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Ser de esquerda é não aceitar as injustiças, sejam elas quais forem, como um fato natural. É não calar diante da violação dos Direitos Humanos, em qualquer país e em qualquer momento. É questionar determinadas leis – porque a Justiça, muitas vezes, não anda de mãos dadas com o Direito; e entre um e outro, o homem de esquerda escolhe a justiça.
É ser guiado por uma permanente capacidade de se estarrecer e, com ela e por causa dela, não se acomodar, não se vender, não se deixar manipular ou seduzir pelo poder. É escolher o caminho mais justo, mesmo que seja cansativo demais, arriscado demais, distante demais. O homem de esquerda acredita que a vida pode e deve ser melhor e é isso, no fundo, que o move. Porque o homem de esquerda sabe que não é culpa do destino ou da vontade divina que um bilhão de pessoas, segundo dados da ONU, passe fome no mundo.
É caminhar junto aos marginalizados; é repartir aquilo que se tem e até mesmo aquilo que falta, sem sacrifício e sem estardalhaço. À direita, cabe a tarefa de dar o que sobra, em forma de esmola e de assistencialismo, com barulho e holofotes. Ser de esquerda é reconhecer no outro sua própria humanidade, principalmente quando o outro for completamente diferente. Os homens e mulheres de esquerda sabem que o destino de uma pessoa não deveria ser determinado por causa da raça, do gênero ou da religião.
Ser de esquerda é não se deixar seduzir pelo consumismo; é entender, como ensinou Milton Santos, que a felicidade está ancorada nos bens infinitos. É mergulhar, com alegria e inteireza, na luta por um mundo melhor e neste mergulho não se deixar contaminar pela arrogância, pelo rancor ou pela vaidade. É manter a coerência entre a palavra e a ação. É alimentar as dúvidas, para não cair no poço escuro das respostas fáceis, das certezas cômodas e caducas. Porém, o homem de esquerda não faz da dúvida o álibi para a indiferença. Ele nunca é indiferente. Ser de esquerda é saber que este “mundo melhor e possível” não se fará de punhos cerrados nem com gritos de guerra, mas será construído no dia-a-dia, nas pequenas e grandes obras e que, muitas vezes, é preciso comprar batalhas longas e desgastantes. Ser de esquerda é, na batalha, não usar os métodos do inimigo.
Fernando Evangelista

