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Ser de esquerda é não aceitar as injustiças, sejam elas quais forem, como um fato natural. É não calar diante da violação dos Direitos Humanos, em qualquer país e em qualquer momento. É questionar determinadas leis – porque a Justiça, muitas vezes, não anda de mãos dadas com o Direito; e entre um e outro, o homem de esquerda escolhe a justiça.
É ser guiado por uma permanente capacidade de se estarrecer e, com ela e por causa dela, não se acomodar, não se vender, não se deixar manipular ou seduzir pelo poder. É escolher o caminho mais justo, mesmo que seja cansativo demais, arriscado demais, distante demais. O homem de esquerda acredita que a vida pode e deve ser melhor e é isso, no fundo, que o move. Porque o homem de esquerda sabe que não é culpa do destino ou da vontade divina que um bilhão de pessoas, segundo dados da ONU, passe fome no mundo.
É caminhar junto aos marginalizados; é repartir aquilo que se tem e até mesmo aquilo que falta, sem sacrifício e sem estardalhaço. À direita, cabe a tarefa de dar o que sobra, em forma de esmola e de assistencialismo, com barulho e holofotes. Ser de esquerda é reconhecer no outro sua própria humanidade, principalmente quando o outro for completamente diferente. Os homens e mulheres de esquerda sabem que o destino de uma pessoa não deveria ser determinado por causa da raça, do gênero ou da religião.
Ser de esquerda é não se deixar seduzir pelo consumismo; é entender, como ensinou Milton Santos, que a felicidade está ancorada nos bens infinitos. É mergulhar, com alegria e inteireza, na luta por um mundo melhor e neste mergulho não se deixar contaminar pela arrogância, pelo rancor ou pela vaidade. É manter a coerência entre a palavra e a ação. É alimentar as dúvidas, para não cair no poço escuro das respostas fáceis, das certezas cômodas e caducas. Porém, o homem de esquerda não faz da dúvida o álibi para a indiferença. Ele nunca é indiferente. Ser de esquerda é saber que este “mundo melhor e possível” não se fará de punhos cerrados nem com gritos de guerra, mas será construído no dia-a-dia, nas pequenas e grandes obras e que, muitas vezes, é preciso comprar batalhas longas e desgastantes. Ser de esquerda é, na batalha, não usar os métodos do inimigo.
Fernando Evangelista

quinta-feira, março 08, 2012

Significado da visita do Papa a Cuba

Por Frei Betto, no sítio da Adital:

Para desgosto e fracasso das pressões diplomáticas da Casa Branca, o papa Bento XVI chega a Cuba dia 26 de março. Fica três dias na Ilha, após entrar na América Latina pelo México. A 28 de março, celebra missa na Praça da Revolução, em Havana.

Bento XVI celebrará, em Santiago de Cuba – histórica cidade do Quartel Moncada, onde Fidel iniciou sua luta revolucionária, em 1953 – os 400 anos da aparição da Virgem da Caridade do Cobre.

Em 1998, logo após o papa João Paulo II encerrar sua visita a Cuba, participei de almoço oferecido por Fidel a um grupo de teólogos. Em certo momento, um teólogo italiano manifestou, do alto de seu esquerdismo, indignação pelo fato de o pontífice haver presenteado a Virgem da Caridade com uma coroa de ouro.

Fidel não escondeu seu desconforto. E reagiu: "A Virgem do Cobre não é apenas padroeira dos católicos de Cuba. É padroeira da nação cubana.” E passou a relatar como sua mãe, Lina Ruz, católica devota, fez ele e Raúl prometerem que, se saíssem vivos de Sierra Maestra, haveriam de depositar suas armas junto ao santuário, para pagar a promessa que ela fizera. Em 1983, ao visitar o santuário pela primeira vez, vi ali as armas.

Por essas "cristoincidências” que só a fé explica e as pesquisas elucidam, a Virgem da Caridade e Nossa Senhora Aparecida têm tanto em comum quanto Cuba e Brasil. Como disse Inácio de Loyola Brandão, "Cuba é uma Bahia que deu certo”. As duas imagens foram encontradas durante a colonização: lá, em 1612, a espanhola; aqui, em 1717, a portuguesa. As duas, na água. As duas achadas por três pescadores. Lá, no mar; aqui, no rio Paraíba. As duas são negras.

O papa chega a Cuba no momento em que o país passa por mudanças substanciais, sem, no entanto, abandonar seu projeto socialista. Há um processo progressivo de desestatização, abertura à iniciativa privada, e mais de 2 mil prisioneiros foram soltos nos últimos meses.

Hoje, as relações entre governo e Igreja Católica podem ser qualificadas de excelentes. Já não há na Ilha resquícios do clero de origem espanhola e formação franquista, que tanto incrementou o anticomunismo nos primeiros anos da Revolução, quando um padre promoveu a criminosa Operação Peter Pan: convenceu os pais de 14 mil crianças de que haveriam de perder o pátrio poder e que seus filhos passariam às mãos do Estado... Carregou as crianças para Miami, sem pais e mães, e o resultado, como se pode imaginar, foi catastrófico. A Revolução não foi derrotada pela invasão da Baía dos Porcos, patrocinada pelo governo Kennedy, e nem todas as crianças escaparam de um futuro de delinquência, drogas e outros transtornos. Milhares jamais foram localizadas depois pelas famílias.

Tanto o Vaticano quanto os bispos cubanos são contrários ao bloqueio que os EUA impõem à Ilha. Pode-se discordar de muitos aspectos do socialismo daquele país, mas ninguém jamais viu a foto de uma criança cubana jogada na rua, famílias morando debaixo da ponte e máfias de drogas. Em Havana, um outdoor exibe um menino sorridente com esta frase abaixo da foto: "Esta noite 200 milhões de crianças dormirão nas ruas do mundo. Nenhuma delas é cubana”.

Cuba tem muitos defeitos, mas não o de negar a 11 milhões de habitantes os direitos humanos fundamentais: alimentação, saúde, educação, moradia, trabalho e arte (vide o cinema e o Buena Vista Social Club). O que mereceu elogios de João Paulo II durante sua visita de sete dias – uma das mais longas de seu pontificado.

Hoje, Cuba recebe, proporcionalmente, mais turistas que o Brasil. O que é uma vergonha para nosso país de dimensões continentais e com tantos atrativos. A diferença é que Cuba promove não apenas turismo de lazer (suas praias são paradisíacas), mas também turismo científico, cultural, artístico e desportivo.

A Revolução Cubana resiste há 54 anos, malgrado os atos terroristas contra aquele país, descritos em detalhes no best-seller de Fernando Morais, Os últimos cinco soldados da guerra fria (Companhia das Letras, 2011). E o fato de suportar, no seu litoral, a base estadunidense em Guantánamo, que lhe rouba parte do território, para utilizá-lo como cárcere de supostos terroristas sequestrados mundo afora.

Quem sabe a resistência cubana seja mais um milagre da Virgem da Caridade...
*Miro

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