Eliana Paiva revela a longa busca por respostas de quem viu o horror
Estranho, muito estranho essa publicação no jornal que foi porta-voz da ditadura e a partir dela construiu um império midiático.
Via Globo
Pela primeira vez, filha de Rubens Paiva conta o que passou
Miriam Leitão e Claudio Renato
Eliana Paiva, filha do deputado Rubens Paiva, desaparecido durante a ditadura militar
RIO
- Há muitas histórias perdidas e famílias sem respostas no Brasil. Os
pedaços de informação que se tem sobre os desaparecidos políticos exibem
a face de um regime que torturou, matou e ocultou cadáveres. A
democracia, em 27 anos, não conseguiu romper o impedimento dos militares
às investigações. No caso Rubens Paiva, fica clara a culpa das Forças
Armadas.
Feriado no Rio, dia ensolarado aquele
20 de janeiro de 1971. Rubens Paiva viu a filha Eliana, de 15 anos,
descer as escadas do sobrado à beira-mar, no número 80 da Delfim
Moreira, no Leblon, enquanto conversava com o amigo Raul Riff. Pediu à
filha um beijo.
Eliana viveria o próprio horror.
Quando voltou da praia, a casa já havia sido invadida, e o pai estava
preso. Foi ameaçada por um militar com um cabo elétrico. No dia
seguinte, foi levada presa, encapuzada, junto com sua mãe, para o
DOI-Codi. Ela falou pela primeira vez depois de 40 anos para a
GloboNews.
O GLOBO - Eliana, o que você lembra do seu pai?
ELIANA PAIVA
- Meu pai era uma figura muito alegre, muito viva, muito feliz. Ele
tinha sido cassado em 1964. A partir daí, sofreu nove meses no exílio.
Quer dizer, ele ficaria mais, mas, em determinado momento, ele chegou em
casa, em São Paulo. Ele tinha pego um avião via Buenos Aires ou
Uruguai, não me lembro direito, e conseguiu sair com o passaporte de
diplomata ou diplomático, que é um passaporte vermelho. Então, dessa
maneira, ele foi passando pelos aeroportos, até chegar em São Paulo. Eu
me lembro no final de 64... quer dizer, a cassação dele foi na primeira
ou na segunda listas de cassação de deputados federais. O exílio dele
foi a partir de junho. Depois de 31 de março, da intentona
revolucionária ou golpe militar, ele ficou na embaixa iuguslava até
junho, julho... Ele foi para Iuguslávia, a partir daí ele foi para
outros países da Europa. Nove meses depois ele chega em casa pela porta
dos fundos, as empregadas tomaram o maior susto e era o jeito dele. De
repente, ele decidiu "vou voltar pra casa. Chega, já fiquei no exílio
muito tempo, ninguém vai fazer nada pra mim. Eu estou livre de
processos, enfim."
O GLOBO - Até porque ele não tinha nenhuma atuação assim...
ELIANA- Tinha. Ela tinha tido uma atuação na época do processo contra o Ibad..
O GLOBO - Uma atuação parlamentar...
ELIANA
- Parlamentar. Mas atuação política, de esquerda, que realmente
agredisse os militares, a não ser isso, que foi uma coisa séria,
denuciar o Ibad. Aquilo era uma coisa muito séria dentro do governo
militar, que provava uma série de verbas mal utilizadas por gente que
depois assumiu o regime. Mas, a partir disso, ele não tinha tantos
problemas. A personalidade dele era vivar. "Não estou conseguindo ficar
longe da minha família na Europa, tá tudo muito chato aqui, eu vou
voltar pra casa". E foi assim que aconteceu
O GLOBO - E em casa, como ele era como pai?
ELIANA
- Paipai trabalhava muito. Ele era uma pessoa participante de todo tipo
de grupo social em que ele estava envolvido, inclusive na própria
profissão de engenheiro civil. Ele tinha uma firma de engenharia. E
quando se tornou deputado federal, ele tinha um grupo de amigos, de
deputados bastante ativos, E como pai ele estava presente, junto
conosco, os cinco irmãos. A vida pública, todo mundo sabe disso,
qualquer político, qualquer deputado principalmente na década de 60,
tinha uma vida muito intensa. A geração dele era muito exigente em
relação a discussões, a conversas, a debates. Apesar da pouca idade de
todo mundo. Foi uma geração muito importante para o Brasil. Geração dos
anos 50, do Celso Furtado, do Fernando Henrique Cardoso e, enfim, de
todas essas pessoas...
O GLOBO - Você viu a prisão do seu pai?
ELIANA
- Pois é. Antes, você me perguntou sobre a personalidade
dele...Exatamente por ser uma pessoa muito viva, ele começou a se sentir
cerceado em São Paulo. Papai não podia trabalhar mais do jeito que
estava trabalhando, aí ele conseguiu um emprego no Rio de Janeiro, como
engenheiro civil, mas, mesmo assim, não podia assinar porque ele era um
deputado cassado. Todas as contas dele como engenheiro civil eram
ligadas ao governo, porque ele fazia pontes e estradas. As obras
envolviam verbas federais, então ele não podia aparecer. Ele conseguiu
um emprego no Rio, entrou como sócio de uma empresa lá. Nós mudamos pro
Rio. A primeira coisa que ele fez foi alugar uma casinha em frente à
praia do Leblon, um sobradinho e mudamos pra lá. De novo volta essa
personalidade da alegria, da vontade de viver, da praia, do Rio de
Janeiro. O Rio de Janeiro de 65 em diante foi uma cidade muito especial.
