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Ser de esquerda é não aceitar as injustiças, sejam elas quais forem, como um fato natural. É não calar diante da violação dos Direitos Humanos, em qualquer país e em qualquer momento. É questionar determinadas leis – porque a Justiça, muitas vezes, não anda de mãos dadas com o Direito; e entre um e outro, o homem de esquerda escolhe a justiça.
É ser guiado por uma permanente capacidade de se estarrecer e, com ela e por causa dela, não se acomodar, não se vender, não se deixar manipular ou seduzir pelo poder. É escolher o caminho mais justo, mesmo que seja cansativo demais, arriscado demais, distante demais. O homem de esquerda acredita que a vida pode e deve ser melhor e é isso, no fundo, que o move. Porque o homem de esquerda sabe que não é culpa do destino ou da vontade divina que um bilhão de pessoas, segundo dados da ONU, passe fome no mundo.
É caminhar junto aos marginalizados; é repartir aquilo que se tem e até mesmo aquilo que falta, sem sacrifício e sem estardalhaço. À direita, cabe a tarefa de dar o que sobra, em forma de esmola e de assistencialismo, com barulho e holofotes. Ser de esquerda é reconhecer no outro sua própria humanidade, principalmente quando o outro for completamente diferente. Os homens e mulheres de esquerda sabem que o destino de uma pessoa não deveria ser determinado por causa da raça, do gênero ou da religião.
Ser de esquerda é não se deixar seduzir pelo consumismo; é entender, como ensinou Milton Santos, que a felicidade está ancorada nos bens infinitos. É mergulhar, com alegria e inteireza, na luta por um mundo melhor e neste mergulho não se deixar contaminar pela arrogância, pelo rancor ou pela vaidade. É manter a coerência entre a palavra e a ação. É alimentar as dúvidas, para não cair no poço escuro das respostas fáceis, das certezas cômodas e caducas. Porém, o homem de esquerda não faz da dúvida o álibi para a indiferença. Ele nunca é indiferente. Ser de esquerda é saber que este “mundo melhor e possível” não se fará de punhos cerrados nem com gritos de guerra, mas será construído no dia-a-dia, nas pequenas e grandes obras e que, muitas vezes, é preciso comprar batalhas longas e desgastantes. Ser de esquerda é, na batalha, não usar os métodos do inimigo.
Fernando Evangelista

domingo, dezembro 28, 2014

A epidemia de cesáreas no Brasil e a violência obstétrica

Por que a exceção vira regra? A epidemia de cesáreas no Brasil e a violência obstétrica

A praticidade com que o nascimento ocorre cirurgicamente é marca dos nossos tempos cada vez mais mercantilizáveis: “time is money” !

Foto de parto em manifestação no Uruguai pela liberdade de poder escolher onde parir. Foto: Caren Rhoden

Por Alcir Martins


Tenho o feliz destino de ser pai de duas meninas. Ambas nascidas no mês de abril. Ambas nascidas de cesarianas. Para a mais velha havia data e horário marcado para a realização da tal cirurgia. Para a caçula queríamos um parto normal, o mais natural e humanizado possível. As duas “estouraram” suas bolsas e indicaram o momento em que iriam nascer a despeito de previsões ou agendamentos de outros.

Minha filha mais velha, na véspera da cesariana agendada, rebentou a bolsa amniótica e decidiu nascer algumas horas antes do previsto – previsto pelo médico, não por ela, ora bolas! Ainda assim e apesar dos sinais que indicavam o início do trabalho de parto, foi realizada a cesariana por que não se realiza um parto pélvico por via vaginal – asseverou o doutor.

Parto pélvico ou posição pélvica é o nome que se dá ao “bebê sentado” no útero da mãe. Nesta condição, os quadris e os ombros do bebê saem primeiro do útero e, por fim, a cabeça, ao contrário do parto cefálico, considerado o correto.

Minha filha mais nova também decidiu dar uma beliscadinha e romper a bolsa no meio de uma madrugada dessas. A bolsa rota pode dar início – ou não – ao trabalho de parto. É possível que da ruptura da bolsa até o início do parto propriamente dito ocorra um intervalo de mais de 12 horas. Foi o que ocorreu: passaram-se as horas e, ao completarem-se 18 horas com a bolsa rota e sem dilatações, não tivemos outra alternativa que não a cesariana – orientou o doutor.

Estas duas histórias, com todas suas diferenças de tempo, lugar e conhecimento (empoderamento) sobre a gestação e o parto, guardam duas importantes semelhanças. A primeira delas é que não é verdade, para nenhuma das situações acima, que a cesariana era a única e derradeira alternativa para as mães e para as meninas. Partos pélvicos podem sim ocorrer pela via vaginal sem riscos para a criança ou para a mãe. Exige um maior trabalho, mais atenção e mais tempo do médico. Mas é possível! A bolsa rota sem o início das dilatações pode ser acompanhada pelo obstetra que induzirá ao trabalho de parto ao custo de paciência, dedicação, acompanhamento e tempo!

