Medíocres e perigosos
O reacionário é, antes de tudo, um fraco. Um fraco que conserva ideias
como quem coleciona tampinhas de refrigerante ou maços de cigarro – tudo
o que consegue juntar mas só têm utilidade para ele. Nasce e cresce em
extremos: ou da falta de atenção ou do excesso de cuidados. E vive com a
certeza de que o mundo fora da bolha onde lacrou seu refúgio é um mundo
de perigos, pronto para tirar dele o que acumulou em suposta dignidade.
Como tem medo de tudo, vive amargurado, lamentando que jamais estenderam
um tapete à sua passagem. Conserva uma vida medíocre, ele e suas
concepções e nojos do mundo que o cerca. Como tem medo, não anda na rua
com receio de alguém levar muito do pouco que tem (nem sempre o
reacionário é um quatrocentão). Por isso, só frequenta lugares em que se
sente seguro, onde ninguém vai ameaçar, desobedecer ou contradizer suas
verdades. Nem dizer que precisa relaxar, levar as coisas menos a sério
ou ver graça na leveza das coisas. O reacionário leva a sério a ideia de
que é um vencedor.
A maioria passou a vida toda tendo tudo aos alcance – da empregada que
esquentava o leite no copo favorito aos pais que viam uma obra de arte
em cada rabisco em folha de sulfite que ele fazia – cultivou uma
dificuldade doentia em se ver num mundo de aptidões diversas. Outros
cresceram em meios mais abastados – e bastou angariar postos na escala
social para cuspir nos hábitos de colegas de velhos andares. Quem não
chegou onde chegaram – sozinhos, frise-se – não merece respeito.
Rico, ex-pobre e falidos, não importa: o reacionário ideial enxerga em
tudo o que é diferente um potencial de destruição Por isso se tranca e
pede para não ser perturbado no próprio mundo. Porque tudo perturba: o
presidente da República quer seu voto e seus impostos; os parlamentares
querem fazê-lo de otário; os juízes estão doidos para tirar os direitos
acumulados; a universidade é financiada (por ele, lógico) para propagar
ideias absurdas sobre ideais que despreza; o vizinho está sempre de olho
na sua esposa, em seu carro, em sua piscina. Mesmo os cadeados, portões
de aço, sistemas de monitoramento, paredes e vidros anti-bala não
angariam de todo a sua confiança. O mundo está cheio de presidiários com
indulto debaixo do braço para visitar seus familiares e ameaçar os
nossos (porque os nossos nunca vão presos, mesmo quando botam fogo em
índios, mendigos, prostitutas e ciclistas; índios, mendigos, prostitutas
e ciclistas estão aí para isso, quem mandou sair de casa e poluir nosso
caminho de volta ao lar).
Como não conhece o mundo afora, a não ser nas viagens programadas em
pacotes que garantem o translado até o hotel, e despreza as ideias que
não são suas (aquelas que recebeu de pronto dos pais e o ensinaram a
trabalhar, vencer e selecionar o que é útil e o que é supérfluo), tudo o
que é novo soa ameaçador. O mundo muda, mas ele não: ele não sabe que é
infeliz porque para ele só o que não é ele, e os seus, são lamentáveis.
Muitas vezes o reacionário se torna pai e aprende, na marra, o conceito
de família. Às vezes vai à igreja e pede paz, amor, saúde aos seus. Aos
seus. Vê nos filhos a extensão das próprias virtudes, e por isso os
protege: não permite que brinquem com os meninos da rua nem que tenham
contato com ideias que os retirem da sua órbita. O índice de infarto
entre os reacionários é maior quando o filho traz uma camisa do Che
Guevara para casa ou a filha começa a ouvir axé e namorar o vocalista da
banda (se ele for negro o infarto é fulminante).
Mas a vida é repleta de frestas, e o tempo todo estamos testando as mais
firmes das convicções. Mas ele não quer testá-las: quer mantê-las. Por
isso as mudanças lhe causam urticárias.
Nos anos 70, vivia com medo dos hippies que ousavam dizer que o amor não precisava de amarras. Eram vagabundos e irresponsáveis, pensava ele, em sua sobriedade.
Depois vieram os punks, os excluídos de aglomerações urbanas
desajeitadas, os militantes a pedir o alargamento das liberdades civis e
sociais. Para o reacionário, nada daquilo faz sentido, porque ninguém
estudou como ele, ninguém acumulou bens e verdades como ele e, portanto,
seria muito injusto que ele e o garçom (que ele adora chamar de
incompetente) tivessem o mesmo peso numa urna, o mesmo direito num
guichê de aeroporto, o mesmo assento na mesa de fast food.