Aconteciam muitas coisas no Rio de Janeiro que não aconteciam em São
Paulo. Pra ele, era muito importante. Tanto que ele foi preso no Rio de
Janeiro. Isso é que estou tentando chegar. Como foi essa prisão? Raul
Ryff, jornalista e assessor de imprensa de João Goulart, também cassado,
já morava, já tinha voltado pro Rio de Janeiro, depois de ficar um
tempo na Europa. Raul Ryff morava perto, no condomínio dos Jornalistas,
que existe até hoje no Leblon. Quer dizer: uns jornalistas, uma série de
jornalistas moram ali, compraram apartamento nesse lugar. E ficava a
três quarteirões de casa. Então, Raul Ryff de manhã saia da casa dele,
passava em casa, pegava papai e iam pra praia andar, conversar,
encontrar gente. Era o que mais eles gostavam de fazer. Então, quando
acordei e levantei, era feriado, estavam os dois sentados numa poltrona,
numa espécie de jardinzinho que a gente tinha. O Ryff e meu pai, os
dois conversando. Então botei biquini, botei saída de praia, peguei
minhas coisas. Eu tinha uma turma de praia, como todo mundo tinha na
adolescência, eu tinha 14, 15 anos de idade. Eu me lembro de estar
saindo correndo e ele me disse: "ué, você não vai me dar um beijo?". Eu
disse: “vou, claro”. Dei um beijo nele e o Raul pediu um beijo. Dei um
beijo no Ryff e fui embora pra praia. Fui embora pra praia, com minha
turma, fiquei um tempo lá, e quando eu voltei...isso devia ser o quê?
Dez horas, onze horas da manhã...Quando voltei uma, duas horas da tarde,
eu entro em casa e mamãe, até hoje vem muito essa memória, estava com
olho muito arregalado, quer dizer, uma coisa que eu nunca tinha visto
nela. Ela estava muito arregalada, falando muito baixo, muito contida.
Perguntei: O que aconteceu? Ela me falou: "Teu pai foi preso". Chamou de
lado. Eu não tinha visto os militares à paisana, que estavam lá.
Quando.tinha entrado na casa, mamãe parecia estar me esperando. Porque
minha irmã mais velha estava em Londres, quer dizer, eu era a segunda
mais velha. Eu acho que pela idade. Ela disse: "seu pai foi preso, você
vai tentar sair e avisar ao seu tio". Era o cunhado do meu pai, casado
com uma irmã da minha mãe, Cássio Mesquita Barros, que é um advogado,
ainda é advogado até hoje. "Você vai tentar telefonar pra ele e avisar à
família que seu pai foi preso." Eu jogava vôlei pelo Botafogo, na
equipe do juvenil. Então, o que eu fiz: me vesti de Botafogo, peguei
minha mochila, tomei banho, aí que eu vi, quando fui entrando, vi que
tinha uns três ou quatro homens dentro de casa. Me vesti inteirinha, a
caráter, de jogadora de vôlei, desci. Disse: "estou indo pro clube,
tenho compromisso, não posso deixar. E fui saindo, quer dizer, não vão
me impedir de sair. .E fui exatamente até o condomínio dos Jornalistas
onde estava a maioria da minha turma, na casa do Ronaldo Pacheco e pedi
para telefonar. O Ronaldo Pacheco é um amigo meu até hoje. O Ronaldo
deixou eu telefonar. Telefonei pro meu tio, consegui falar com ele.
Depois não sabia se voltava pra casa, mas tinha que fazer uma hora pelo
menos pra dizer que tinha ido até o Botafogo, jogar e voltar. Fiz uma
hora, uma hora e meia, mais ou menos. Não sei se o Ronaldo ficou comigo,
mas a gente ficou andando um pouco. Eu pedi para ele pra não aparecer,
inclusive. Eu falei um pouco pra ele do que eu sabia. Voltei pra casa, e
aí que comecei a perceber que a barra era muito pesada. Quando eu
cheguei em casa, um deles, o mais fortão, estava com um cabo elétrico na
mão e perguntou: "o que você foi fazer na rua?" Eu olhei pra ele e
falei assim: "Eu fui jogar". "Não, você não foi jogar, você foi avisar
às pessoas que teu pai foi preso. Ou seja, meu tio, ingenuamente, tinha
ligado pra casa da minha mãe, pra perguntar o que tinha acontecido. E o
telefone estava grampeado. Como é que grampeavam o telefone naquela
época? Havia várias extensões na casa. Cada um ficava numa extensão. Na
hora que tocava, alguém atendia, alguém ouvia na extensão. Ainda era uma
coisa rudimentar. Não sei se eram realmente grampos. Foi muito difícil,
porque eu consegui sentar na sala com este sujeito que estava
completamente transtornado - eu nem vi minha mãe na sala - e tentei
acalmar o cara. Falei: "olha, eu fui avisar ao meu tio porque a gente
não sabe o que está acontecendo, e o senhor, por favor, abaixe esse cabo
elétrico, porque o senhor não vai fazer nada com isso." E aí a sensação
que eu tive foi que ele se acalmou. Eu acho que esse ambiente familiar é
absolutamente isento dessa culpabilidade de militância. Mamãe com
empregadas, enfim, meu pai era um burguês, um empresário bem sucedido. E
a coisa acalmou. Então, nós pudemos dormir. Eu tenho a impressão de que
os meus três irmãos Marcelo, pela ordem, Ana Lúcia, que é a do meio, e
Beatriz. Ana Lúcia tinha ido pra casa de uns amigos, eu acho. Marcelo e a
caçula Beatriz, a Babiu, estavam em casa.
O GLOBO - Você chegou a ser presa. Como foi esse episódio?
ELIANA
- Pois é. Nos dias 20 e 21, a gente ficou em casa. Prisão domiciliar.
