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Ser de esquerda é não aceitar as injustiças, sejam elas quais forem, como um fato natural. É não calar diante da violação dos Direitos Humanos, em qualquer país e em qualquer momento. É questionar determinadas leis – porque a Justiça, muitas vezes, não anda de mãos dadas com o Direito; e entre um e outro, o homem de esquerda escolhe a justiça.
É ser guiado por uma permanente capacidade de se estarrecer e, com ela e por causa dela, não se acomodar, não se vender, não se deixar manipular ou seduzir pelo poder. É escolher o caminho mais justo, mesmo que seja cansativo demais, arriscado demais, distante demais. O homem de esquerda acredita que a vida pode e deve ser melhor e é isso, no fundo, que o move. Porque o homem de esquerda sabe que não é culpa do destino ou da vontade divina que um bilhão de pessoas, segundo dados da ONU, passe fome no mundo.
É caminhar junto aos marginalizados; é repartir aquilo que se tem e até mesmo aquilo que falta, sem sacrifício e sem estardalhaço. À direita, cabe a tarefa de dar o que sobra, em forma de esmola e de assistencialismo, com barulho e holofotes. Ser de esquerda é reconhecer no outro sua própria humanidade, principalmente quando o outro for completamente diferente. Os homens e mulheres de esquerda sabem que o destino de uma pessoa não deveria ser determinado por causa da raça, do gênero ou da religião.
Ser de esquerda é não se deixar seduzir pelo consumismo; é entender, como ensinou Milton Santos, que a felicidade está ancorada nos bens infinitos. É mergulhar, com alegria e inteireza, na luta por um mundo melhor e neste mergulho não se deixar contaminar pela arrogância, pelo rancor ou pela vaidade. É manter a coerência entre a palavra e a ação. É alimentar as dúvidas, para não cair no poço escuro das respostas fáceis, das certezas cômodas e caducas. Porém, o homem de esquerda não faz da dúvida o álibi para a indiferença. Ele nunca é indiferente. Ser de esquerda é saber que este “mundo melhor e possível” não se fará de punhos cerrados nem com gritos de guerra, mas será construído no dia-a-dia, nas pequenas e grandes obras e que, muitas vezes, é preciso comprar batalhas longas e desgastantes. Ser de esquerda é, na batalha, não usar os métodos do inimigo.
Fernando Evangelista

quinta-feira, março 08, 2012

Problemas de mulher

 

Uma boa maneira de começarmos a pensar sobre o problema que envolve o significado de ser mulher e, de certa forma, o aprisionamento em que se encontram os sujeitos femininos (e na contramão, mas diretamente envolvido, também os masculinos) é colocando em xeque a existência de um problema que envolve exclusivamente essa divisão: homens de um lado, mulheres do outro.
No discurso ordinário, a utilização de uma divisão binária, epistemológica e ontológica, das categorias de gênero nos possibilita destinar aos dois campos características e papéis que poderiamos dizer serem oriundas daquele próprio organismo. Logo, o convite é oferecido: estamos diante de uma investigação da (in)existência de um problema que recai, neste caso específico, ao grupo das mulheres. E que problema seria esse? Como forma de esclarecer o pensamento aqui comprometido, penso ser indispensável suspeitarmos da (im)possibilidade de conseguirmos definir uma identidade das ‘mulheres’, ou seja, de não conseguirmos constituir o sujeito estável e permanente de uma teoria feminista sem que isso acabe por minar os interesses reais de uma busca por justiça e inclusão. Talvez, por mais esquisito que isso possa parecer, seja necessário pensarmos que os sujeitos, caracterizados de maneira a priori, de quaisquer que sejam nossas teorias, são produções de sistemas de poder e, por essa razão, não existem de fato; ou seja, são projetos de uma ficção comprometida com a manutenção do poder vigente.
Logo, é preciso ter em mente a possibilidade de estarmos comprando uma ficção fundacionista do sujeito que nos faz acreditar que um termo como ‘mulheres’ possa definir elementos criteriosos que vão denotar uma identidade comum a todos os sujeitos que participam desse ‘grupo’. Neste caso, podemos suspeitar que a fala “talvez não existam mulheres”, da filósofa Julia Kristeva, possa fazer algum sentido. De qualquer forma, o que essa nova perspectiva de encarar as teorias feministas chama atenção é para o fato de que é preciso romper com os parâmetros que fundaram as relações políticas e culturais das nossas sociedades e que, advindo disso, dominaram e dominam a nossa forma de se relacionar não com as categorias de ‘homens’ ou ‘mulheres’, mas com a humanidade.
Desta maneira, não é preciso ignorar o processo histórico que nos fez ser quem somos, mas incluir nesse processo a compreensão de que nossa percepção do mundo de fora e também de nós mesmos é fruto de algo maior. Ser mulher, ser feminina, ser moça, ser santa ou ser puta são conceitos que nasceram como fruto de uma dominação patriarcal, masculina, para não dizer heterossexual. Sendo assim, oferecida a suspeita de tal diagnóstico, passamos a enaltecer as ‘mulheres’, na sua utilização ordinária, que fizeram parte desse processo histórico de luta pela emancipação das mesmas à categoria de ‘indivíduos’ desprovidos de qualquer poder político que quisesse lhe conceder aquilo que deveriam ser. Dentro dessa perspectiva feminista comprometida com todas as variações possíveis que podem formar a identidade dos sujeitos, problemas de mulher passam a ser, na verdade, problemas da humanidade.
Ps: Este texto é dedicado a todas as pessoas que fizeram e fazem de suas vidas a luta por um mundo melhor, mais igualitário e inclusivo. (Dedicado especialmente a Maria Clara Dias, Marcia Tiburi, Laerte Coutinho e Judith Butler)
Fabio Oliveira

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