos. Por exemplo, o engessamento do processo eleitoral em um calendário que contraria o bom senso.
Nunca se falou tanto quanto nestas eleições presidenciais de “campanha antecipada”. É como se houvesse um consenso de que é bom, nas eleições, que os eleitores só conheçam as candidaturas na “hora certa”. Antes, por motivos desconhecidos, não seria desejável que soubessem quem são os candidatos, com quem estão, o que representam. Mas qual é a “hora certa”?
A resposta que nossa legislação dá à pergunta desafia a lógica: três meses antes da eleição. Se alguém se apresentar como candidato fora desse prazo, se pedir votos para si ou para outra pessoa, tem que pagar multa. E por que três e não seis meses ou um ano? Mais tempo de exposição das candidaturas não faria com que os cidadãos as pudessem analisar com mais cuidado e profundidade? E isso não seria bom?
Quem cobra punições para aqueles que “antecipam” as eleições não está à procura de Justiça. Quer apenas usar uma legislação caduca (da qual, no íntimo, discorda), para impedir que outros façam o mesmo que faz.
Enquanto não mudarmos de vez nossa legislação eleitoral, as coisas vão ficar assim: a lei serve para proibir que seu adversário faça aquilo que você, tranquilamente, faz.
Sociólogo e presidente do Instituto Vox Populi
marcoscoimbra.df@dabr.com.br
Boas e más leis
Nunca se falou tanto quanto nestas eleições presidenciais de “campanha antecipada”. É como se houvesse um consenso de que é bom, nas eleições, que os eleitores só conheçam as candidaturas na “hora certa”. Mas qual é a “hora certa”?
Maurenilson Freire/CB/D.A Press |
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Sem a lei, não existe civilização e sociedade organizada. Sem a universalização da obrigação de cumpri-la, não existe democracia. Repetindo um velho e verdadeiro chavão, a democracia exige que o preceito da igualdade de todos perante a lei seja observado, seja no tocante aos direitos, seja aos deveres. Ela existe para todos e todos estão igualmente sujeitos a ela.
Daí não se deduz, no entanto, que as leis sejam imutáveis. Respeitá-las não quer dizer eternizá-las. As sociedades chegam a determinadas formulações institucionais e podem alterá-las, considerando que não se adequam mais ao que ela considera desejável. Uma lei pode caducar. Era boa em determinado momento, mas, em outro, torna-se ultrapassada.
Nas leis fundamentais, essa mutabilidade é rara e pouco recomendável. Mas há outras em que é muito positivo que existam mecanismos que aumentem a possibilidade de mudanças e que até as encorajem.
Veja-se o caso da moderna legislação eleitoral brasileira. Toda ela foi feita depois de um hiato de mais de 20 anos de ditadura, nos quais as eleições para o Executivo foram circunscritas às disputas municipais (em cidades do interior) e as legislativas fortemente cerceadas. Enquanto o país passou por grandes mudanças econômicas, sociais e culturais, o sistema político permaneceu artificialmente congelado.
Note-se que nossa tradição democrática anterior ao golpe militar de 1964 não nos serviu de muita ajuda naquela altura, pois era modesta. Os intervalos democráticos que vivemos no século 20 foram tão pequenos que não produziram referências jurídicas sólidas para a reconstrução institucional pós-ditadura. Em outras palavras, tivemos que inventar uma legislação eleitoral enquanto a íamos praticando.
Muita coisa foi feita na base da tentativa e do erro. Fez-se uma lei para uma eleição, verificou-se em que funcionou e mudou-se na outra. O compromisso não era com a permanência, mas com a eficácia. Todos queriam leis melhores, ainda que não fossem duráveis.
O resultado disso foi uma intensa volatilidade em nossas leis eleitorais. Durante muitos anos, cada eleição teve um marco jurídico diferente em aspectos fundamentais e não apenas em questões de detalhe. Em função disso, a cada uma se ouvia um coro de críticas à falta de “regras claras e homogêneas”, como se elas pudessem brotar do nada.
Hoje, é evidente a necessidade de reavaliar a legislação eleitoral. Há muita coisa nela que foi superada pelas transformações que atravessamos nos últimos 20 anos — na sociedade, nos meios de comunicação e na tecnologia. Ela usa expressões que ninguém mais conhece, se ocupa de coisas obsoletas e quer disciplinar outras que se tornaram irrelevantes.
Há, ainda, coisas que foram superadas na prática pelos atores políticos, independentemente de ideologia. Por exemplo, os limites ao livre uso do tempo de propaganda na televisão e no rádio, pois eles contrariam um objetivo maior, de fortalecimento dos partidos políticos. Por exemplo, o engessamento do processo eleitoral em um calendário que contraria o bom senso.
Nunca se falou tanto quanto nestas eleições presidenciais de “campanha antecipada”. É como se houvesse um consenso de que é bom, nas eleições, que os eleitores só conheçam as candidaturas na “hora certa”. Antes, por motivos desconhecidos, não seria desejável que soubessem quem são os candidatos, com quem estão, o que representam. Mas qual é a “hora certa”?
A resposta que nossa legislação dá à pergunta desafia a lógica: três meses antes da eleição. Se alguém se apresentar como candidato fora desse prazo, se pedir votos para si ou para outra pessoa, tem que pagar multa. E por que três e não seis meses ou um ano? Mais tempo de exposição das candidaturas não faria com que os cidadãos as pudessem analisar com mais cuidado e profundidade? E isso não seria bom?
Quem cobra punições para aqueles que “antecipam” as eleições não está à procura de Justiça. Quer apenas usar uma legislação caduca (da qual, no íntimo, discorda), para impedir que outros façam o mesmo que faz.
Enquanto não mudarmos de vez nossa legislação eleitoral, as coisas vão ficar assim: a lei serve para proibir que seu adversário faça aquilo que você, tranquilamente, faz.
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