Ninguém mais entrava, ninguém mais saía. Dois amigos nossos, jovens,
Nelson Prado, filho da dona Yolanda Secchin Prado, mais o namorado da
minha irmã mais velha, passaram em casa e foram presos e levados. Não
aconteceu muita coisa com eles. Parece que só foram interrogados. Eu não
sei se foi nesse dia, é um testemunho que gostaria de dar, porque já
houve uma série de consequências: o Ronaldo Pacheco, que me acolheu na
casa dele, também foi levado. Tinha minha idade, tinha 15 anos. Parece
que foi bastante maltratado, foi muito torturado. Aos 15 anos. Fiquei
sabendo disso muito tempo depois, porque, enfim, uma série de
ciircustâncias fez com que a gente não se encontrasse ou ele não
contasse. Fiquei sabendo disso há pouco tempo, quando ele me pediu um
documento pra ver se ele não conseguia entrar com um processo. Tive que
documentar que ele realmente tinha sido preso, porque não havia
testemunhas. Só não sei por que o Ronaldo exatamente. Talvez pela
circunstâncias de ser um meninão. Ele chegou lá em casa preocupado
comigo, e o pegaram. Nem vi ele ser pego. Acho que ele foi pego na
entrada de casa. E eu soube o que aconteceu. Isso foi no dia 21. Do dia
20 pro dia 21. No dia seguinte, minha mãe acorda, eu dormi normalmente,
não me lembro do clima ter ficado tenso, enfim....eu era uma garota, não
conseguia encaixar muito as coisas...e no dia seguinte, minha mãe me
acorda e me diz: "se veste, que a gente vai ter que dar depoimento." Eu
falei assim; "Eu?"...É...Eu me vesti, me lembro de ter colocado uma
túnica bem preta, uma calça bem discreta. Aí, de novo, mamãe começou a
ficar muito nervosa. Isso mais ou menos às 11h, 11h30 nos colocaram num
fusca. Depois, se soube que eles andavam de fuscas pra cá e pra lá, os
fusquinhas. Nos colocaram num fusca e nos levaram pra Tijuca, pra Barão
de Mesquita, na Tijuca, onde funcionava o Doi-Codi no Rio de Janeiro.
Nessa ida para a Tijuca, eles pararam em frente ao Maracanã e nos
encapuzaram. Um capuz que vinha daqui até aqui, na altura do peito. A
gente estava sentada atrás nesse fusca, um fusca azul, e o rádio o tempo
todo passando todas as conversas entre os militares, o código, enfim, a
guerra para eles, que eles mesmo falam que a guerra era uma guerra, né?
Que eles venciam ou não venciam.
O GLOBO - Você se lembra do que eles falavam no rádio?
ELIANA
- Falavam em código. Sempre em código. Havia uma movimentação paralela
ao que estava acontecendo em casa, havia um controle dentro de casa.
Eles por fora já viam uma movimentação. Mas sempre me pareceu uma coisa
muito ingênua. Você dentro de um fusca, encapuzada, parece um teatro,
né? Bom, aí nós paramos na Barão de Mesquita, fomos levados para o
Doi-Codi, e me separaram da minha mãe. Nós fomos separadas. Eu fui
revistada de alto a baixo, em todos os sentidos, uma coisa
desagradabilíssima. Fui revistada por um homem inclusive.
O GLOBO - Ele pegou no seu corpo?
ELIANA
- Inteirinho, em todos os cantos possíveis. Eu estava ainda encapuzada.
Tinha um cheiro muito ruim esse capuz. A partir daí, fomos separadas,
eu e minha mãe. Eu vi uma vez só minha mãe durante 24 horas em que eu
fiquei presa. A gente foi colocada numa espécie de corredor. Esse
corredor, aos poucos, foi se tornando um corredor polonês. Então,
passavam os guardinhas e, ou davam um choque na minha cabeça, e me
chamavam de comunista, ou tentavam abusar de mim. E eu não sabia onde
estava a minha mãe. Mas o mais terríivel desse momento foi quando
comecei a ouvir as torturas horríveis que aconteceram nesse país. As
pessoas pediam pelo amor de Deus que parassem de bater.
O GLOBO - Você estava de capuz?
ELIANA - Estava de capuz...
O GLOBO - Mas estava ouvindo...
ELIANA - Estava ouvindo. Ouvindo tudo. E eram torturas, assim, monstruosas...As pessoas berravam....
O GLOBO - O que você ouvia?
ELIANA
- Berros. "Pelo amor de Deus parem com isso", `Pelo amor de Deus, não
façam mais isso".E berros, berros, berros.. Issoera intermitente... Mas a
coisa que mais me chocou, isso me chocou também, mas a coisa que me
dexou mais anestesiada foi a violência que vi na frente. Havia pessoas
sentadas no chão, acho que meninos universitários. Toda vez que passavam
um militar dava um chute neles. Eu não sei em que região, mas davam um
belo dum chute, ao ponto de eles berrarem ou tentarem se controlar, mas
berravam. E eu comecei a ver esse castigo do meu lado, quer dizer, já
não era um castigo na sala ao lado. Então, fui levada para o
interrogatório. O primeiro interrogatório foi bastante cruel. O
interrogador era um sujeito que se chamava "o Cirurgião". Nesse momento,
tinha pau de arara do lado, sangue no chão. Eu não conseguia saber, era
uma sala pequena, fechada, sem janelas. Havia uma mesa entre mim e ele.
Ele tinha uma grande planilha na frente, onde ele organizava, talvez, a
vida de todas as pessoas amigas de papai e de mamãe. Então, ele foi me
perguntando de algumas pessoas amigas de papai, entre elas Waldir Pires,
Raul Riff, o grupo do papai no Rio de Janeir, o.Bocayuva Cunha, se não
me falha a memória,,,esses três eram mais ligados a papai:.Waldir,
Bocayuva e o Ryff. Havia mais algumas outras pessoas. "Quem são essas
pessoas?", perguntou. Eu falei: "São amigos de meu pai".."São
terroristas?" "Não.não são terroristas", respondi..".Você sabe que seu
pai era comunista?" Não sei se meu pai é comunista, mas ele devia
conhecer alguma coisa de Marx" . Eu me lembro que o interrogatório foi
nesse nível..Até que surgiu nesse lugar, na minha frente, uma coisa
absolutamente absurda, que foi um trabalho. Eu tinha uma professora de
História, eu estudava no Notre Dame de Sion, que é um colégio bastante
careta, no Rio de Janeiro, bastante tradicional..E a gente tinha uma
professora de História bárbara..e nessa época,..era a revolução tcheca..
