Em 1600, aos 52 anos, o filósofo, matemático e astrônomo Giordano Bruno foi acusado de heresia e queimado vivo. Não se sabe ao certo o que pesou mais para que os inquisidores de Roma decidissem silenciar seu cérebro de forma tão exemplar: se sua convicção de que o Sol era apenas mais uma estrela no céu, ou sua crença de que existiam incontáveis planetas habitados no universo, cada qual com seus respectivos e diversos Deuses. Na idade das trevas, a heresia era o pior dos crimes, mesmo sem afetar a integridade física ou subtrair qualquer bem de outra pessoa. Um crime que, em termos práticos, pode ser definido como o ato de compartilhar qualquer pensamento que fosse distinto da verdade inventada por uma elite dominadora. Portanto, hereges eram aqueles que ousavam alforriar seus próprios neurônios.
O anseio pelo controle dos neurônios alheios sobreviveu aos séculos e, mais do que aquele pela paz, parece compor a base filosófica das leis que criaram a guerra às drogas. A proibição de uma substância psicoativa, sem base lógica e em detrimento de sua regulamentação por meio dos mesmos parâmetros usados para outros fármacos, impede que os indivíduos tenham acesso a opções mais seguras e adequadas aos seus organismos do que aquelas arbitrariamente permitidas pelos políticos. Não é uma questão “apenas” de direitos individuais, é importante regulamentar com base científica o uso de quaisquer fármacos para evitar que eles causem mal tanto aos indivíduos quanto à sociedade. Entretanto, pretender controlar pela força da lei o ato íntimo de alterar o próprio estado de consciência é tão razoável quanto delegar a legisladores que decidam pela pessoa o que fazer para satisfazer sua vida afetivo-sexual ou religiosa. A lei que criminaliza o uso da droga não convence pessoas adultas a dividir com o estado a soberania sobre si mesmas. Especialmente em casos como o da maconha, que é muito menos lesiva aos indivíduos e à sociedade do que outras drogas permitidas pela lei. A criminalização ofende, constrange, instiga preconceitos, prejudica o acesso à informação, à orientação médica, a tratamentos em casos de abuso e, no caso da maconha, ainda impede a pesquisa e a aplicação de suas propriedades medicinais. Porém, não acaba com a demanda, favorecendo a prosperidade de um mercado negro comandado pelo crime e regulado pela violência. Esta violência, somada à da própria guerra contra este mercado, gera desgraças pessoais e danos sociais absurdamente desproporcionais ao mal que qualquer droga possa causar.
O estigma da ilegalidade afeta nossa cultura, manifestando-se em forma de intolerância semelhante àquelas que levavam famílias de bem ao êxtase diante do martírio de Giordano Bruno e de tantos outros espíritos visionários os quais, em sua sinceridade, compartilharam dessa extraordinária capacidade tão humana, que é a de multiplicar ideias e visões do mundo. Não é um problema restrito aos usuários de drogas ilegais, mas é emblemático perceber que famílias de bem, colunistas de jornais, apresentadores de TV e políticos, que outrora estariam na claque das fogueiras a gritar “Hereges Malditos!”, hoje gritam “Maconheiros Vagabundos!”. E o fazem com o mesmo ódio doloso com os quais também se usam expressões como “puta vadia”, “preto safado”, “mendigo nojento”, “bicha depravada” e assim por diante. Será que tanta agressão é melhor para a sociedade do que o trabalho daqueles que usam a maconha, por exemplo, para estimular sua criatividade e sensibilidade artística? O que seria, por exemplo, da música brasileira (e mundial) sem a maconha? Tudo isso parece irrelevante diante do poder entorpecente da intolerância, que afaga o próprio ego de quem a professa, como um recurso fácil para se sentir superior aos outros sem precisar fazer nada de útil ou belo pela humanidade ou pelo planeta. A intolerância é o ópio daqueles que ainda não aprenderam a contribuir generosa e criativamente para o aprimoramento e expansão do extraordinário potencial humano. Vício capaz de controlar rebanhos gordos de preconceitos e psicologicamente dependentes da desinformação. Massa de manobra para aqueles que lucram com as desgraças das guerras, inclusive as da guerra às drogas.