A segunda semelhança entre o nascimento das minhas duas filhas é que, com a ruptura das bolsas, elas indicaram que a hora de nascer estava próxima ou já havia chegado. A epidemia de cesáreas agendadas, entre outros perigos, traz ao mundo, de maneira muitas vezes (ou sempre) abrupta, um grande número de crianças prematuras. Bebês que poderiam e deveriam ficar mais alguns dias ou semanas no ventre de suas mães são arrancados em dia e hora marcado de maneira a garantir que o profissional da saúde não atrase suas férias nem perca um programa de final de semana ou evento qualquer. A proporção de nascimentos prematuros (antes de 37 semanas) é de cerca de 11,3% no Brasil. Em relação aos bebês que nasceram com 37 ou 38 semanas gestacionais, a proporção fica em 35%. Passadas as 37 semanas os bebês já não são tecnicamente prematuros mas poderiam ganhar mais peso e maturidade dentro do útero materno até a 39ª semana. Essa onda de nascidos com 37 ou 38 semanas no Brasil pode ser explicada pelo número de cesarianas agendadas antes do início do trabalho de parto. Dados alarmantes podem ser conferidos nas pesquisas da FIOCRUZ, “Nascer no Brasil” ou da UNICEF“Toda Criança Conta”

A praticidade com que o nascimento ocorre cirurgicamente é marca dos nossos tempos cada vez mais mercantilizáveis: “time is money” !

Um parto normal pode demandar tempo. Um parto natural e humanizado se estenderia pelo prazo em que várias cirurgias cesáreas poderiam ser realizadas. Eis aqui uma imposição mercadológica que agride mulheres e crianças todos os dias. A Organização Mundial da Saúde indica como adequado um percentual de 10 a 15% dos partos por via cirúrgica. No Brasil temos mais da metade dos partos realizados por cesáreas, muitas delas desnecessárias ou evitáveis. Na rede privada o número de cesáreas chega a 9 em cada 10 nascimentos. Isso mesmo! Na rede hospitalar privada o índice alcança estratosféricos 88% de cesarianas.

No Brasil somos campeões mundiais da cesárea: 52%. Estamos na contramão! Nos EUA, o percentual de partos cirúrgicos era 33% há poucos anos, atualmente baixaram para 26% por recomendação do Colégio Americano de Obstetrícia. Suiça está em 30%, Alemanha em 29%. No vizinho Uruguai as cesáreas não passam dos 34%.

Os crescentes movimentos em defesa do parto natural, além de questionarem a mercantilização da vida e da saúde; questionam também o próprio discurso da autoridade do médico e, assim, questionam certa manifestação do patriarcado que retira o protagonismo da mulher sobre o seu corpo e o seu parto.

É opressor e atinge mulheres de todas as classes, a concepção que dá ao médico o controle sobre o parto, tirando da mulher, mais uma vez, o direito de decisão sobre seu próprio corpo. O parto, fisiológico e natural, não pode ser tratado como doença – esta sim exige atendimento e intervenção médica. Gestação e parto – que não são doenças – precisam de acompanhamentos e cuidados para que tudo transcorra bem e, apenas nos casos de complicações, atue o médico e seus procedimentos. O médico e a técnica dominam tudo: até o verbo parir está caindo em desuso, fala-se em ter um bebê, ou ganhar um bebê, que podem ser coisas bem diferentes.

O parto por via vaginal foi perdendo espaço para a cesareana apenas no século XX, quando a cesariana tornou-se aceitável como recurso extraordinário que é – extraordinário porque não é pra ser cotidiano e também porque salva vidas quando necessário – mas passou a ser praticada de maneira exagerada e irresponsável.

O caso é de violência obstétrica (VO). A medicina, neste caso, está direcionada pelo lucro. Repetimos: “time is money”! Uma cesárea se conclui com, no máximo, duas horas de trabalho da equipe médica; já o trabalho de parto é imprevisível, podendo durar até dois dias. Esta praticidade cirúrgica que cabe direitinho na agenda do médico retira da mulher qualquer direito de decidir. O discurso médico e sua autoridade autoritária influencia a mulher e a família envolvida na gestação. Falsos ou exagerados temores são convocados para justificar a suposta segurança e comodidade de uma cesárea. Comodidade para o médico. Ou, simplesmente, porque pelo plano de saúde só faz cesariana, o parto normal no setor privado custa caro.

A violência obstétrica tem muitos meios e formas de manifestação. São as cesáreas e episiotomias (um ‘pique’ no períneo para ‘permitir’(SIC) o parto via vaginal). Mas também são as agressões verbais, humilhações ou ridicularizações, realização de procedimentos sem consentimento, nem informação para que a mulher decida. Começando pela imposição da litotomia (ou posição ginecológica): a mulher fica na horizontal, numa mesa bem ao alcance das mãos médicas mas em posição completamente antinatural para o parto.

A luta pela garantia do direito ao parto humanizado – que não é aquele sem intervenção alguma mas apenas sem intervenção desnecessária – pode reorientar não só o serviço de saúde e a atuação dos profissionais e equipes que atuam nos partos, mas também pode nos provocar a repensar que tipo de seres humanos e de que maneira os estamos colocando no mundo. Não trata-se de um direito daqueles que deva trazer “proteção” às mulheres, mas é sim uma ferramenta de exercício e consolidação da autonomia sobre seus corpos e suas vidas. Sem a autodeterminação e o empoderamento das mulheres o parto nunca será humanizado.



*oinversodocontraditorio

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