Eu tinha feito um trabalho imenso sobre a revolução da Tchecoslováquia
,sobre a liberação ou a tentativa de liberação da Tchecoslováquia, que
alíás foi uma coiisa muito linda, a Primavera de Praga.. Fizz junto com o
Raul Ryff no departamento de pesquisa do JB..O Ryff me abriu muita
coisa..Eles pegaram esse trabalho e viraram pra mim e falaram assim:
"Então você também é comunista". Primeiro, perguntaram se meu pai era
comunista. Puseram o trabalho na minha frente e falaram isso
O GLOBO - Um trabalho escolar?
ELIANA
- Um trabalho de 15 anos de idade para o primeiro colegial. Isso. Sobre
a Primavera de Praga, que na verdade é até uma coisa muito romântica,
mas muito interessante, que todos os jornais noticiaram. Não havia
segredo em relação à Primavera de Praga. Eu olhei para o interrogador.
Lembro-me que eu fiquei realmente muito brava, muito humilhada, foi uma
série de sensações que, enquanto eu estava me anestesiando naquele
corredor, nesse momento a coisa me atingiu pessoalmente, porque estava
mexendo num trabalho que tinha feito.
O GLOBO - Você se sentiu ameaçada pessoalmente?
ELIANA
- .Não chegou a isso nesse momento. Ainda era uma ameaça em relação à
minha professora, ao conhecimento que eu estava adquirindo e às coisas
que eu estava aprendendo. Foi a primeira vez que comecei a ver o que era
a realidade da prisão, da tortura, enfim de cerceamento de expressão.
Eles estavam pegando o meu trabalho escolar, bonito, muito bem feito.
Por que não poderia falar disso se havia saido em todos os jornais?
O GLOBO - Eles trataram um trabalho escolar como uma prova contra você
ELIANA
- Contra mim. Eu fiquei quieta. Tudo o que estou falando era meu
pensamento de menina na época mesmo. Pensei: como vou responder a isso?
Era uma sensação que vinha direto na tua expressão. Vinha aqui na
garganta. Na hora que ele botou o trabalho, a coisa vinha aqui. Como é
que eu vou responder uma coisa que faz parte da minha vida? Uma coisa
absolutamente natural na minha vida. A segunda reação foi imaginar o que
aconteceria coma Ilma, a minha professora. Fiquei preocupada e me
calei. Quer dizer, não falei mais nada, resolvi não falar mais nada,
porque não sabia quais seriam as consequências. E o clima foi ficando
pior até o momento em que alguém entrou na sala e falou para o
interrogador: "Doutor Cirurgião, estamos precisando do senhor na outra
sala..." Aí, ele olhou pra mim e falou: "É, vai embora..." Fui embora de
novo. Eles me encapuzaram. Aí o tal de Cirurgião acho que atuou, porque
os berros, os gritos dessa sala ficaram enlouquecedores...
O GLOBO - E você perto da sala?
ELIANA - Não era tão perto. Mas eram tão fortes os berros que eu ouvia.
O GLOBO - Eram gritos de voz masculina ou feminina?
ELIANA-
Masculina. Voz feminina, não ouvi, Nem um momento. A não ser a minha.
Depois houve um segundo interrogatório, e comecei a chorar. Começaram a
escorrer lágrimas. Ficou violento demais. Ou porque eu já tinha
entendido onde estava, não sei...
O GLOBO - Mas você sabia onde estava, que seu pai estava lá, que sua mãe estava lá...
ELIANA
- Uma menina de 15 anos queria entender onde estava. De mamãe e de
papai, eu não sabia. Os meus pais teriam discernimento para saber onde
estavam. Eu, não.
O GLOBO - Mas você não os viu lá?
ELIANA
- Encontrei minha mãe uma vez, vou te contar. Mas durante esse primeiro
instante, até ser levada para uma cela, eu não sabia onde estava, o que
estava acontecendo comigo. Por que eu tô tomando choque na cabeça?
Quando você está encapuzada, fica atentando para outros sentindos que
funcionam. Então, você faz com que teus outros sentidos funcionem e fica
em função deles. Eu comecei a chorar. Uma certa hora depois, acho que
durou uma hora e meia ou duas, teve um segundo interrogatório. Fui
levada de novo. Então cruzei com a minha mãe encapuzada, e ela
encapuzada, na porta dessa sala, me disse.."filhinha, tudo bem?" "Tudo
bem, mamãe, e você?" "Tudo bem, filhinha..." E aí ela saiu quando
entrei. Eu não vivi mamãe, porque estava encapuzada...E não sei se ela
me viu. Ela não chegou nem a me tocar...Foi uma voz de
mãe..."filhinha"...tudo bem? Uma voz muito doce e aí eu entrei e sentei
na mesa já com uma segunda pessoa, uma segunda pessoa bastante mais
tranquila, agradável, mais madura., cabelos mais brancos. Eles não
tinham identificação, eles tinham uma placa de metal branca.
O GLOBO - Para poder tapar o nome, será?
ELIANA
- Ele estava à paisana e a insígnia sugeria uma patente, alguma coisa.
Ou seja, que eles teriam uma patente de interrogador. Não sei, é até bom
saber que tipo de patente tinha um interrogador. Era uma curiosidade.