Para não dividir espaços cativos, frutos de séculos de exclusão que ele
não reconhece, eleva o tom sobre tudo o que está errado. Sabendo de seus
medos e planos de papel, revistas, rádios, televisão, padres, pastores e
professores fazem a festa: basta colocar uma chamada alarmista (“Por
que você trabalha tanto e o País cresce tão pouco?”) ou música de
suspense nas cenas de violência (descontrolada!) na tevê para que ele se
trema todo e se prepare para o Armagedoon. Como bicho assustado, volta
para a caixinha e fica mirabolando planos para garantir mais segurança
aos seus. Tudo o que vê, lê e ouve o convence de que tudo é um perigo,
tudo é decadente, tudo é importante, tudo é indigno. Por isso não se
deve medir esforços para defender suas conquistas morais e materiais.
E ele só se sente seguro quando imagina que pode eliminar o outro.
Primeiro, pelo discurso. No começo, diz que não gosta desse povinho que
veio ao seu estado rico tirar espaço dos seus. Vive lembrando que
trabalha mais e paga mais impostos que a massa que agora agora quer
construir casas em seu bairro, frequentar os clubes e shoppings antes só
repletos de suas réplicas. Para ele, qualquer barberagem no trânsito é
coisa da maldita inclusão, aqueles bárbaros que hoje tiram carta de
habilitação e ainda penduram diplomas universitários nas paredes. No
tempo dele, sim, é que era bom: a escola pública funcionava (para ele), o
policial não se corrompia (sobre ele), o político não loteava a
administração (não com pessoas que não eram ele).
Há que se entender a dor do sujeito. Ele recebeu um mundo pronto, mas
que não estava acabado. E as coisas mudaram, apesar de seu esforço e sua
indignação.
Ele não sabe, mas basta ter dois neurônios para rebater com um sopro
qualquer ideia que ele tenha sobre os problemas e soluções para o mundo –
que está, mas ele não vê, muito além de um simples umbigo. Mas o
reacionário não ouve: os ignorantes são os outros: os gays que colocam
em risco a continuidade da espécie, as vagabundas que já não respeitam a
ordem dos pais e maridos, os estudantes que pedem a extensão de
direitos (e não sabem como é duro pegar na enxada), os maconheiros que
não estão necessariamente a fim de contribuir para o progresso da nação,
os sem-terra que não querem trabalhar, o governante que agora vem com
esse papo de distribuir esmola, combater preconceitos inexistentes
(“nada contra, mas eles que se livrem da própria herança”), os países
vizinhos que mandam rebas para emporcalhar suas ruas.
O mundo ideal, para o reacionário, é um mundo estático: no fundo, ele
não se importa em pagar impostos, desde que não o incomodem. Como muitos
não o levam a sério, os reacionários se agrupam. Lotam restaurantes,
condomínios e associações de bairro com seus pares, e passam a praguejar
contra tudo.
Quando as queixas não são mais suficientes, eles juntam as suas solidões
e ódio à coletividade (ironia) e se organizam. Juntos, eles identificam
e escolhem os porta-vozes de suas paúras em debates nacionais. Seus
representantes, sabendo como agradar à plateia, são eleitos como
guardiões na moralidade. Sobem a tribunas para condenar a perversidão, o
aborto, a bebida alcoolica, a vida ao ar livre, as roupas nas escolas.
Às vezes são hilários, às vezes incomodam.
Mas, quando o reacionário se vê como uma voz inexpressiva entre os
grupos que deveriam representá-lo, bota para fora sua paranóia e
pragueja contra o sistema democrático (às vezes com o argumento de que o
sistema é antidemocrático). E se arma. Como o caldo cultural legitima
seu discurso e sua paranoia, ele passa a defender crimes para evitar
outros crimes – nos Estados Unidos, alvejam imigrantes na fronteira, na
Europa, arrebentam árabes e latinos, na Candelária, encomendam chacinas
e, em QGs anônimos, planejam ataques contra universitários de Brasília
que propagam imoralidades.
O reacionário, no fim, não é patrimônio nacional: é um cidadão do mundo.
Seu nome é legião porque são muitos. Pode até ser fraco e viver com
medo de tudo. Mas nunca foi inofensivo.
Matheus Pichonelli, CartaCapital
*Oterrordonordeste
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