Apesar de o obscurantismo permanecer uma força opressora da razão, o entendimento científico do mundo e das coisas vivas permanece avançando. Assim como avançam os recursos para acessarmos estas informações e para conhecermos um número cada vez maior de pessoas com suas diversas formas de entender e apreciar o mundo e a vida. Porém, o acesso ao conhecimento pode ser bloqueado em grande parte pelas próprias leis, por instituições governamentais, pelo preconceito cultural, e pela ação da mídia de comunicação de massa. Desta forma, a ciência também sofre censura e cerceamento quando as informações que ela traz contradizem as vontades, os interesses ou os preconceitos de quem cria e banca as leis. Por muitos anos, o vínculo de agências financiadoras de pesquisa com politicas de estado do governo norte-americano, por exemplo, comprometeu seriamente a pesquisa acerca dos reais efeitos da maconha sobre a saúde e facilitou a proliferação de artigos que, frequentemente de forma tendenciosa, apoiassem a política antidrogas do governo. O National Institute on Drug Abuse dos Estados Unidos (NIDA) prestou esse desserviço à humanidade por muitas décadas. No Brasil, devemos repudiar essas visões ultrapassadas que apoiam leis e posturas políticas as quais, por sua vez, sabotam a pesquisa e a utilização das inquestionáveis propriedades medicinais da maconha. Obstruindo, de forma anticientífica e, portanto, antiética, o alívio de sofrimentos severos em pessoas que, em plena sintonia com a ciência, fazem uso inteligente dessa obra-prima da natureza. Apesar de expressivas exceções, boa parte da grande mídia, dos políticos, do governo e até dos médicos, foge do conhecimento científico e histórico subjacentes a estas questões. Simplesmente se esquivam diante do tabu e, talvez, do receio em admitir que milhares de pessoas, incluindo crianças, trabalhadores honestos, criminosos e policiais honrados, são mortos em vão na guerra contra uma planta medicinal.
A maconha não deve ser usada por jovens em crescimento e o abuso não é bom nem para adultos. Entretanto, a dependência psicológica de maconha é relativamente rara e seus efeitos danosos, para o indivíduo e para a sociedade, demandam cuidados, mas não justificam a ilegalidade. A maconha não mata, não causa esquizofrenia, não causa câncer, não danifica o cérebro, não causa dependência fisiológica, não tira a consciência do usuário e não torna a pessoa violenta. Ela pode atrapalhar o desempenho de jovens em idade escolar e ser prejudicial a um grupo minoritário de pessoas com distúrbios psiquiátricos não diagnosticados, por exemplo. Mas, para a grande maioria das pessoas, os efeitos da maconha não só são muito menos nocivos que os do álcool e os do cigarro, como são também, ao contrário destes, perfeitamente recomendáveis para diversas aplicações medicinais. Erra quem diz que usar maconha leva ao uso de outras drogas. Porém, seus efeitos ansiolíticos, antidepressivos, e inibidores de parte do sistema nervoso que ativa reação ao estresse, torna o uso da maconha uma alternativa como porta de saída para dependentes de drogas mais pesadas e viciantes como o álcool, o crack e a cocaína: a maconha pode aliviar a síndrome de abstinência dessas drogas.
Séculos após o assassinato de Giordano Bruno, o astrofísico Carl Sagan, mundialmente famoso por seu brilhantismo científico, dedicou, como Bruno, sua vida à busca do conhecimento sobre o universo e nosso lugar dentro dele. Sagan também defendeu a possibilidade de vida em outros planetas e, em seu extensivo trabalho de divulgação cientifica, explicou de forma lindíssima a ciência que veio confirmar a astronomia de Bruno... Carl Sagan não escaparia se vivesse na mesma época: além de um convicto herege à moda antiga, ele também era maconheiro! Sim, e ainda cometeu a blasfêmia de escrever textos contando como a maconha o ajudou no desenvolvimento de muitos de seus preciosos insights intelectuais. Se havia algo que a inquisição abominava tanto quanto hereges, era o uso de plantas que, além de expandir os limites da consciência, pudessem mitigar sofrimentos do corpo e da mente - funções que eram como que propriedades intelectuais da Igreja. Celebramos, portanto, os bravos hereges responsáveis pelo lançamento desta revista que, embora seja semSemente, ajudará a semear a paz da qual todos colheremos frutos.
[texto publicado na primeira edição da revista semSemente]
Renato Malcher (neurocientista, membro do International Centre for Science in Drug Policy http://icsdp.org/) é Mestre
em Biologia Molecular, doutor (Ph.D) em Neurociências. Atualmente é professor adjunto do Departamento de Fisiologia da Universidade de Brasília e autor do livro "Maconha, Cérebro e Saúde" escrito em colaboração com o neurocientista Sidarta Ribeiro.
*Visãoampla
*FláviaL.
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