Bom, enfim... Aí, nessa hora falei pro sujeito: "Escuta, eu tenho 15
anos de idade, a única coisa que eu sei dessa história é que vocês não
têm direito de me prender e,.não sei como sabia disso, e vocês podem me
prender até 24 horas. A partir daí não existe essa prisão. Gostaria que
você tirasse esse capuz, porque está me incomodando, reclamei. Reclamei
durante 15 minutos e o sujeito me ouviu. Ele era bem mais manso do que o
anterior. Contei que estavam passando a mão em mim, me dando choques.
Ele prometeu que daria um jeito. E me ouviu. O meu trabalho escolar
continuava em cima da mesa. De novo me assustei, por mim e pela minha
professora. Então rolou uma conversa: "Quem é seu pai? Quem são os
amigos do seu pai? Quem é que ele recebe em casa?" A coisa foi bem mais
amena. E fui contando pra ele. Não podia dizer quem não era amigo e quem
não frequentava a minha casa. Aí, era uma loucura
O GLOBO - Aí era uma questão pública também...
ELIANA
- Era uma loucura. Não pude esconder, Tanto que depois que sai da
prisão, avisei a todas as pessoas que eu tinha falado os nomes. Eu falei
de vocês, porque foi perguntado e eu tinha que lembrar quem era..Voltei
pro corredor. Ele tirou o capuz, e me colocou uma venda. Foi a maior
felicidade do mundo, porque eu pude respirar melhor e pude entender
melhor onde eu estava. Eu já via as botas ou sapatos passando, eu já via
as fardas, quem estava fardado, quem não estava...Eu já via o tamanho
do corredor...Eu já via as pernas dos meninos,dos universiitários,
jovens que estavam sentados e relaxados.;E já pude ter uma sensação de
que a vida tinha voltado um pouco...Quer dizer, eu não estava numa
situação de morte. Se você anda com aquele capuz, anda com uma sensação
de morte. Aí, de novo nesse corredor, até às seis horas da tarde, mais
ou menos, começaram os berros de novo. Pela terceira vez e com bastante
violência. Cada vez mais violento..
O GLOBO - O que você sentia ouvindo estes berros?
ELIANA
- Horrível. Eu não sei a sensação...Não conseguia entender que berros
eram..Mas eu conseguia sentir que eram coisas muito ruins. Que era uma
coisa muito ruim. Eu nunca tinha visto alguém...A sensação de que..eu
não coinsigo ver filme de tortura, nada, acho que em função desses
berros...Eu..Se eu não vi, todos os meus sentidores sentiram aquilo...E
aí, eu entrei num choro convulsivo. Essa hora realmente eu comecei a
chorar e me pegaram, alguém passou e avisou que eu estava chorando...Uma
criança chorando aos prantos, menina, né? loira, vida da praia, apesar
de,,,,acho que alguém percebeu que tinha alguma coisa errada. Aí, me
pegaram e me levaram pra uma cela...Me tiraram a venda, fiquei dentro de
uma cela. Eram várias celas...Todas meio abertas, só tinha em cima um
pouco fechado com uma coisinha...Tinha um banheiro e um colchãozinho
nojento na cama...E eu fiquei nessa cela das seis horas da manhã até o
dia seguinte, não fui interrogada. E durante a noite se tornou uma
espécie de depositário, em frente...não dava pra ver porque estava
escuro, mas tinha a impressão de que as pessoas estavam com as mãos
amarradas, de capuzes e colocadas nessa espécie de dispensário. Como não
havia cela pra todo mundo, eu graças a Deus estava sozinha nessa
cela...Não sei se graças a Deus ou não, mas ali na frente era um
despensáro d de pessoas que tinham sido presas naquele dia. Não sei se
dormi, não me lembro...sei que de amanhã acordo também com uma coisa
muito simbólica, porque começaram a cantar aquela música do Roberto
Carlos...Jesus Cristo eu estou aqui,..começaram a acordar todo mundo com
isso...o quartel acordou com essa música...Aquele meu setor acordou com
essa música...Loucura, total e absoluta. E nesse momento comecei a
ver...acho que levaram as pessoas que estavam em frente a cela, ficou
claro quando o dia clareou um pouco, e eu pude ver os guardinhas, e aí
eu estava sem capuz, sem nada...os guardinhas que estavam
patrulhando...eu não sei se celas...eu nunca mais voltei lá pra saber.
não sei se ainda existem,...mas essas celas estavam sendo patrulhadas
por jovens todos loiros, de olhos azuis. Inclusive me falaram depois que
eram todos recrutas do Paraná e de Santa Catrarina. Todos loiros de
olhos azuis...Alguém me falou isso depois que sai da prisão...que os
recrutas que ficavam no DOI-Codi eram de outros estados...pra evitar
confusão. E esses guardinhas...eu era menina...eles deviam ter 18, 19
anos, sei lá...a gente começou a conversar e eu disse: "escuta, você
consegue saber onde está minha mãe?" aí, ele: "peraí, vou ver." E foi e
disse que mamãe estava estendida no colchão. Ela não se mexia. Isso, a
minha mãe. Minha mãe quando está em perigo ou quando tem alguém da
família..ou uma mãe quando tem alguém da família...você é mãe;;;você não
se mexe. Eu falei: "ela não se mexe?"...É..."Ela não se mexe, tá muito
estranha a sua mãe, tá completamente imóvel..." Bom, você sabe do meu
pai? "Ah, teu pai não sei, não" Mas você tem ideia de onde ele esteve?
"Olha vou tentar perguntar, mas acho que ele já foi..." Eu falei...ele
já foi"..Nesse momento me veio a sensação de que meu pai estava morto.
