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Ser de esquerda é não aceitar as injustiças, sejam elas quais forem, como um fato natural. É não calar diante da violação dos Direitos Humanos, em qualquer país e em qualquer momento. É questionar determinadas leis – porque a Justiça, muitas vezes, não anda de mãos dadas com o Direito; e entre um e outro, o homem de esquerda escolhe a justiça.
É ser guiado por uma permanente capacidade de se estarrecer e, com ela e por causa dela, não se acomodar, não se vender, não se deixar manipular ou seduzir pelo poder. É escolher o caminho mais justo, mesmo que seja cansativo demais, arriscado demais, distante demais. O homem de esquerda acredita que a vida pode e deve ser melhor e é isso, no fundo, que o move. Porque o homem de esquerda sabe que não é culpa do destino ou da vontade divina que um bilhão de pessoas, segundo dados da ONU, passe fome no mundo.
É caminhar junto aos marginalizados; é repartir aquilo que se tem e até mesmo aquilo que falta, sem sacrifício e sem estardalhaço. À direita, cabe a tarefa de dar o que sobra, em forma de esmola e de assistencialismo, com barulho e holofotes. Ser de esquerda é reconhecer no outro sua própria humanidade, principalmente quando o outro for completamente diferente. Os homens e mulheres de esquerda sabem que o destino de uma pessoa não deveria ser determinado por causa da raça, do gênero ou da religião.
Ser de esquerda é não se deixar seduzir pelo consumismo; é entender, como ensinou Milton Santos, que a felicidade está ancorada nos bens infinitos. É mergulhar, com alegria e inteireza, na luta por um mundo melhor e neste mergulho não se deixar contaminar pela arrogância, pelo rancor ou pela vaidade. É manter a coerência entre a palavra e a ação. É alimentar as dúvidas, para não cair no poço escuro das respostas fáceis, das certezas cômodas e caducas. Porém, o homem de esquerda não faz da dúvida o álibi para a indiferença. Ele nunca é indiferente. Ser de esquerda é saber que este “mundo melhor e possível” não se fará de punhos cerrados nem com gritos de guerra, mas será construído no dia-a-dia, nas pequenas e grandes obras e que, muitas vezes, é preciso comprar batalhas longas e desgastantes. Ser de esquerda é, na batalha, não usar os métodos do inimigo.
Fernando Evangelista

domingo, abril 08, 2012

Diante da Porta da Miséria Espiritual


A roupa suja do mendigo, os cabelos amassados do mendigo, a pele encardida do mendigo, as mãos encarquilhadas do mendigo, as unhas compridas do mendigo, a boca sem dentes do mendigo, o saco com restos de quaquer coisa que o mendigo carrega como um hábito que não o abandona, são escombros atrás dos quais um homem foi soterrado.
É o homem no mendigo que grita com a boca sem dentes diante da filial do banco Itaú na Avenida Angélica em São Paulo, perto do número 2000. O homem pede ajuda e só o que ouvimos é um arremedo de voz, um som sufocado sob a fome do mendigo diante da porta automática. O pedido de ajuda é como um choro, quem sabe a memória de que alguma outra coisa fosse necessária à mera vida na qual foi abandonado, filho da sociedade da qual ele se torna o mais apavorante emblema.
Eu vejo, eu passo, eu volto.
Dos tantos que entram apressados pela porta de segurança, dois param e, com um trocado na mão, dividem a própria miséria com o homem que chora de fome e mastiga o seu desejo sem dentes. Outros passam reto, nem olham, são Deuses e não sabem o que fazem. Completam a lógica sócio-econômica que devora a todos, deixando alguns com uns contos a mais, outros com os trocados de todos, mas todos sem dignidade nenhuma.
Dou-lhe o que tenho. Também eu partilho com ele a minha miséria. Algum dinheiro é o nome da minha pobreza. O banco autorizado juridicamente a roubar de todos, impera intacto como o templo onde rezamos a cada dia para a única deidade realmente respeitada em nossa época: a deusa com corpo de abutre e duas cabeças, a da usura e da avareza.
O banco é a Ave-mãe cujo filho é o mendigo. Suas asas feitas da mais poderosa pobreza espiritual crescem a olhos vistos. Ela se alimenta como um parasita da pobreza material na boca do mendigo e se torna assim cada vez mais forte voando sobre todos nós, espargindo sobre todos nós a sua culpa, transformando todos nós em mendigos aos quais só resta a partilha da miséria e do desespero. Realizado está o desejo do capital.
*FilosofiaCinza

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