terça-feira, março 04, 2014

COMO COMETER CRIMES SEM IR PARA A CADEIA NEM MANCHAR A REPUTAÇÃO

 
Num dos contos mais famosos de Machado de Assis, um pai zeloso tenta ensinar ao filho, prestes a entrar na maioridade, os truques e as mumunhas necessários para ser bem-sucedido nesse mundo. É a chamada teoria do medalhão, que consiste resumidamente em dois pilares: a mediocridade intelectual e o cultivo da imagem. Segundo seus princípios, um homem, se quiser prosperar na vida, não deve pensar por si próprio e muito menos chegar perto dos livros de Filosofia. Mais seguro é endossar o senso comum e, assim, se mimetizar com os papalvos e evitar aborrecimentos. Também é importante promover jantares em casa, convidar o fino da sociedade, fazer discursos imponentes, insinuar-se no coração dos homens. Não deve nunca rir como Voltaire ou Swift, pois o sarcasmo denuncia inteligência. É preferível rir de forma franca, honesta, conciliadora.
COMO COMETER CRIMES SEM IR PARA A CADEIA NEM MANCHAR A REPUTAÇÃO
Embora eu considere valiosa a teoria do medalhão, creio que ela poderia ser melhorada com o acréscimo de um terceiro pilar: o ingresso na vida sacerdotal. Tivesse eu um filho, chamá-lo-ia para um conversa e lhe diria:
"Meu filho, hoje quero lhe ensinar uma coisa importante, que poderá um dia lhe ser muito útil. Você tem se revelado, para minha grata surpresa, um rapaz de índole generosa, altruísta e afetuosa. Não consigo sequer imaginá-lo perpetrando alguma baixeza, mesmo aquelas de aparência insignificante a que o vulgo costuma se entregar sem remorsos. Sobram-lhe escrúpulos para evitar a mentira, o ludibrio e a impostura. Fui testemunha de como outro dia você se esquivou da mentira para salvar a própria pele, quando sua mãe acusou o seu amiguinho José de quebrar o vaso de gesso que ataviava a estante. Você corajosamente disse a verdade, assumindo sozinho a culpa, mesmo conhecendo o ciúme que ela sempre teve desse objeto.
Só que a vida, meu garoto, amiúde nos reserva circunstâncias em que agir corretamente parece estar acima de nossas forças. Mesmo a virtude mais experimentada está sujeita a fraquejar diante da oportunidade de um ganho ilícito, ou do usufruto imoral de um prazer espúrio. Nossos ouvidos nunca estão totalmente vedados aos conselhos desestabilizadores do Diabo, e é certamente mais fácil cair em tentação do que resistir a ela, sacrificando um prazer certo. Os esforços necessários para nos manter incorruptíveis são, muitas vezes, mais excruciantes que a consciência dos males provocados.
Contudo, se não existe invulnerabilidade ao pecado, há pelo menos imunidade ao castigo... Atualmente a forma mais eficaz de conseguir esse benefício é entrar para a vida religiosa. Os políticos, é claro, fazem leis que atendem a seus interesses pessoais e legitimam seus privilégios indecentes. Também eles gozam do privilégio da imunidade, sendo por esse motivo que nunca os vemos na cadeia. Eles podem desviar verbas públicas, comprar votos, superfaturar obras e ainda assim continuar soltos, gozando da boa vida que a gatunagem lhes proporcionou. Mas, apesar dessas regalias, eles quase nunca escapam da condenação moral da opinião pública. Se não conseguimos mandá-los para a cadeia, nos vingamos cobrindo-os de insultos.
Melhor que ser político é ser um 'servo de Deus'. Você pode enganar, roubar, extorquir, violar mulheres e crianças, acobertar criminosos, e tudo isso sem passar um só dia na cadeia e perder a estima pública. Eu poderia lhe dar aqui uma infinidade de exemplos para demonstrar essa verdade, mas vou ficar com apenas um. 
Suponhamos que você seja diretor de uma escola qualquer e que, um belo dia, chegue aos seus ouvidos a notícia de que o professor de Matemática molestou uma aluna dentro da sala de aula, durante um recreio. Você, em vez de denunciar o criminoso, decide acobertá-lo transferindo-o para outra unidade da mesma instituição de ensino, onde ele tempos depois faz novas vítimas. Se um dia uma notícia dessas vazar para a imprensa, você pode ter certeza de que sua vida estará definitivamente arruinada. Pais revoltosos e populares indignados, munidos de paus e pedras, irão vandalizar a escola e ameaçar a sua integridade física. Sua casa será pichada, apedrejada e saqueada. Você nunca mais terá tranqüilidade ao andar na rua; aonde quer que você for ressoarão os insultos, as vaias e as ameaças de morte. Muitos chegarão até a agredi-lo com socos e pontapés. E você não escapará das garras da justiça. Responderá a um processo por cumplicidade com a pedofilia e, se for condenado, terá que rezar para não ser morto na cadeia, porque é possível que os presos confundam o agressor sexual com quem o acobertou. Se não acredita, pesquise sobre o caso Escola Base.
O que acontece na Igreja Católica não é muito diferente disso. Padres molestam crianças, são transferidos para outras paróquias, molestam mais crianças, voltam a ser transferidos, fazem novas vítimas, e assim sucessivamente. Mas o que acontece com o líder dessa instituição, o homem que é sabidamente responsável pela aprovação de um documento que obriga todos os seus subordinados a manter silêncio em caso de escândalo sexual? Nada! O santo papa viaja o mundo inteiro e, onde quer que desembarque, é recebido com uma deferência e um entusiasmo que nem Atenas dispensou aos heróis responsáveis pela queda de Tróia. Aparentemente, sua reputação e sua imagem estão imunes aos crimes que ele comete ou acoberta, bem como às bobagens que diz e que faz. Os devotos correm para vê-lo na sacada do prédio onde ele se digna a aparecer por dois minutos. E jogam beijos, e balançam as mãozinhas, e cantam hinos em seu louvor. Ninguém ali acha que está endossando todas as práticas da instituição dirigida por ele, ninguém se sente responsável pelos abusos sexuais cometidos por sacerdotes que ele ajudou a proteger. É simplesmente 'o espetáculo da fé' - o sórdido espetáculo da fé que continuará mesmo após a partida do ilustre visitante. Os devotos correrão para as igrejas com sua bolsinha cheia de dinheiro e, depois de terem financiado moralmente o abuso sexual de crianças, irão agora financiá-lo economicamente."
*http://www.euracional.com.br/index.php/religiao/item/179-como-cometer-crimes-sem-ir-para-a-cadeia-nem-manchar-a-reputacao

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