Quer dizer: a sennsação de que ele não estava mais com vida. As pessoas
já me perguntaram...parece uma coisa meio esotérica, meio mística...A
sensação que eu tenho é que não sentia mais a vida dele. E que a partir
daí minha grande preocupação passou a ser minha mãe. Quer dizer: eu meio
que já estava apagando a figura do meu pai...E muito preocupada com a
minha mãe., porque apesar de depois ter se tornado uma pessoa muito
forte, ela tinha a fragilidade de uma mãe de família, de cinco filhos,
que se dedicava ao marido. .Apesar de mamãe já ter diploma
universitário, de, ser uma pessoa estudada, enfim, de ser uma pessoa
bastante relacionada ao seu marido e vivendo a vida dele, quer dizer,
era uma mãe de família. E eu estava presa, eu tinha 15 anos. Nessas
horas, depois você fica imaginando o que pode ter passado pela cabeça
dela. Tudo, né? Aí, chegou exatamente ao meio-dia, que foi a hora em que
eu entrei no Doi-Codi, me levaram encapuzada pra uma outra sala, uma
sala que não era uma sala de interrogatório...uma sala...me fizeram
sentar e foram muito sarcáticos...Aí que comecei a ter a sensação de que
papai não estava mais vivo, ou tinha alguma coisa com ele..porque a
sensação que eles tinham é que a coisa foi...
Eles falavam sobre seu pai mas falavam como?
ELIANA
- Não, comigo é como se pronto, acabou, pode embora não tem mais nada
aqui pra você;;;Como quem diz: acabou a história...A sensação de que
papai tinha morrido foi ficando cada vez mais forte, porque uns
guardinhas falaram que houve alguma coisa durante a noite;;;de manhã,
parece que foi transportado...Eu ouvia pedaços do que eles conseguiam
colocar....Bom aí, também, foi uma cena muito ruim. Quer dizer, foi
nessa cena que , dando meu depoimento pro doutor Bravo de ter parado e
chorado, porque é uma cena...pode ser que eu venha chorar agora de
novo..Eles pegaram a bolsa da minha mãe, bolsa de mulher, com tudo
dentrro. mamãe fumava, cigarro, documento, entregaram pra mim e falaram
assim. Você vai...Eu falei: "Nao vou". Abraçada na bolsa da minha mãe,
eu falei eu não vou. Pelo menos, o cigarro vocês deixam pra ela. Não vou
sair com essa bolsa aqui de dentro. .Eu não tinha aquela bolsa. Aquela
bolsa era branca, bege, eu nã me lembro. Tudo dela: óculos, protetor de
sol, cigarro.....
Você acha que eles queria dizer com isso que ele tinha morrido?
ELIANA - Pois é. Você percebe a sequência de fatos? Quer dizer, a sequência de fatos tá muito clara.
Tortura psicológica.
ELIANA
- Também. Mas a sensação de que me dá a bolsa da mamãe,,,e de que "você
não tem mais nada aqui dentro, acabou...O que a gente tinha que pegar a
gente pegoi..." Agora, o que a gente tá tentando resolver é o que
ficou. E realmente foi essa a cronologia de fatos que depois aconteceu,
foi essa...A tentativa o tempo todo de despistar..ou seja, entrega a
bolsa da sua mãe, você leva a bolsa da sua mãe e já começa a despistar
por aí, entendeu? Eu me lembro que eu sentava e falava...Louca de
vontade de sair daquele lugar...e eu disse assim: "Eu não saio", "A
bolsa da minha mãe não vai comigo". Ela fica essa bolsa. Ele disse:
"Não, você vai levar essa bolsa." Eu disse: "Mas nem o cigarro? A mamãe
fuma"...Não, nem o cigarro. Dinheiro? Não, não pode. Aí, vem a coisa da
menina de 15 anois. Eu disse: "Tá bom. Aí, falei, Vou embora, porque não
aguentava mais ficar ali. Mais meia hora, eu ia enlouquecer ali. Não
sei o que ia acontecer. Queria que levasse embora a tal da bolsa da
mamãe, que me levasse embora, que fosse embora...Eu saí e me puseram de
novo a facha. A facha se tornou minha, inclusive. Eu saí e assinei
qualquer coisa. Tirei a faixa, e eles mandaram assinar qualquer coisa,
no mesmo galpão onde eu tinha sido revistada, né? .Entrei de novo dentro
do fusca. E alguem virou pros dois, que sempre era uma dupla, o
motorista e o carona, e deixem ela em algum lugar. E me deixaram na
prala Saens Peña, na Tijuca,. Eu me lembro que olhei prum lado, olhei
pro outro e tinha uma padaria na minha frente. Entrei na padaria.
Nesse momento você sentiu desamparo? O que você sentiu?
ELIANA
- Não, eu me senti muito...Eu não me senti desamparada em momento
nenhum...Gozado...Desde o começo até hoje...Eu me sentia forte. Porque
eu tinha tido um pai e uma mãe muito fortes. Eles eram, essa exposição
que teve aqui. você pode ver, eles eram um casal bastante feliz,
bastante unido e acho que isso...já era uma estrutura que eu tinha e
usei essa estrutura. Tanto que eu entro nessa padaria, nesse bar,
telefonei para o Bocayuva Cunha pra ele vir me buscar, porque era o
melhor amigo do meu pai. Sentei no balcão e pedi um milk shake. Um
sundae, pedi um sundae...Adorava sorvete...Sundae é uma coisa...Eu
estava com a bolsa da minha mãe, com o dinheiro dela, podia comer um
sundae...Entendeu? Me lembro que comi esse...Comi nada, lembro que
chegou o sundae, dei uma colher, mas estava assim..De repente eu tinha
saido de um lugar horrúvel, horrível, do inferno...e com a bolsa da
minha mãe, agarrada nela, continuava agarrada na bolsa da mamãe e tinha
ligado pra um amigo do meu pai, que estava vindo me buscar...aí, que vi
que alguma coisa já sabia, quer dizer as coiisas estavam caminhando
...quer dizer, ele estava vindo me buscar, eu estava solta, estava
comendo um sundae, estava me alimentando, que eu não tinha comido o
tempo todo...e estava agarrada na bolsa dela, quer dizer, alguma coisa
eu tinha, né? a[i chegou o Bocayuva com um médico, que era um médico de
família...eu me esqueci o nome dele, acho que já é falecido também....
Aí você chega em casa e não tinha nem pai nem mãe.
ELIANA
- Aí, o Bocayuva foi me pegar. Era um carrinho pequeninho do Baby...E
nessa hora, também, tive uma crise de choro. Ele me perguntou você está
bem? Eles viram que eu estava bem e me levou direto, não me lembroi se
ele me levou direto pra casa dele. A casa do Bocayuva, o apartamento do
Bocayuva, ficava a alguns quarteirões na mesma praia do Leblon, na
frente, mais pra perto...do final da praia do Leblon. Eu acho que ele me
levou pra casa. Meus avós maternos estavam em casa,,,Eu não estava
entendendo absolutamente nada, mas algum devia ter avisado, porque eu
estava com dois irmãos menores dentro de casa. O Marcelo tinha 10 anos e
a Beatriz tinha 9 anos, a Babiu. E estava minha avó materna, que é
deliciosa, e meu avô também estava lá. Fui pra casa e entrei, assustada,
com aquela bolsa da mamãe agarrada...
E o que eles falaram para você?
ELIANA
- Eu não posso...Sabe que eu não tenho...Acho que é por isso que a
coisa aí bloqueia entre irmãos, porque eu não tenhoi lembranças nenhuma
de conversa com os dois,
Mas os policiais te disseram alguma coisa do que aconteceu com seu pai?
ELIANA
- Não. Só me falaram: "leva embora a bolsa da sua mãe"...A partir daí,
aconteceram...Mamãe ficou 12 dias presa....e eu dentro da cadeia
consegui fazer com que o guardinha mandasse recado pra ela de que eu
estava bem. Parece que aí ela deu uma relaxadinha.. Quando ela saiu da
prisão, fiquei. sabendo que ela ficou sabendo dois dias depois que eu
tinha sido solta. Então durante dois dias mamãe ficou, deve ter ficado
completamente imobilizada.
Sem saber o que tinha contecido com a filha dela, de 15 anos... aí veio uma longa espera
ELIANA
- Aí vieram doze dias, em que gostaria de contar essa parte, que
gostaria de agradecer essas pessoas...apesar de todos eles, a não ser
Waldir Pires, que está vivo...ex-governador da Bahia, que está
vivo...Mas esse grupo de papai se reunia na casa do Bocayuva Cunha, que
também tinha sido deputado federal, e pra tentar tirar papai da cadeia e
mamãe também...A primeira ação foi através de uma ação na imprensa
internacional, onde o Raul Riff comigo escrevemos uma carta..essa carta
está na exposição Rubens Paiva...eu vi essa carta depois de muito
tempo..eu escrevi três ou quatro vezes...O Ryff foi lendo e me
dando...Não, aqui você precisa explicar melhor...Eu fui explicando
melhor o que era, o que tinha acontecido...Essa carta foi publicada na
imprensa internacional inteira...muito legal, a ação que eles queriam
fazer foi feita...Raul Ryff foi um herói o tempo todo...Waldir Pires e
Bocayuva Cunha tentaram mobilizar embaixadores americanos e o pessoal no
exterior. Então, era a única forma de tentar do exterior saber o que
estava acontecendo, porque por dentro a experiência que eles tinham pe
que, através das informações internas, não se conseguia nada. O que era
importante, e foi a estratégia deles que foi muito boa, tentar liberar
os dois o mais rápido possível, porque tudo poderia acontecer. Mamãe e
papai presos. Eu continuo a dizer que a partir desse momento eu não me
preocupava mais com papai, não sei por quê. Minha grande preocupação era
mamãe. Eu durante esses doze dias fiquei em suspensão...Eu não me
lembro de dormir, não me lembro de conversar com meus irmãos...Eu lembro
de todos os dias eu punha meu maiô, era férias e ia pela praia até a
casa do Bocayuva, nós tinhamos uma reunião e eu voltava, E não saía
quase de casa...com meus avós...Até um dia que mamãe aparece na porta de
casa, muito magra, eu senti aquele cheiro de prisão nela, você sente de
novo aquele cheiro, Subiu, tomou banho e eu relaxei. Virei uma
adolescente de 15 anos de novo e, a partir daí, sim começou a longa
espera,,,começou a longa espera mais para os pais do meu pai, que
perceberam que a coisa era grave, que eles poderiam estar perdendo um
filho, e pra eles foi muito triste, foi muito duro...E eles começaram a
mobilizar tanto que acho que seis meses depois a gente se muda para
Santos, onde moravam os pais dos meus pais e meus avós me receberam numa
espécie de palácio, eles alugaram, compraram uma casa imensa...E esse
meu avô se chama Jayme de Almeida Paiva...Ele tentou de todas as
maneiras comprar informantes de dentro do Exército, o que ele podia, o
que ele conseguia,.,O que ele conseguia, eu sei que ele dava muita
grana, porque ele era rico...Era bem sucedido....A reposta era
espera...O teu filho vai ser solto, não se preocupe .E via minha avó.
Minha avó era uma pessoa muito alegre também, muito parecida com meu
pai. Vovó Cici...Uaraci Beyruth...era de origem alemã, muito alegre,
muito esperta, muito feliz...era bem meu pai...quando via minha vó
chorando, pra mim era uma coisa rara...e voltou a vida de famíla, só que
com meu avô...o que não era desconhecido, porque meu avô tinha uma
fazenda no Vale do Ribeira e a gente passava as férias inteiras com ele.
Minha avó e meu avô, então era fácil
O
que era, o que foi... chegavam essas informações desencontradas... você
em algum momento teve esperança de ver seu pai de novo?
ELIANA-
Sim, sim. Porque eles tinham muita esperança. Eu não sabia muito bem,
na verdade eu estava muito confusa. Essa sensação de que meu pai tinha
morrido era uma coisa muito minha , muito pessoal, muito intransferível.
Não podia contar para as pessoas. Eu conto hoje em dia. Já contei para
alguns amigos, mas eu nunca contei pros meus irmãos. Pra minha mãe, eu
nunca contei isso. Tanto que na hora que vinha as informações eu
pensava, cá comigo, isso é inútil, isso é inútil....mas é uma coisa de
sensação. Não tinha realidade, não tinha nenhuma realidade. A relidade
se construiu com meu avô, quer dizer, quanto mais ele tentava penetrar
nesse mundo, mais ele tinha contra-informação, informação cruzada,
informação que não era verdadeira....Houve um certo abuso, mas o próprio
Exército tentou tanto esconder isso, esse fato, que as próprias pessoas
que estavam tentando informar o meu avô, acabavam se afastando...a
impressão é essa...eles tentavam informar o meu avô, um ou outro levava
dinheiro e imediatamente eles se afastavam
Nessa história em suspense, quando é que você realizou o luto pleo seu pai?
ELIANA
- Eu nunca realizei...Eu fui realizar no inicio desse ano, quando o
Vladimir Sacheta cria uma exposição chamada...nome muitobonito
até...aqui nesse lugar onde a gente está fazendo esa entrevista, que é o
antigo Deops de São Paulo..E que todas as imagens do meu pai, da minha
mãe e todas as coisas que rinham acontecido estavam pelos muros e pelas
paredes desse lugar...Aí foi muito dificil...Tanto que não vim na
inauguração, eu chorava muito,,,Eu estava no Rio de Janeiro e chorava
muito. E os meus irmãos, meus tios, todos me ligavam..venha, venha,
venha...eu não tive coragem de vir...porque eu chorava muito, no Rio de
Janeiro, eu chorava 24 horas por dia, sem ainda ter visto a exposição,
mas foi exatamente quando houve...acho que tudo, a partir dos 15 anos,
uma resistência que fui adquirindo...a resistência se rompeu aí, em um
dique de choro de menina...não consegui...só conseguir vir no último dia
da exposição...continuei de mão dada com a minha irmã e chorava muito.
Mas o Vladmir, que é o curador da exposição, sujeito muito sério, estava
presente e foi me mostrando algumas coisas. Coisas, inclusive,
documentos bastante importantes, que ele conseguiu reunir e eu fui
entendendo o histórico...aí, o histórico contado de uma maneira
objetiva, e aí eu fui acalmando...Foi aí que,,,,Não é que eu realizei o
luto...Foi aí que realizei o que tinha acontecido...O luto eu nunca vous
saber o que é, do meu pai,. Como a gente não tem o corpo dele, a gente
nunca teve o corpo dele, nem informação, é uma coisa que não sei, não vi
meu pai morto. Nenhum de nós viu o pai morto, meus avós não viram o
filho morto. Então, nenhum de nós realizou o luto até hoje. O luto pra
cada um foi sendo realizado de uma maneira muito particular. A minha foi
na exposição, quando veio à tona a carta que eu escrevi...e a minha
madrinha, que foi...tem uma história muito sutil.....A gente só
conseguiu provar que papai tinha sido preso, porque a minha madrinha,
que foi ao Rio de Janeiro...papai foi com o próprio carro pro Doi-Codi e
o carro estava no estacionamento do Doi-Codi. A minha madrinha, Reneé
Paiva Guimarães, irmã mais velha dele, foi buscar o carro e ao buscar o
carro ela teve que assinar um recibo de que ela tinha pego o carro...E
com essa cópia de recibo conseguiu se provar que papai tinha sido preso.
É a única prova que existe. Isso tudo, o Vladimir, como curador colocou
nessa exposição Epitáfio, que teve um nome muito bonito...Até esse
recibo tava...nas paredes do...Aí a gente começa a contar a história,
que vira linear, vira objetiva, vira concreta, quer dizer papai, mamãe,
os filhos, os avõs, a prisão, a minha carta, o recibo da minha tia, isso
aí deu pra realizar...Ou pelo menos, o que aconteceu, não se se a gente
pode chamar de luto, mas luto acho que a gente só realiza na hora que a
gente vê, não sei...Mas na hora que a gente vê a pessoa morta e enterra
essa pessoa...É uma coisa que nunca me questionei muito...´É o que eu
falo...Já sabia que ele estava morto, isso sempre foi de certa forma pra
mim já era revelado...
*GilsonSampaio
RIO - Rubens Paiva, Mário Alves de Souza, Stuart Angel Jones e Carlos
Alberto Soares de Freitas foram presos pelos órgãos de segurança em
1971 e desapareceram. Os dois primeiros, segundo testemunhas, foram
torturados e mortos no DOI-Codi, na Rua Barão de Mesquita. Stuart Angel
foi espancado e arrastado por um carro com a boca no cano de escape na
Base Aérea do Galeão. Carlos Alberto, o Beto, morreu na Casa da Morte,
centro de tortura clandestino das Forças Armadas em Petrópolis, na
Região Serrana do Rio. Os corpos nunca apareceram. Os quatro casos estão
entre os 39 do Rio e do Espírito Santo reabertos no Rio pelo promotor
da Justiça Militar Otávio Bravo. Ele achou um novo caminho jurídico.
Procurador reabre casos de desaparecidos na ditadura
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Ministério Público Militar usa artifício jurídico para driblar Lei da Anistia
*aposentadoinvocado
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